minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    Winter Sleep

questões cinematográficas

Climas – embalagem primorosa

O mercado exibidor no Brasil está de tal modo degradado que ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes não basta para um filme ser acolhido com presteza e dignidade entre nós, nem para que um dos filmes anteriores do mesmo diretor seja oferecido em condições favoráveis.

| 12 jan 2015_12h27
A+ A- A

O mercado exibidor no Brasil está de tal modo degradado que ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes não basta para um filme ser acolhido com presteza e dignidade entre nós, nem para que um dos filmes anteriores do mesmo diretor seja oferecido em condições favoráveis.

, escrito e dirigido por Nuri Bilge Ceylan, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes de 2014, só estreará por aqui, quase um ano depois, no próximo dia 2 de abril. Climas, de 2006, também de Ceylan e igualmente exibido em Cannes, onde recebeu o Prêmio da Federação Internacional de Críticos de Cinema (Fipresci), levou 9 anos para ser lançado no Brasil. E mesmo assim chegou à tela do Cine Joia oferecendo 87 lugares, em 1º de janeiro, com uma única sessão por dia, exceto às segundas-feiras, quando não é exibido.

Difícil acreditar que não haja espectadores interessados em acompanhar a carreira de Ceylan que desde 2002, quando lançou Distante, vem sendo premiado em anos sucessivos no Festival de Cannes, duas vezes com o Grande Prêmio do Júri, depois o Prêmio de Melhor Diretor e, no ano passado, a Palma de Ouro.

Os prêmios por si só não devem ser tomados como aval. Afinal, o Festival de Cannes já premiou grandes borracheiras. O caso de Ceylan, porém, é único – haverá outro cineasta que além de acumular as funções de diretor, roteirista e produtor dos seus filmes, de ser o ator principal em alguns deles, de ter se tornado fotógrafo, como o personagem principal de Climas que ele próprio interpreta, tenha sido premiado 4 vezes, em 14 anos, na competição oficial do Festival? Isso, sem esquecer o mais importante – os próprios filmes, como Três macacos (2008) e Era uma vez na Anatólia (2011), o primeiro lançado no Brasil em 2009 e o segundo em 2013.

É verdade que o cinema de Ceylan não é convencional. Ele mesmo não esconde a quem admira. Dos seus 10 filmes favoritos há apenas 5 diretores, cada um assinando 2 filmes: Andrei Tarkovsky, Michelangelo Antonioni, Robert Bresson, Ingmar Bergman e Yasujiro Ozu.

No caso de Climas, a marca do Antonioni de A aventura é nítida – poucos diálogos, cenários que refletem a personalidade dos personagens e protagonista masculino que é um pequeno canalha – predador inseguro, manipulador e mentiroso. Percorrida pelo casal Isa e Bahar, a trajetória de Climas vai da beira mar à montanha, do calor ao frio, do sol à neve, dos monumentos históricos à Turquia moderna. De forma geral, Ceylan guarda com seus cinco mestres a composição precisa dos enquadramentos e a câmera fixa, encadeando planos de grande beleza plástica articulados entre si com notável destreza.

O próprio Ceylan deu uma chave de acesso aos seus filmes na entrevista de 2009 ao The Guardian: “Em todos meus filmes há um elemento de Tchekhov, por que Tchekhov escreveu tantas histórias. Ele tinha histórias sobre quase toda situação e eu as adoro. Então, talvez ele tenha influenciado minha maneira de ver a vida. Para mim, de certa maneira, a vida segue Tchekhov. Depois de ler Tchekhov você começa a ver o mesmo tipo de situação na vida. E quando escrevo o roteiro eu de alguma forma lembro as histórias. Então sim, Tchekhov está aqui.”

O primeiro filme de Ceylan, The Small Town (1997), é dedicado a Tchekhov. Era uma vez na Anatolia (2011) adapta algumas histórias curtas de Tchekhov, assim como dizem também ser o caso em .

O trecho de uma conhecida carta de Tchekhov, justificando a falta de conclusão em uma de suas histórias, parece escrito para descrever os pressupostos de Ceylan: “Não cabe ao artista julgar seus personagens nem o que eles dizem; sua única função é ser uma testemunha imparcial. Ouvi dois russos numa conversa confusa sobre pessimismo, uma conversa que não chegava a lugar nenhum; tudo que estou comprometido a fazer é reproduzir essa conversa exatamente como a ouvi. Tirar conclusões cabe ao juiz, isto é, aos leitores. Meu único trabalho é ser talentoso, isto é, saber como distinguir um testemunho importante do que não tem importância, situar meus personagens na luz adequada e falar a língua deles.”

Como ocorre em Tchekhov, Ceylan lida com o prosaico – no caso de Climas, os embates de um casal. Mas há também o que Janet Malcolm, a propósito de Tchekhov, descreveu como “a selvageria e estranheza e arcaísmo e cores brilhantes ocultas, do mesmo modo que a complexidade e dificuldade”. Em Climas a violência irrompe na sequência que foi chamada de “uma das cenas de sexo mais perturbadoras jamais vistas”. Dura cerca de treze minutos e passa por vários estágios, da tocaia à consumação, passando pelo negaceio e o corpo a corpo, que tem momentos de luta greco-romana.

Como em Ida, comentado neste blog na semana passada, há pouco diálogo em Climas. Na entrevista ao The Guardian, Ceylan explicou a razão da sua parcimonia: “Só na filmagem é possível perceber se o que foi escrito funciona ou não. Sempre durante a filmagem eu tento encontrar mais equilíbrio na situação e acabo cortando diálogo aqui e ali e acaba não havendo nenhum diálogo. Sinto que o equilíbrio foi alcançado nesse momento e não sei o que fazer sobre isso. De algum modo, dessa maneira é mais convincente para mim. E é claro que diálogo deve ser tratado com muito cuidado. Investiguei isso muito. Gravei muitas conversas para entender sua natureza. Conversas não seguem uma progressão lógica. Alguém diz alguma coisa, a outra pessoa diz algo inteiramente diferente; se você analisar a conversa, você vê que é assim. Então mesmo se você usar diálogo ele não deve ser tão lógico e não deve conter muita informação sobre os segredos do filme ou o significado do filme. Diálogo, para mim, só funciona se for feito de bobagens, sem relação com o filme. Gosto de fazer isso o mais possível. Tento contar o significado do filme sem diálogo – com a situação, os gestos etc.. Essa é minha intenção, mas talvez eu não seja bem sucedido.”

Em um país dominado pela dramaturgia televisiva de novelas e séries – como é o caso do Brasil – nas quais os diálogos são o alicerce da narrativa, é compreensível que o cinema de Ceylan enfrente dificuldades para ser acolhido. É fácil perceber, porém, a pobreza da dramaturgia dialogal face à linguagem que se apoia na visualidade e na sonoridade, como a de Climas.

Nuri Bilge Ceylan e Ebru Ceylan, marido e mulher, formam o casal em via de desintegração do filme. Ela, além de atriz, é também fotógrafa e diretora. Segundo Ceylan, o fato dele e Ebru serem os protagonistas não tornou a feitura de Climas dolorosa: “Na verdade, não somos aquele tipo de casal que tem medo de falar do lado obscuro da vida. Nós gostamos de falar dele. Se você fala do lado obscuro da vida, você está mais protegido […] você corta a cabeça da cobra quando ela é pequena. Por isso, não houve nenhuma dificuldade para nós.”

Climas foi o primeiro filme de Ceylan registrado em meio digital. Para ele “filme parece uma bobagem – por que filmar de novo em película? Nunca voltarei a usar filme para fazer cinema ou fotografar. Acredito que devemos ser abertos e tirar partido das novas tecnologias para expressar nossas emoções mais profundas.”

Assine nossa newsletter

Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí