ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2014
Kadish para o amigo fiel
Uma violinista no adeus aos pets
Audrey Furlaneto | Edição 98, Novembro 2014
Representado por uma foto, um pote de cinzas e um tufo de pelos, Logan Spencer Calderón foi velado em seu apartamento, em Manhattan, num sábado de agosto. Presentes: sua dona (a guatemalteca Thelma Calderón, aos prantos), seus irmãos (os filhos de Thelma, encarregados de gravar a cerimônia) e seus vizinhos – que, dada a popularidade do spitz alemão, o haviam apelidado de “Prefeito da rua 103”. Estava, por fim, a violinista Lucy Morganstern, de 64 anos, que após pedir aos circunstantes que pensassem em Logan, deu início a uma melodia delicada para honrar a alma do finado.
Instrumentista da American Simphony Orchestra e do American Ballet Theatre há trinta anos, Lucy criou o serviço funerário para pets por volta de 2002. O pacote inclui música, poesia e, a depender da fama do defunto, uma sequência de discursos sobre seu passado glorioso. Logan, que caminhava três vezes ao dia pelo bairro, foi lembrado pela altivez e pelo extenso repertório vocal usado para cumprimentar os passantes (e os cachorros, gatos, ratos, esquilos e carros da vizinhança).
“Julgo natural que exista uma cerimônia para honrar os bichos”, diz Lucy, em casa, diante de um piano de cauda adornado por porta-retratos dos gatos que um dia teve. “Quando uma pessoa morre, nós honramos sua memória. Quando um animal morre, dizemos ‘Sinto muito’ e logo completamos com um ‘Você deveria comprar outro’. Não há funeral, não há túmulo, não se pode dizer adeus.”
“Viúva” de cerca de uma dezena de animais de estimação, a violinista realizou seu primeiro serviço funerário quando Goldie, um de seus gatos, foi encontrado morto perto da casa de seus pais, no Brooklyn. Antes de enterrá-lo no jardim, convocou a irmã (também violinista) e o irmão (violoncelista) para uma cerimônia. Os Morganstern se reuniram na garagem: Lucy tocou, o pai leu um poema, a mãe e os irmãos ofereceram flores ao bichano. Depois de um ano, conforme os preceitos da tradição judaica, a família reuniu-se mais uma vez ao redor do túmulo, para dar fim ao luto.
Mas, nos meses que se seguiram, morreram os pais da musicista e Blackie, o irmão malhado de Goldie. “Foram quatro mortes em tão pouco tempo, e logo depois ocorreu o 11 de Setembro. Eu estava devastada.” Como terapia, Lucy resolveu compor músicas (para violino e piano) in memoriam (de animais e pessoas).
“É difícil encontrar o termo exato para o que faço. É uma atividade espiritual, tento realmente comunicar algo profundo. Com a linguagem musical, encontrei um poderoso veículo para a cura do luto”, explica. E sublinha que jamais uma peça criada para um determinado animal será tocada para outro. “Não é um serviço padrão. Por isso converso com os donos, ouço as histórias, e daí concebo uma obra específica.”
Para Lily, por exemplo, não houve funeral, mas uma festa. A gata vira-lata – que, ao longo de treze anos, dividiu com Lucy o atulhado apartamento – morreu em julho deste ano. “Nosso amor era completo, não havia ressentimento algum, não nos arrependíamos de nada e nos amávamos igualmente. Escrevi apenas um tributo e dei uma festa, com bebida e comida, para os amigos dela.” (Por “amigos” da vira-lata, entenda-se “humanos”.)
Já Silky não ganhou nenhuma cerimônia: quando a felina estava prestes a morrer, a violinista convocou a ajuda de um telepata californiano – um animal communicator– que se conectou à agonizante, ajudando-a em sua “passagem”. O profissional informou que, uma vez “do outro lado”, Silky se prontificava a auxiliar a musicista nos funerais que viesse a fazer. Os atuais pets da musicista – Friede, uma Boston terrier surda e oferecida, e a antissocial Ursula, uma gata pelo curto inglês – não demonstram a mesma disposição para o trabalho, lamenta Lucy.
Pelo serviço, a violinista cobra 350 dólares. Pouco afeita a tecnologias, se o cliente quiser uma projeção de fotos do finado, ele que dela se incumba. Oito anos atrás, quando Arthur morreu, Lucy fez sua improvisação ao violino, acompanhando uma sequência de fotos, no estilo “Esta é a sua vida”. Na ocasião, os donos tocaram Chopin ao piano: era o compositor preferido do Boston terrier.
No meio musical, diz que ficou conhecida como “aquela com quem se deve falar quando o assunto é gato”. Seus serviços também se aplicam ao trato dos viventes: além de ter feito um treinamento para curar os bichos por meio do toque, Lucy desenvolve florais para cachorros e gatos ansiosos ou emocionalmente desequilibrados. A música seria mais uma forma de entrar em contato com a natureza animal. “Não tenho certeza da preferência musical dos bichos. Alguns agudos do violino podem ser intensos demais para felinos. Quando eles estão no espírito, porém, tenho certeza de que podem apreciar a beleza, a linguagem espiritual e a intenção da música”, diz ela.
Para “conectar-se ao espírito” de Logan, Lucy improvisou uma melodia pungente e curta, de cerca de um minuto, durante a qual Thelma diz ter sentido a presença do finado na casa. Para o velório, a parede verde-abacate de seu apartamento foi decorada com 45 fotos do pobrezinho – em parques, em casa ou em Chicago, destino da única viagem de avião do cachorro. A elas somaram-se mais onze retratos, feitos por vizinhos e fãs que o paravam em suas caminhadas pelo bairro para clicá-lo.
No dia do funeral, Thelma encomendou lasanha a um restaurante italiano, comprou champanhe, uísque e tequila. Recebeu onze arranjos de flores e cerca de quinze vizinhos. Um deles, um garoto chinês de 13 anos, foi à cerimônia de fraque. Uma professora americana da rua de cima leu uma carta de despedida: “O bairro não é mais o mesmo sem você, Logan.” Houve promessas de instalar no banco central da Broadway, em frente à casa do cachorro, uma placa com os dizeres: LOGAN SPENCER CALDERÓN, O PREFEITO DA RUA 103. “Ao longo de onze anos, senti muito orgulho ao caminhar pelas ruas de Nova York. Há muitos cachorros no mundo, mas eu tinha o melhor deles”, diz Thelma. “O funeral me ajudou a dizer: ‘Obrigada, Logan, por tudo isso.’”