A fotógrafa Herlinde Koelbl retratou Angela Merkel durante anos, a partir de 1991. A moça do Leste que estreava na política da Alemanha reunificada ganhou confiança, mas nunca aparentou vaidade. O jeito de pessoa comum é um trunfo da chanceler FOTO: HERLINDE KOELBL_FOCUS-CONTACT PRESS IMAGES
A alemã tranquila
A ascensão de Angela Merkel, a mulher mais poderosa do mundo
George Packer | Edição 102, Março 2015
Tarde de verão no Reichstag. A cúpula de vidro filtra a luz de Berlim, iluminando os turistas na rampa espiralada e penetrando no salão do Parlamento. Metade dos assentos reservados aos deputados está vazia. Da tribuna, uma figura baixinha, um tanto encurvada, de casaquinho fúcsia, calça comprida preta e um penteado semelhante a um capacete “cor de burro quando foge”, lê um discurso. Angela Merkel, chanceler da República Federal da Alemanha, faz de tudo para soar desinteressante.
“Desde o início da crise na Ucrânia, estamos executando uma política com três vertentes”, diz ela, com os olhos no papel. Sua oratória monocórdica leva a plateia a prestar atenção em outra coisa. “Ao lado da primeira vertente, o apoio à Ucrânia, há uma segunda, que é o empenho incessante para encontrar, por meio do diálogo com a Rússia, uma solução diplomática para a crise.” Durante anos, falar em público sempre lhe foi penoso, sobretudo por não saber o que fazer com as mãos. Com o tempo, ela aprendeu a juntar as pontas dos dedos, formando um losango sobre a barriga.
O prédio do Reichstag foi construído na década de 1880, sob o governo do imperador Guilherme I e do chanceler Otto von Bismarck, quando uma Alemanha recém-unificada ascendia pela primeira vez a uma posição de destaque na Europa. Dois dias antes do fim da Primeira Guerra Mundial, um político social-democrata interrompeu seu almoço no interior do Reichstag, postou-se numa sacada do 1º andar do edifício e declarou a morte da Alemanha imperial: “Vida longa à República Alemã!”
O Reichstag foi a sede do turbulento Parlamento durante a República de Weimar e os primórdios do governo nazista, até que, na noite de 27 de fevereiro de 1933, um incêndio suspeito teve início no plenário e quase devastou o edifício. O novo chanceler da Alemanha, Adolf Hitler, correu para o local em companhia de seu assessor Joseph Goebbels e pôs a culpa do fogo nos comunistas, valendo-se da crise para suspender liberdades civis, esmagar a oposição e consolidar o poder nas mãos do partido nazista. O Parlamento votou por sua própria insignificância, e os nazistas nunca reformaram o prédio.
Quando a Segunda Guerra Mundial terminava, os soviéticos – que viam no Reichstag o símbolo do Terceiro Reich – fizeram do edifício um alvo primordial na batalha por Berlim. A fotografia de um soldado do Exército Vermelho hasteando a bandeira de seu país em meio às estátuas neoclássicas do telhado transformou-se na imagem da derrota alemã.
Durante a Guerra Fria, a cúpula arruinada do Reichstag e suas paredes repletas de buracos de balas não passavam de relíquias abandonadas na terra de ninguém que era o Centro de Berlim. O Muro, construído em 1961, ficava a poucos metros dos fundos do edifício, mantido a salvo das intempéries por uma reforma mínima efetuada na década de 60. De modo geral, o Reichstag permaneceu marginalizado até a Queda do Muro, em 1989. À meia-noite de 3 de outubro de 1990, postado do lado de fora do prédio, o presidente Richard von Weizsäcker anunciou – diante de uma multidão de 1 milhão de pessoas – a reunificação da Alemanha, em liberdade e paz. Berlim se tornou a capital do país.
Ao longo da década seguinte, até que o Bundestag, a Câmara dos Deputados, começasse a se reunir ali oficialmente, a reconstrução do Reichstag se deu em meio a um debate franco e carregado de simbolismo – assim como o edifício em ruínas evocava os anos de totalitarismo, sua reconfiguração expressava uma Alemanha reunificada. A cúpula magnífica, projetada por Norman Foster, sugeria transparência e abertura. Obedecendo a um senso de fidelidade histórica, preservou-se a sentença DEM DEUTSCHEN VOLKE (Ao Povo Alemão) – feita do metal de canhões franceses capturados nas Guerras Napoleônicas –, que encimava as colunas da entrada.
Após discussões no Parlamento, porém, encomendou-se a um artista teuto-americano a criação de um jardim interno, no qual a frase DER BEVÖLKERUNG (À População), desprovida do tom nacionalista do antigo lema, foi instalada em letras brancas em meio às plantas. Durante a reforma, descobriram nas paredes do 1º andar rabiscos em cirílico feitos por soldados do Exército Vermelho. Depois de novo debate, algumas dessas inscrições foram preservadas: nomes de combatentes, “de Moscou a Berlim, 9/5/45” e mesmo “Meti no cu de Hitler”. Lembretes históricos.
Nenhum outro país exibe a memória de seus conquistadores em seu mais importante edifício público. Os crimes alemães foram únicos, mas único também é seu modo de acertar as contas com a história. Ao integrar slogans dos soldados vitoriosos à sede de seu Parlamento, a Alemanha mostra que aprendeu lições essenciais de seu passado (coisa que os russos não aprenderam). Encarando o século XX, os alemães abraçam uma narrativa de libertação de si próprios do pior de sua história.
Em Berlim, as reminiscências estão por toda parte. Basta pegar o metrô na Stadtmitte, entre o Memorial aos Judeus Mortos da Europa e o museu Topografia do Terror, dedicado aos crimes da Gestapo, e dar uma olhadinha nas notícias que o monitor de vídeo exibe: “Há oitenta anos, o PEN Clube de Berlim foi forçado a se exilar.” Qual um aplicado paciente psicanalítico, a Alemanha trouxe seu passado à superfície, discutiu-o infinitamente, aceitou-o, e esse trabalho de muitos anos a libertou, possibilitando-lhe uma vida nova e bem-sucedida.
Da tribuna, Merkel continua falando. Relata uma reunião em Bruxelas do Grupo dos Sete, que acaba de expulsar seu oitavo membro, a Rússia, por causa da guerra na Ucrânia. “Seremos persistentes quando se tratar de estabelecer a liberdade, a justiça e a autodeterminação no continente”, diz. “Nossa tarefa é proteger o caminho soberano da Ucrânia e responder com ideias do século XXI globalizado à ultrapassada noção das esferas de influência, que remonta aos séculos XIX e XX.” Merkel alcançou o ápice de sua retórica – o tom monótono se desacelera, sua mão faz um gesto sutil, esticando os dedos. Para quem não fala alemão, é como se ela estivesse lendo as normas de regulação do sistema ferroviário nacional.
A chanceler recebe um longo aplauso e vai se acomodar atrás da tribuna, entre os ministros de seu gabinete. Merkel perdeu 10 quilos – no início de 2014 fraturou a pélvis num acidente de esqui e, acamada, trocou os sanduíches de linguiça por cenouras. O rosto mais fino, os olhos fundos e as bochechas caídas denunciam seu cansaço. Ela é chanceler desde 2005 e ganhou um terceiro mandato em setembro de 2013, sem nenhum rival à vista.
Discurso encerrado, é a vez da oposição, ou do que resta dela. A coalizão governista, formada pelos democratas-cristãos do CDU – o partido de Merkel – e pelos sociais-democratas do SPD, tem 80% das cadeiras no Bundestag. O Partido Verde, que foi mal na eleição de 2013, tem tido dificuldade para diferenciar sua agenda da de Merkel, a quem com frequência apoia. No momento, a oposição ficou restrita ao Die Linke, o partido de esquerda composto, em sua maioria, de políticos da antiga Alemanha Oriental, com apenas 10% dos assentos.
De terninho vermelho brilhante, a marxista ortodoxa Sahra Wagenknecht sobe à tribuna e passa a repreender Merkel pela política externa e econômica, responsável, afirma, por trazer o fascismo de volta à Europa. “Não podemos continuar abusando da posição altamente perigosa, semi-hegemônica, para a qual o país derrapou, no velho e implacável estilo alemão”, declara a deputada. Em seguida, cita o historiador francês Emmanuel Todd: “Sem dar-se conta, os alemães mais uma vez caminham para levar a calamidade aos demais povos europeus e, mais tarde, a si próprios.”
Merkel a ignora. Ri de alguma coisa com seu ministro da Economia, Sigmar Gabriel, e com o ministro das Relações Exteriores, Frank-Walter Steinmeier, ambos sociais-democratas. Enquanto Sahra Wagenknecht acusa o governo de apoiar fascistas em Kiev, Merkel se levanta para conversar com os ministros da fila de trás. Retorna à cadeira e remexe na bolsa vermelho-alaranjada, que destoa do casaquinho. Quando ergue os olhos para a oradora, ela o faz com um misto de tédio e desdém.
A deputada conclui sua catilinária, e os únicos a aplaudi-la são os membros de seu partido, isolados na extrema esquerda do plenário. Um a um, parlamentares do SPD e do Partido Verde se apresentam para defender Merkel. “Como é que a senhora pode nos comparar, a nós, alemães, com os fascistas?”, pergunta uma das líderes dos Verdes, Katrin Göring-Eckardt, e é aplaudida. Outra parlamentar, essa do Die Linke, intervém com uma citação de Bertolt Brecht: “Quem não sabe a verdade é só estúpido, mas quem sabe e diz que é mentira é criminoso.”
Katrin se sente injuriada. A vice-presidente do Bundestag exige que a deputada do Die Linke obedeça ao protocolo. Merkel segue ignorando a discussão; em certo momento, chega a voltar as costas para o plenário; em outro, deixa o salão. Mais tarde, os noticiários falarão em cenas dramáticas no normalmente sonolento Bundestag, mas a linguagem corporal de Merkel é inequívoca: o drama foi obra de uma minoria insignificante. A chanceler tem o Parlamento sob controle.
O historiador Fritz Stern considera a era da reunificação “a segunda chance da Alemanha” – uma nova oportunidade para que ela desfrute da posição de o mais poderoso país europeu, depois do catastrófico período que começou um século atrás. Merkel parece perfeitamente adequada às exigências dessa segunda chance. Num país que a retórica apaixonada e a pose de macho conduziram à ruína, o distanciamento analítico e a ausência de um ego aparente são vantagens políticas. Num continente em que o medo da Alemanha está longe de haver desaparecido, a chanceler, com seu ar de pessoa comum, atenua a eventual ameaça que uma Alemanha novamente em ascensão possa ocasionar. Os alemães a chamam de Mutti, “mamãe”. No início o apelido pretendia ser um insulto de seus adversários no CDU, e ela não gostou; mas, tão logo ele pegou, ela o adotou.
Enquanto boa parte da Europa está estagnada, a Alemanha é um gigante econômico, com desemprego baixo e uma sólida base manufatureira. A atual crise monetária da zona do euro transformou a maior nação credora da Europa numa superpotência regional. Se os Estados Unidos mergulham numa desigualdade cada vez mais profunda, a Alemanha preserva sua classe média e um alto nível de solidariedade social. Jovens indignados ocupam as praças em diversos países, mas na Alemanha as multidões se reúnem para concertos ao ar livre e para celebrar a Copa do Mundo. Hoje quase pacifista, a Alemanha ficou de fora de boa parte das guerras recentes, que se revelaram expedições punitivas inúteis para outros países ocidentais.
Nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, em maio de 2014, partidos da extrema esquerda e da extrema direita cresceram por todo o continente; na Alemanha, os vencedores foram centristas cujos rostos insipidamente afáveis sorriam nos cartazes, nenhum deles mais onipresente que o de Merkel, que nem sequer estava na disputa. A política americana está tão polarizada que o Congresso parou de funcionar na prática; o consenso na Alemanha é tão estável que novas leis brotam do Parlamento, ainda que o debate relevante tenha quase desaparecido.
“Autocrítica e autodepreciação integram a história de sucesso alemã – fortalecer-se odiando a si mesmo”, disse-me Mariam Lau, que cobre política para o semanário Die Zeit. “E Merkel também teve de se reeducar. Ela é fruto da autorreeducação da Alemanha.”
Entre os líderes alemães, Angela Merkel configura uma anomalia tripla: é mulher (divorciada, casada de novo, sem filhos), é cientista (química quântica) e é uma Ossi (ou seja, proveniente da Alemanha Oriental). Embora tais atributos façam dela uma outsider na política alemã, eles também ajudaram a impulsionar sua extraordinária ascensão. E, no entanto, na tentativa de explicar seu sucesso, alguns observadores olham para todos os lados, menos para a própria chanceler. Ao longo de sua carreira, a atual chanceler tem feito políticos mais velhos e mais poderosos – quase todos homens – pagarem um preço alto por subestimá-la.
Merkel nasceu em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, em 1954. Seu pai, Horst Kasner, era pastor da Igreja Luterana, uma das poucas instituições que operou nas duas Alemanhas. Severo e exigente, ele atravessou a fronteira com a família poucas semanas depois que Angela nasceu – e contra o desejo da mulher –, para assumir missões eclesiásticas na República Democrática Alemã. Naquele ano, quase 200 mil alemães orientais fugiram na direção contrária.
A decisão insólita de Kasner valeu-lhe a pecha de “pastor vermelho” por parte de dirigentes da igreja alemã-ocidental. Joachim Gauck, ex-pastor e dissidente alemão-oriental – eleito presidente da Alemanha (cargo em grande parte decorativo) em 2012 –, certa vez disse a um colega que, no lado comunista, os membros da Igreja Luterana mantinham distância de Kasner, integrante da Federação dos Pastores Evangélicos, controlada pelo Estado. Segundo a maioria dos relatos, as motivações de Kasner eram tanto carreiristas como ideológicas.
Angela, a mais velha de três filhos, foi criada nos arredores de Templin, uma cidade de paralelepípedos entre os pinheiros da floresta de Brandemburgo, ao norte de Berlim. Os Kasner moravam no seminário em Waldhof, um complexo de cerca de trinta edificações, muitas do século XIX, pertencente à Igreja Luterana. Waldhof abriga – até hoje – centenas de deficientes físicos e mentais, que lá aprendem um ofício e trabalham na agricultura. Ulrich Schöneich, administrador do local na década de 80, disse que no período comunista o lugar era horrível, com até sessenta homens entulhados num único cômodo, mobiliado apenas com camas de armar. Merkel certa vez comentou ter visto residentes amarrados a bancos, mas acrescentou: “Crescer perto de pessoas com deficiências foi uma experiência importante. Aprendi a tratá-los de um jeito muito normal.”
A formação de Angela num país comunista foi tão normal quanto ela conseguiu fazer que o fosse. “Nunca senti a RDA como meu país natal”, ela afirmou à fotógrafa alemã Herlinde Koelbl em 1991. “Tenho um espírito relativamente ensolarado e sempre tive a expectativa de que minha trajetória de vida seria também relativamente ensolarada, a despeito do que acontecesse. Nunca me permiti ser amarga. Sempre me vali da margem de liberdade que a RDA me permitia […] Não havia sombra sobre minha infância. E, mais tarde, agi de maneira tal a não me colocar em permanente conflito com o Estado.” Durante sua primeira campanha para a chefia do governo, em 2005, Merkel descreveu seus cálculos de forma mais direta: “Decidi que, se o sistema se tornasse demasiado terrível, eu tentaria fugir. Mas, se as coisas não fossem tão ruins, eu não faria da minha vida uma luta contra o sistema, porque tinha medo do mal que aquilo poderia me causar.”
Ser filha de um pastor protestante do Ocidente implicava privilégios e riscos. Os Kasner tinham dois carros: o onipresente Trabant – um caixote de lata de baixa potência que se tornou objeto de uma Ostalgiekitsch – e um Wartburg, mais luxuoso, que era o carro oficial da igreja. A família recebia roupa e comida de parentes em Hamburgo, assim como Forumschecks, cheques em marcos ocidentais aceitos nas lojas de hotéis de Berlim Oriental que vendiam produtos do Oeste.
“Eles pertenciam à elite”, disse Erika Benn, a professora de russo de Angela em Templin. A igreja, porém, mantinha certa independência do Estado, o bastante para que os Kasner vivessem sob suspeita. Durante a infância de Angela, organizações religiosas passaram a ser vistas como agentes da inteligência ocidental. Em 1994, um relatório oficial sobre a repressão na Alemanha Oriental concluiu: “Ao final da RDA, o país de Martinho Lutero havia sido descristianizado.”
Quem mais sofria na família era Herlind, a mãe de Angela, que transmitiu à filha a paixão pelo estudo. Professora de inglês, todo ano ela solicitava um emprego às autoridades educacionais, e elas sempre lhe respondiam não haver vagas disponíveis, embora carecessem de professores de inglês.
Angela era desajeitada, tanto que mais tarde ela se classificaria como “uma idiota motora”. Aos 5 anos, mal conseguia descer uma ladeira sem cair. “O que uma pessoa normal faz automaticamente para mim era, primeiro, um esforço mental, depois, objeto de exaustivos exercícios”, disse certa vez. De acordo com Erika Benn, na adolescência Merkel nunca foi “atirada” nem namoradeira. Não ligava para roupas, “sempre sem cor”, e “o corte de cabelo era uma coisa: ela parecia ter uma panela na cabeça”. Um ex-colega de escola certa vez a caracterizou como membro do Clube das Bocas Virgens, as que nunca foram beijadas – o tal colega se tornou chefe de polícia de Templin e quase perdeu o emprego quando esse comentário foi ventilado.
Merkel era uma estudante excepcional, com uma motivação feroz. Um parceiro político de longa data identifica naqueles primeiros anos em Templin a origem do ímpeto da chanceler. “Ela decidiu: ‘Não quer me comer? Tudo bem. Eu é que vou engolir você com as armas de que disponho’”, disse-me ele. “E essas armas eram sua inteligência, sua vontade e seu poder.”
Quando Angela estava na 8ª série, Erika Benn a recrutou para o Clube Russo, treinando-a para a Olimpíada de Língua Russa da Alemanha Oriental. Durante os ensaios de pequenos esquetes, a professora precisava exortar a aluna a erguer os olhos e sorrir ao oferecer um copo d’água a um colega: “Será que você poderia ser um pouco mais simpática?” Merkel saiu-se vencedora em todos os níveis, da competição entre escolas à nacional, feito que conseguiu três vezes, para a glória de Frau Benn, um membro do partido com ambições compatíveis com sua cidadezinha.
Em seu apartamento em Templin, Erika Benn, hoje com 76 anos, mostrou com orgulho um certificado de vitória de 1969. “O busto de Lênin está no porão”, acrescentou. Pouco antes de morrer, em 2011, Horst Kasner enviou um recorte de jornal a uma colega de Erika com uma foto da filha ao lado de Vladimir Putin. O presidente da Rússia externava sua admiração pelo fato inédito de poder conversar em sua língua materna com um líder mundial.
Angela Merkel estudou física na Universidade de Leipzig e concluiu um doutorado em química quântica em Berlim. Como nunca bateu de frente com o partido, foi favorecida no momento de ser aceita na pós-graduação. Ulrich Schoeneich – que, depois da reunificação, tornou-se prefeito de Templin – expressou sua amargura por não terem cobrado de Merkel sua acomodação ao sistema. O pai dele, Harro, também tinha sido pastor protestante, mas, ao contrário de Kasner, discordava publicamente do regime.
Schoeneich se recusou a entrar para a Juventude Livre Alemã, a “reserva combatente” do partido, organização à qual a maioria dos adolescentes da RDA aderia, inclusive Angela Kasner, que dela participou até a idade adulta. “Não apenas como um nome a mais, mas como a responsável por agitação e propaganda”, contou ele, mencionando Das Erste Leben der Angela M. [A Primeira Vida de Angela M.], uma recente e controvertida biografia da chanceler. E acrescentou: “Estou convencido de que ela só pôde fazer o doutorado porque era ativa na Juventude Livre Alemã, até mesmo na pós-graduação. Muitos dizem que éramos coagidos, mas eu sou a prova de que ninguém era obrigado a entrar para a organização.” A própria Merkel já admitiu que seu envolvimento era “70% oportunismo”.
Ulrich Schoeneich não obteve permissão para terminar o colegial, e passou boa parte da juventude pagando o pato pela oposição de sua família ao regime. Angela Kasner tinha outros planos para o futuro e fez, no máximo, uma oposição passiva. Evelyn Roll, uma das biógrafas da chanceler, descobriu um documento da Stasi de 1984 que a descrevia como “bastante crítica em relação ao Estado”, e prosseguia: “Desde a fundação do Solidariedade na Polônia, ela foi uma entusiasta de suas reivindicações e ações. Ainda que Angela identifique na União Soviética uma ditadura a que todos os demais países socialistas obedecem, ela é fascinada pela língua russa e pela cultura soviética.”
Rainer Eppelmann, corajoso clérigo dissidente do comunismo, conheceu Merkel logo após a Queda do Muro e se recusa a criticá-la: “As pessoas, em sua maioria, apenas sussurravam. Nunca diziam o que pensavam, o que sentiam, do que tinham medo. Até hoje, não temos plena consciência do efeito disso nos indivíduos.” Eppelmann acrescenta: “Para ser fiel a suas esperanças, ambições, crenças e sonhos, era preciso ser herói 24 horas por dia. Ninguém consegue.”
Depois de 1989, quando Merkel teve a oportunidade de entrar na política democrática, essas mesmas qualidades lhe foram úteis, mas de outra maneira. Eppelmann explica: “Uma pessoa acostumada a sussurrar pode ter mais facilidade para aprender uma vida nova: espera para ver, em vez de pôr tudo para fora de uma vez – ou seja, reflete antes de falar. Quem sussurra pensa: ‘Como é que posso dizer isso sem me prejudicar?’ É como um jogador de xadrez. Tenho a impressão de que ela pensa com mais cuidado e está sempre alguns lances à frente do adversário.”
Em 1977, aos 23 anos, Angela se casou com o físico Ulrich Merkel, mas o casamento logo fracassou, acabando em 1981. Passou a década final da RDA como química quântica na Academia de Ciências da Alemanha Oriental, uma sombria instalação de pesquisa em frente a um quartel da Stasi. Era a única mulher na seção de química teórica – observadora sagaz e curiosa a respeito de tudo.
Pessoas que acompanharam sua carreira atribuem a chave de seu sucesso político ao hábito de pensar em termos científicos. “Ela é praticamente a melhor analista de qualquer situação que eu possa imaginar”, afirma um alto funcionário do governo. “Examina vários vetores, extrapola e diz: ‘As coisas estão indo nessa direção.’”
Treinada para ver o mundo invisível das partículas e das ondas, Merkel aborda os problemas de maneira metódica, traçando comparações, imaginando cenários, pesando riscos, prevendo reações e, então, mesmo depois de tomada a decisão, deixa-a descansar antes de agir. Certa vez, ela contou um episódio de sua infância: havia ficado em pé no trampolim durante toda a aula de natação – só pulou na piscina quando a campainha tocou.
Distanciamento científico e cautela podem ser qualidades complementares numa ditadura. No caso de Merkel, a essas características juntaram-se os modos reticentes, com uma pitada de ironia, de uma mulher navegando por um mundo masculino. Ao longo de sua carreira, Merkel transformou em virtude o fato de saber esperar o momento certo e manter a boca fechada. “Ela não é uma mulher de emoções fortes”, diz Bernd Ulrich, subeditor do Zeit. “Emoção demais perturba a razão.”
De manhãzinha, Merkel deixava seu apartamento em Prenzlauer Berg – um bairro boêmio perto do Centro – e pegava o trem para a Academia de Ciências. Em vários trechos, seu trem corria paralelamente ao Muro, os telhados de Berlim Ocidental quase ao alcance da mão. Às vezes, ia para o trabalho em companhia de um colega, Michael Schindhelm. “Todo dia, desde cedo, você se confrontava com o absurdo desta cidade”, ele lembrou. Schindhelm considerava Merkel a pesquisadora mais séria da seção de química teórica, invariavelmente frustrada pela falta de acesso a publicações e cientistas ocidentais. Sempre que os colegas desciam para saudar a caravana que trazia do aeroporto alguma autoridade do mundo comunista, ela ficava trabalhando. “Queria mesmo chegar a algum lugar”, recorda o ex-colega. “Outros só queriam saber de ficar naquele nicho confortável, enquanto o país ia para o brejo.”
Em 1984, Schindhelm e Merkel passaram a dividir um escritório e, entre um e outro café turco que ela fazia, aproximaram-se. Os dois tinham uma visão relativamente crítica da Alemanha Oriental. Schindhelm estudara cinco anos na União Soviética e, quando as primeiras notícias da perestroika de Mikhail Gorbachev começaram a chegar, Merkel perguntou ao colega se ele via potencial de mudança naquele movimento. Ambos sentiam que o mundo além-Muro era mais desejável do que aquele em que viviam.
No ano seguinte, Merkel foi autorizada a ir ao casamento de um primo em Hamburgo. Depois de experimentar os trens milagrosamente confortáveis da Alemanha Ocidental, ela voltou a Berlim Oriental convencida de que o sistema socialista estava condenado. “Voltou muito impressionada, mas voltou”, disse Schindhelm. “Ficou na Alemanha Oriental não por lealdade ao Estado, mas porque era onde tinha sua rede de conhecidos, sua família.” Merkel, aos 30 e poucos anos, ansiava por 2014, quando, aos 60 anos, receberia a aposentadoria e teria permissão para viajar à Califórnia.
A segunda vida de Angela Merkel começou na noite de 9 de novembro de 1989. Em vez de se juntar à multidão delirante que afluía ao recém-aberto Muro, ela foi com uma amiga a sua sauna das quintas-feiras. Mais tarde cruzou o lado ocidental pelo controle da Bornholmer Strasse, mas, em vez de se encaminhar, como os demais, às lojas elegantes da Kurfürstendamm, logo voltou para casa – trabalhava no dia seguinte e precisava levantar cedo.
Nos meses seguintes, porém, nenhum alemão-oriental agarrou as novas liberdades com mais fervor do que Angela Merkel. Poucos princípios irredutíveis ficaram evidentes em sua carreira política, mas um deles é o direito de perseguir a própria felicidade. “Não são muitos os sentimentos que ela preza, mas a liberdade é um deles”, afirmou Katrin Göring-Eckardt, a líder do Partido Verde. “E isso, claro, tem a ver com a experiência de alguém que cresceu numa sociedade que censurava os jornais, bania os livros e proibia as viagens.”
Um mês depois da Queda do Muro, Merkel visitou o Despertar Democrático, um novo grupo político cujo escritório ficava perto de seu apartamento. “Posso ajudar?”, perguntou. E logo a encaminharam para instalar os computadores que haviam sido doados pelo governo alemão-ocidental. Voltava sempre, embora de início quase ninguém tenha notado sua presença. Era um momento em que as coisas acontecem rapidamente e o acaso e as circunstâncias podem fazer toda a diferença.
Em março de 1990, o líder do Despertar Democrático, Wolfgang Schnur, foi denunciado como informante da Stasi e, numa reunião de emergência, Rainer Eppelmann, o clérigo dissidente, foi escolhido para substituí-lo. Merkel foi incumbida de cuidar da multidão ruidosa de jornalistas, e ela o fez com tamanha calma e confiança que, passadas as eleições daquele mês na Alemanha Oriental, Eppelmann sugeriu o nome dela para porta-voz do primeiro e último primeiro-ministro eleito democraticamente no país: Lothar de Maizière.
“Ela era fleissig – o contrário de preguiçosa”, lembra Eppelmann. “Nunca se colocava em primeiro plano. Entendia que tinha um trabalho a fazer ali, e que precisava fazê-lo bem, mas que não era a chefe.” De Maizière já tinha um porta-voz, e Merkel se tornou a porta-voz assistente. “O Número 1 só se exibia, enquanto era ela quem fazia todo o trabalho”, conta Eppelmann. E assim Merkel ganhou a confiança de De Maizière, que passou a levá-la consigo em visitas a capitais estrangeiras. Certa ocasião, ele descreveu Merkel como uma “típica cientista da RDA”, de “saia longa, sandálias com tiras de couro e cabelo batidinho”. Depois de uma viagem ao exterior, ele pediu que seu staff a levasse para comprar roupas.
No começo dos anos 90, o cineasta Volker Schlöndorff, diretor de O Tambor, frequentou jantares mensais de um pequeno grupo de pessoas – do Leste e do Oeste – que incluía Merkel e seu parceiro, Joachim Sauer, outro cientista. (Eles viriam a se casar em 1998.) A cada encontro os convivas se reuniam numa casa diferente. O anfitrião falava de sua formação, e assim se sabia um pouco de como era a vida de um e outro lado. Schlöndorff viu em Merkel uma interlocutora muito séria, mas espirituosa. Num fim de tarde, na casa de campo extremamente modesta que ela e Sauer haviam construído perto de Templin, os dois foram passear pelos arredores. “Conversamos sobre a Alemanha, sobre o futuro do país”, Schlöndorff lembra. “Fui irônico e sarcástico, mas aquilo não colava com ela. Era como se me dissesse: ‘Olha, vamos falar sério, não se pode brincar com esses assuntos.’”
A determinação de entrar para a política é o principal mistério de uma vida opaca. Angela Merkel raras vezes fala sobre si mesma em público e nunca explicou essa decisão. Não foi um plano de longo prazo. Como a maioria dos alemães, ela não previu o colapso repentino do comunismo nem as oportunidades que ele acarretou. Mas, chegado o momento, Merkel, aos 30 e poucos anos, viu-se solteira e sem filhos, trabalhando numa instituição sem futuro da Alemanha Oriental. Uma mulher ambiciosa como ela há de ter compreendido que a política seria a esfera mais dinâmica da nova Alemanha. Schlöndorff resume: “Hesitante, ela agarrou a oportunidade.”
Na verdade, a reunificação significou a anexação do Leste pelo Oeste, o que demandava que se dessem a alemães-orientais postos importantes no governo. O fato de Merkel ser mulher e jovem fazia dela uma opção bastante atraente. O Despertar Democrático se fundiu ao CDU antes da primeira eleição na Alemanha reunificada, em outubro de 1990, e ela conquistou uma cadeira de deputada. Mexeu seus pauzinhos e foi apresentada ao chanceler Helmut Kohl, a quem De Maizière sugeriu seu nome para o gabinete. Para surpresa de Merkel, ela foi nomeada ministra da pasta Mulheres e Juventude – um posto, segundo admitiu a um jornalista, que não a interessava minimamente. Não era feminista nem tinha como causa a defesa da paridade econômica para a antiga Alemanha Oriental. Na verdade, não tinha agenda política. De acordo com Karl Feldmeyer, repórter de política do Frankfurter Allgemeine, ela era movida por um “instinto perfeito para o poder”.
Kohl, à época no auge, apresentava Merkel a dignitários estrangeiros como uma peça rara, diminuindo-a ao chamá-la de mein Mädchen – “minha garota”. Foi preciso ensiná-la a usar cartão de crédito. As reuniões de gabinete eram dominadas pelo chanceler e Merkel, embora sempre bem preparada, raramente falava. Em seu Ministério, no entanto, era respeitada pela eficiência com que absorvia informações, e temida por seu temperamento e falta de papas na língua. Segundo sua biógrafa Evelyn Roll, ela ganhou o apelido de “Angie, a cobra”, e a fama de ser pouco receptiva a críticas. Em 1994, ao ser nomeada para o Meio Ambiente, ela exonerou o mais importante funcionário do Ministério quando ele sugeriu que ela precisaria de sua ajuda para tocar o trabalho.
Em 1991, Herlinde Koelbl deu início a seu projeto Vestígios do Poder – ao longo de uma década, ela fotografaria políticos alemães, para registrar em que medida a vida pública os modificaria. A maior parte dos homens – como Gerhard Schröder, social-democrata que se tornou chanceler em 1998, e Joschka Fischer, que foi seu ministro das Relações Exteriores – pareceu inflar de orgulho. Herlinde disse que Merkel permaneceu ela mesma: “Um tanto desajeitada em sua linguagem corporal.” Todavia, acrescentou, “podia-se sentir sua força desde o começo”. No primeiro retrato, com o queixo ligeiramente caído, ela olha para a câmera; não demonstra propriamente timidez, e sim prudência. As fotografias sucessivas revelam uma confiança crescente. Nas sessões, Merkel estava sempre com pressa, sem tempo para conversa mole. “Schröder e Fischer são vaidosos”, diz Koelbl. “Merkel não, continua sem vaidade. E isso a ajudou, porque, se você é vaidoso, vê tudo de forma subjetiva. Se não é, é mais objetivo.”
Fazer política numa democracia era um jogo que Merkel tinha de aprender com o mesmo método que ensinara seu corpo a controlar sua “idiotia motora”, aos 5 anos. Tornou-se uma estudante tão aplicada que preocupou alguns colegas da antiga Alemanha Oriental. Petra Pau, deputada do Die Linke, certa feita flagrou-a dizendo: “Nós, alemães-ocidentais…” Mas o que fez de Merkel uma figura potencialmente transformadora na política alemã foi que, no fundo, ela não era parte daquilo. O CDU era mais receptivo que o SPD a alemães-orientais de mentalidade liberal. Mas era também um patriarcado enfadonho, cuja base era o sul católico da Alemanha. “Mentalmente, ela nunca integrou o CDU”, observa Feldmeyer, o jornalista do Frankfurter Allgemeine. “É estranha a tudo no partido. Ele não passa de uma ferramenta para o poder dela.”
Alan Posener, do jornal conservador Die Welt, disse: “A pauta que motiva a base do CDU nada significa para ela” – questões como “mães que trabalham fora, casamento gay, imigração, divórcio”. O mesmo vale para a aliança transatlântica com os Estados Unidos, a pedra fundamental da segurança da Alemanha Ocidental. Posener disse que Merkel estudou os detalhes dessa aliança “no manual do CDU”. Michael Naumann, editor de livros e jornalista que foi ministro da Cultura de Schröder, comenta: “A atitude dela em relação aos Estados Unidos é uma atitude aprendida.” Dirk Kurbjuweit, biógrafo de Merkel e jornalista da revista Spiegel, afirma: “Ela de fato preza a liberdade, porque sofreu com a falta dela na RDA. Por outro lado, aprendeu a democracia – não é uma democrata inata, como ocorre com os americanos.”
Os políticos da Alemanha Ocidental da geração de Merkel se formaram nas rebeliões culturais subsequentes às revoltas de 68, que mal chegaram a ela. Certa noite, num jantar em meados da década de 90, Merkel pediu ao ex-radical Schlöndorff que lhe explicasse a violência cometida pelo grupo Baader-Meinhof. Ele lhe disse que os jovens queriam romper com a cultura autoritária que vigorava na Alemanha, mesmo com a derrota dos nazistas. Quanto mais explicava, menos ela parecia se solidarizar: não era contra a autoridade, a não ser aquela do tipo praticado na Alemanha Oriental. No Ocidente, os jovens reclamavam do quê? Para Merkel, os alemães-ocidentais pareciam crianças mimadas.
A despeito de todo o terreno que ela teve de recuperar em sua educação política, ser alemã-oriental lhe deu certas vantagens: tinha a autodisciplina, a força de vontade e o silêncio como ferramentas essenciais. “Para sobreviver e ter sucesso, cometer erros estava fora de questão”, disse Feldmeyer.
No início de sua carreira política, Merkel contratou a jovem Beate Baumann, do CDU, para administrar seu escritório. Baumann, até hoje sua conselheira mais influente, era a Número 2 perfeita: leal, discreta e a única que se dirigia à chefe com total franqueza. “Baumann não podia ser uma política, e Merkel não estava familiarizada com o Ocidente”, disse Bernd Ulrich, do Zeit. “Ela era sua intérprete para tudo que fosse tipicamente alemão-ocidental.”
Cansadas das atitudes intimidatórias e presunçosas de Kohl, as duas praticavam uma forma de “crueldade invisível”: jogavam duro, mas saboreavam as vitórias em particular, sem provocar inimizades desnecessárias. “O estilo delas”, diz Ulrich, “não é o de House of Cards.” Numa única e rara oportunidade, Merkel mostrou os dentes. Em 1996, durante negociações sobre uma lei relativa a lixo atômico, Gerhard Schröder, a dois anos de se tornar chanceler, classificou de “lamentável” o desempenho dela como ministra do Meio Ambiente. Na sessão de fotos daquele ano, Merkel afirmou a Herlinde Koelbl: “Eu vou encurralá-lo, como ele fez comigo. Ainda preciso de tempo, mas esse dia vai chegar.” Foram necessários nove anos para que se cumprisse seu veredicto.
Em 1998, em meio a uma recessão, Schröder derrotou Kohl e se tornou chanceler. No verão seguinte, Volker Schlöndorff, numa recepção ao ar livre em sua casa em Potsdam, apresentou Merkel a um produtor de cinema e, meio brincando, chamou-a de “a primeira chanceler da Alemanha”. Merkel fuzilou-o com o olhar, como se ele a tivesse forçado a mostrar suas cartas – Como você se atreve?–, o que convenceu Schlöndorff de que ela de fato queria o cargo. O produtor, um integrante do CDU, mal pôde acreditar. Schlöndorff comentou: “Esses caras cujo partido estava no poder desde sempre não podiam imaginar que uma mulher pudesse se tornar chanceler – e ainda por cima uma alemã-oriental.”
Em novembro de 1999, o CDU foi engolido por um escândalo de financiamento de campanha, acusado de não declarar doações em dinheiro e de possuir contas bancárias secretas. Tanto Kohl como seu sucessor na chefia do partido, Wolfgang Schäuble, estavam implicados, mas Kohl era tão reverenciado que ninguém no CDU ousava criticá-lo. Merkel, que ascendera ao posto de secretária-geral do partido depois da derrota nas eleições, viu sua oportunidade. Telefonou para Karl Feldmeyer e disse: “Eu gostaria de dar algumas declarações para o seu jornal.” “A senhora sabe o que quer dizer?”, perguntou Feldmeyer. “Tenho tudo por escrito.”
Feldmeyer sugeriu que, em vez de uma entrevista, ela publicasse um artigo. Cinco minutos mais tarde, um fax chegou, e Feldmeyer espantou-se ao ler seu conteúdo. Merkel, uma figura relativamente nova no CDU, conclamava o partido a romper com seu líder de tanto tempo: “É hora de aprender a andar e se lançar em futuras batalhas contra os oponentes políticos sem ‘o velho cavalo de guerra’, como tantas vezes Kohl referia-se a si próprio”, escreveu Merkel. “Nós, que hoje carregamos a responsabilidade pelo partido – e não tanto Helmut Kohl –, decidiremos que caminhos tomar na nova era.”
Ela publicou o artigo sem avisar Schäuble, o presidente do CDU, envolvido no escândalo. Num gesto que misturava virtude protestante com crueldade, a “garota” de Kohl se desprendia de seu genitor político e apostava a própria carreira num oferecimento explícito para ocupar seu lugar. Deu certo. Em poucos meses, Merkel era eleita presidente do partido, e Kohl se retirava para a história. “Ela enfiou a faca nas costas dele e girou duas vezes”, diz Feldmeyer. Foi o momento em que pela primeira vez muitos alemães se deram conta da existência de Angela Merkel.
Anos mais tarde, num jantar, Michael Naumann perguntou a Kohl: “Herr Kohl, o que ela quer de fato?” “Poder”, foi a resposta concisa. A outro amigo, Kohl disse que seu apoio à jovem Merkel tinha sido o maior erro de sua vida: “Trouxe comigo a minha assassina”, disse ele. “Enrolei a cobra no braço.”
Em 2002, Merkel se viu à beira de perder uma votação no CDU que definiria o candidato a chanceler nas eleições daquele ano. Às pressas, ela agendou um café da manhã com seu rival, o líder bávaro Edmund Stoiber, na terra natal dele. Disciplinada o bastante para controlar as próprias ambições, Merkel disse a Stoiber que estava retirando sua candidatura em favor da dele. Ao evitar uma derrota que teria prejudicado seu futuro dentro do partido, Merkel acabou fortalecendo sua posição. Stoiber perdeu para Schröder, e ela foi em frente, suplantando uma série de pesos-pesados do Oeste. Esperava até que cometessem um erro ou que se engolissem uns aos outros, antes de se livrar de cada um deles com um peteleco.
John Kornblum, ex-embaixador dos Estados Unidos na Alemanha que continua morando em Berlim, disse: “Se você cruzar o caminho dela, vai acabar morto. Ela não é fácil. Há toda uma lista de machos alfa que pensaram poder derrubá-la. Todos mudaram de ramo.” No quinquagésimo aniversário de Merkel, em 2004, o político conservador Michael Glos publicou uma homenagem a ela:
Cuidado: despretensão pode ser uma arma! […] Um dos segredos do sucesso de Angela Merkel é que ela sabe lidar com homens vaidosos. Sabe que o momento certo de abater um pavão é quando ele está cortejando a fêmea. Angela Merkel é uma caçadora paciente de pavões. Com a paciência de um anjo, ela espera o momento adequado.
A política alemã estava entrando numa nova era. À medida que o país se tornava mais “normal”, já não precisava de líderes que também fossem figuras paternas dominadoras. “Merkel teve a sorte de viver numa época em que a figura do macho estava em declínio”, diz Ulrich. “Os homens não notaram isso, mas ela sim. Não precisou lutar contra eles.” E acrescenta: “Se tem uma coisa que ela conhece, essa coisa é o macho a ser abatido. É o que ela come no café da manhã, no lugar dos cereais.” A aparência física pouco atraente, combinada à opacidade emocional, tornou difícil aos rivais reconhecer a ameaça que ela representava. “Não é fácil conhecê-la, e essa é a razão do seu sucesso”, afirma o parceiro político de longa data.
Quando Schröder antecipou as eleições em 2005, Merkel se tornou a candidata do CDU à Chancelaria. Na política dos machos, Schröder e Fischer – valentões de rua que adoravam uma discussão política e vinhos caros, com um total de sete ex-mulheres, somando os dois – tinham precedência. Ambos desprezavam Merkel, e o sentimento era recíproco. Segundo Dirk Kurbjuweit, da Spiegel, Schröder e Fischer às vezes riam como “garotos num playground” quando Merkel discursava no Bundestag. Em 2001, depois da publicação de fotos que mostravam Fischer, ainda jovem militante nos anos 70, atacando um policial, Merkel o condenou, declarando-o inepto para a vida pública até que “pagasse” por seus erros – um comentário que muitos alemães acharam demasiado veemente. Durante a campanha de 2005, Fischer disse em conversas particulares que Merkel era incapaz para o exercício do cargo.
À época, Schröder governava numa coalizão com os verdes, e o público se cansara da prolongada estagnação econômica. Durante boa parte da campanha, o CDU liderou com folga, mas os sociais-democratas diminuíram a diferença e, no dia da eleição, os dois partidos apareceram praticamente empatados no voto popular. Alan Posener, do Welt, viu Merkel naquela noite, no quartel-general do CDU. Ela parecia ter murchado, ladeada por políticos que dispensara no passado e que não escondiam sua alegria. Merkel havia cometido dois erros quase fatais.
O primeiro, pouco antes da invasão do Iraque – impopular na Alemanha e repudiada por Schröder –, ao publicar um artigo no Washington Post intitulado “Schröder não fala por toda a Alemanha”, no qual por pouco não declarou apoio à guerra. “Mais uma frase a favor de Bush e contra Schröder, e hoje ela não seria chanceler”, opina Ulrich. O segundo, pelo fato de muitos de seus conselheiros, defensores do livre mercado, advogarem mudanças tributárias e trabalhistas que iam muito além do que os alemães aceitariam. Passados quinze anos, ela ainda não conseguia detectar as inclinações da opinião pública.
Na noite da eleição, Schröder, Fischer e outras lideranças partidárias se reuniram num estúdio de tevê para discutir os resultados. Merkel, parecendo exausta e em choque, permanecia quase muda. Schröder, cabelos castanhos tingidos e penteados para trás, sorria irônica e maliciosamente e, na prática, declarou-se o vencedor. “Continuarei sendo chanceler”, disse. “O senhor acredita mesmo”, perguntou a um dos moderadores, “que meu partido aceitaria uma oferta da senhora Merkel para conversar, se ela diz que gostaria, ela própria, de se tornar chanceler? Sejamos objetivos.” Muitos telespectadores pensaram que ele estivesse bêbado. Enquanto Schröder seguia se gabando, Merkel foi aos poucos ganhando vida, como se a performance do chanceler a divertisse. Ela pareceu se dar conta de que a fanfarronice de Schröder acabava de lhe garantir a chancelaria. Com um leve sorriso, pôs Schröder no devido lugar. “Falando clara e simplesmente, o senhor não ganhou hoje”, disse. De fato, o CDU tinha uma vantagem minúscula. “Com um pouco de tempo para refletir, até os sociais-democratas vão acabar aceitando essa realidade. E prometo que não vamos virar as regras democráticas de cabeça para baixo.”
Dois meses depois, Angela Merkel tomava posse como primeira chanceler da Alemanha.
Aqueles que conhecem Merkel dizem que ela é tão animada e divertida em privado quanto soporífera em público – uma cisão no modo de se apresentar que ela aprendeu ainda jovem, como alemã-oriental. (Por intermédio de seu porta-voz, Merkel, que dá poucas entrevistas – quase sempre para publicações alemãs e todas elas anódinas –, recusou uma conversa comigo.) Em papos off the record com jornalistas alemães, ela reproduz diálogos inteiros que teve com outros líderes mundiais e faz excelentes imitações. Entre seus alvos preferidos já figuraram Kohl, Putin, o recentemente falecido rei Abdullah, da Arábia Saudita, o papa Bento XVI e Al Gore. Após uma reunião com Nicolas Sarkozy, durante a crise do euro, Merkel contou a um grupo de jornalistas que o pé do presidente francês balançava o tempo todo.
“Ela é mestre na arte de ouvir”, diz o parceiro político de longa data. “Numa conversa, fala 20% do tempo, e você, oitenta. Dá a todo mundo aquela impressão de ‘eu quero ouvir o que você tem a dizer’. Mas a verdade é que forma seu juízo em três minutos, e às vezes acha que os dezoito restantes são um desperdício de tempo.”
Merkel também é capaz de causar embaraço a seus subordinados. Certa vez, num quarto de hotel de Viena, ela contava a assessores da chancelaria e do Ministério das Relações Exteriores histórias engraçadas de viagens que fizera quando estudante. Os assessores se dobravam de tanto rir, até que ela os cortou: “Eu já contei essa história a vocês.” Eles insistiram que não, nunca tinham ouvido aquilo, mas não adiantou: madame chanceler os estava chamando de bajuladores.
Depois das eleições de 2013, ela encontrou o líder social-democrata Sigmar Gabriel, que hoje é seu ministro da Economia. Gabriel a apresentou a um de seus assessores, dizendo: “Ele é quem tem estado de olho em mim nos últimos anos, para garantir que eu não faça nenhuma besteira em público.” Merkel emendou na lata: “E tem funcionado, de vez em quando.”
“Schadenfreude”, rir da desgraça alheia, “é a maneira que ela tem de se divertir”, afirma Kurbjuweit, da Spiegel.
Como chanceler, Angela Merkel tem procurado ficar o mais próximo possível da opinião pública alemã. Segundo Posener, depois de quase perder para Schröder, ela disse a si mesma: “Quero ser tudo para todas as pessoas.” Tanto críticos como apoiadores a descrevem como uma estrategista talentosa, mas desprovida de uma visão mais ampla. Kornblum, o ex-embaixador, certa vez perguntou a um assessor de Merkel sobre a visão de longo prazo de sua chefe. “Sua visão de longo prazo é de cerca de duas semanas”, foi a resposta. O termo pejorativo mais frequentemente empregado contra ela é “oportunista”. Quando perguntei a Katrin Göring-Eckardt, a líder do Partido Verde, se a chanceler tinha algum princípio, ela fez uma pausa e respondeu: “Ela valoriza muito a liberdade. Todo o resto é negociável.” (Outros alemães acrescentaram à lista o apoio firme a Israel.)
“As pessoas dizem que não há um projeto, que não há uma ideia”, diz o alto funcionário – aquele que afirmara não conhecer melhor analista que ela –, “que são nove anos de um zigue-zague de jogadas inteligentes.” Mas, completa, “ela diria que os tempos não favorecem estratégias ambiciosas”.
O desafio mais assustador enfrentado por Angela Merkel tem sido a crise na zona do euro, que ameaçou derrubar economias do sul da Europa e pôs em risco a integridade da moeda única. Para ela, a crise confirmou o perigo que iniciativas muito ambiciosas podem representar. Kohl, que pensava em termos históricos, atrelou a Alemanha a uma moeda europeia sem a união política que poderia fazer com que isso funcionasse. “Acabou virando uma máquina infernal”, afirma o alto funcionário. “Ela ainda está tentando consertá-la.”
As decisões tomadas por Merkel no momento mais agudo da crise refletem cálculos de um político mais preocupado com seus eleitores do que com seu lugar na história. No final de 2009, quando se soube que a dívida grega chegara a níveis críticos, ela demorou a se comprometer a colocar dinheiro dos contribuintes alemães num fundo de resgate. A Alemanha tinha, de longe, a economia mais forte da Europa, com uma indústria e exportações robustas que se beneficiaram do enfraquecimento do euro. No governo de Schröder, reformas trabalhistas e da previdência social haviam tornado o país mais competitivo, e Merkel colheu os benefícios.
Ao longo de toda a crise, ela mergulhou em minúcias econômicas e se recusou a ir além do que os eleitores alemães – que tendiam a ver os gregos como perdulários e preguiçosos – estariam dispostos a aceitar, ainda que essa demora prolongasse o problema e ameaçasse o próprio euro. O romancista e jornalista Peter Schneider a comparou a um motorista na neblina: “Você só vê 5 metros adiante, e não 100; portanto, é melhor ser cauteloso, não dizer muita coisa, dar um passo de cada vez. Ou seja, visão nenhuma.”
Karl-Theodor zu Guttenberg, que foi ministro da Defesa entre 2009 e 2011, disse que Merkel optou por uma abordagem “maquiavélica” da crise. Manteve todas as possibilidades pelo máximo de tempo possível e, depois, encobriu suas decisões numa “nuvem de complexidade”. “Isso lhe possibilitou mudar de opinião diversas vezes, mas, à época, ninguém notou”, disse o ex-ministro.
No fim, sob a pressão de outros líderes europeus e do presidente Obama, Merkel endossou em maio de 2010 um plano que, mediante a compra de títulos gregos pelo Banco Central Europeu, impediria um default da Grécia – como, aliás, o Federal Reserve havia feito durante a crise financeira norte-americana. Em troca, os países do sul da Europa se submeteram a regras orçamentárias estritas e à supervisão de seus bancos centrais pela União Europeia. Merkel percebeu que não podia permitir que a crise da zona do euro arruinasse o projeto de unidade europeia. “Se o euro acabar, a Europa acaba”, declarou. O euro foi salvo, mas à custa de políticas ruinosas de austeridade e de alto desemprego. Em boa parte da Europa, predomina o ressentimento em relação à filha do pastor protestante, vista como uma puritana rígida e dona da verdade, enquanto o apoio à União Europeia cai a seus níveis históricos mais baixos.
O compromisso com uma Europa unida não provém de um idealismo de Merkel, mas de sua percepção dos interesses alemães – uma forma branda de nacionalismo que reflete a confiança e a força crescente do país. O problema alemão histórico, o país que Henry Kissinger descreveu como “grande demais para a Europa, mas pequeno demais para o mundo”, só pode ser superado com uma Europa unida. Segundo Kurbjuweit, o biógrafo, “ela precisa da Europa porque – e isto é duro de dizer, mas é verdade – a Europa torna a Alemanha maior”.
As políticas de austeridade de Merkel, porém, têm ajudado a enfraquecer a Europa, e essa fraqueza começou a afetar a Alemanha, cujo crescimento vem desacelerando nos últimos três anos. Na própria Alemanha, depois da eleição de 2005, a chanceler teve de refrear sua inclinação ao livre mercado para preservar sua viabilidade política. Exportou suas ideias para o resto do continente, aplicando-as sem considerar as condições macroeconômicas, como se impor as virtudes da parcimônia e da disciplina constituísse a missão de uma Alemanha ressurgente.
Merkel é obcecada com questões demográficas e de competitividade. Adora ler gráficos. Em setembro, um dos seus principais assessores me mostrou uma pilha de gráficos que ela acabara de examinar. Mostravam o desempenho relativo de diferentes economias europeias com base numa variedade de indicadores. Em termos do custo unitário do trabalho, destacou ele, a Alemanha possui índices bem abaixo da média da zona do euro, mas a população alemã – a maior da Europa – está estagnada e envelhecendo. “Um país como esse não pode se endividar mais e mais”, concluiu o assessor.
Stefan Reinecke, do diário esquerdista Tageszeitung, observa: “Não importa o discurso que esteja fazendo, depois de meia hora, quando todo mundo já dormiu, Merkel diz três coisas: que a Europa tem apenas 7% da população mundial, 25% da produção econômica, mas 50% do gasto com o bem-estar social – e precisamos mudar isso.” Ela se queixa de que a Alemanha não tem um Vale do Silício. “Não existe um Facebook ou uma Amazon alemães”, diz o assessor. “Além disso, há essa tendência que você pode ver em Berlim: somos tão afluentes que imaginamos que sempre vai ser assim, mesmo sem saber de onde virá a riqueza. Somos totalmente acomodados.”
O fato de a Alemanha ser forte demais, enquanto a Europa é demasiado fraca, deixa os alemães extremamente inquietos. Mas Merkel jamais discute o problema. Joschka Fischer – que já a elogiou em outras questões – critica esse silêncio. “Intelectualmente, é um desafio muito grande transformar a força nacional em força europeia”, diz ele. “E a maioria da elite política e econômica na Alemanha, incluindo a chanceler, não tem a menor ideia de como fazer isso.”
Os dois líderes mundiais com quem Merkel mantém as mais importantes e complexas relações são Obama, a quem ela respeita com certa relutância, e Putin, por quem ela nutre profunda desconfiança. Quando o Muro caiu, Putin era um major da KGB lotado em Dresden. Valendo-se de seu alemão fluente e de um revólver, impediu que uma multidão de alemães-orientais invadisse o escritório da KGB e pilhasse documentos secretos, que posteriormente destruiu. Doze anos mais tarde, um Putin bem mais conciliador falou ao Bundestag “na língua de Goethe, Schiller e Kant”, declarando a Rússia um “país europeu amistoso” cujo “principal objetivo é uma paz estável no continente”. Louvou a democracia, condenou o autoritarismo e foi ovacionado por uma plateia que incluía Angela Merkel.
Depois de décadas de guerra, destruição e ocupação, as relações entre Alemanha e Rússia retornavam à dinâmica mais amistosa que prevalecia antes do século XX. Os formuladores das políticas alemãs falaram em “parceria estratégica” e numa “reaproximação pela via da integração econômica”. Em 2005, Schröder aprovou a construção de um gasoduto que cruzava o mar Báltico até a Rússia. Ele e Putin ficaram amigos, e Schröder caracterizou o russo como um “democrata impecável”. Na última década, a Alemanha se tornou uma das maiores parceiras comerciais da Rússia, que agora fornece 40% do gás consumido na Alemanha. Duzentos mil cidadãos russos vivem na Alemanha, e a Rússia possui extensos vínculos com o empresariado alemão e com o SDP.
Como na juventude viajava de carona pelas repúblicas soviéticas, conversando na língua local, Merkel – mais do que os outros políticos ocidentais – é sensível às aspirações e aos ressentimentos russos. Em seu escritório, há um retrato emoldurado de Catarina, a Grande, a imperatriz nascida na Prússia que no século XVIII conduziu a Rússia a uma época de ouro. Como ex-alemã-oriental, porém, a chanceler tem poucas ilusões a respeito de Putin. Depois que ele discursou no Bundestag, Merkel disse a um colega: “É a típica conversa da KGB. Nunca confie nesse sujeito.” Ulrich, do Zeit, afirma: “Ela sempre foi cética em relação a Putin, mas não o odeia. Odiar seria emoção demais para ela.”
Quando Putin e Merkel se encontram, nas vezes em que conversam em alemão – ele fala melhor a língua dela que ela a dele –, o russo corrige seu próprio intérprete, para que a interlocutora saiba que nada lhe escapa. O tipo de macho que Putin representa desperta nela uma espécie de interesse científico. Em 2007, na residência do presidente russo em Sochi, os dois discutiam sobre o fornecimento de energia. O anfitrião chamou seu labrador preto, Koni, para dentro da sala onde ocorria a conversa. Quando o cachorro se aproximou de Merkel, a chanceler ficou paralisada. Certa ocasião, em 1995, um cachorro a mordera, e aquele trauma não há de ter escapado ao anfitrião, que se recostou na poltrona para desfrutar do momento, as pernas bem abertas. “Tenho certeza de que ele vai se comportar”, disse. Merkel teve a presença de espírito de responder, em russo: “Bom, ele pelo menos não come jornalistas.”
A imprensa alemã ficou furiosa com o tratamento dispensado à chanceler e estava “disposta a dar um murro em Putin”, segundo um repórter que estava presente. Mais tarde, Merkel interpretou o comportamento dele: “Eu entendo por que Putin precisa fazer isso. É para provar que é homem”, disse. “Teme a própria fraqueza. A Rússia não tem nada, não tem uma política nem uma economia bem-sucedida. Ela só tem isso.”
No começo de 2008, quando George W. Bush tentou trazer a Ucrânia e a Geórgia para a Organização do Tratado do Atlântico Norte, a Otan, Merkel bloqueou a iniciativa, preocupada com a reação russa e com a desestabilização que aquilo poderia provocar na fronteira oriental da Europa. No mesmo ano, depois de a Rússia invadir duas regiões da Geórgia – Abecásia e Ossétia do Sul –, ela mudou de ideia e se mostrou aberta à entrada da Geórgia na Otan.
Merkel continuou tentando manter o equilíbrio entre a unidade europeia, a aliança com os Estados Unidos, os interesses comerciais da Alemanha e as relações com a Rússia. Atribui-se ao imperador Guilherme I a observação de que somente Bismarck, que atrelou a Alemanha a um conjunto de alianças que se contrabalançavam, era capaz de tamanho malabarismo, mantendo quatro ou cinco bolinhas no ar. Seu sucessor, Leo von Caprivi, queixou-se de que mal conseguia equilibrar duas; em 1890, pôs fim ao tratado da Alemanha com a Rússia, contribuindo para o cenário que levou à Primeira Guerra Mundial.
Quando, em março de 2014, a Rússia anexou a Crimeia e incitou uma guerra separatista no leste da Ucrânia, coube a Merkel obter sucesso naquilo que líderes alemães anteriores haviam fracassado catastroficamente.
A agressão russa à Ucrânia espantou os alemães, assombrados pela história e defensores da obediência às regras. “Putin surpreendeu todo o mundo, Merkel inclusive”, disse-me o assessor graduado da chanceler. “A rapidez, a brutalidade, a frieza. É tão século XX – os tanques, a propaganda, os agentes provocadores.”
Embora tenha descartado qualquer reação militar, a chanceler declarou que as ações da Rússia eram inaceitáveis – a integridade territorial era parte inviolável da ordem europeia no pós-guerra – e exigiam uma resposta séria do Ocidente. Pela primeira vez depois de ocupar o cargo, Merkel não tinha o público a seu lado. As primeiras pesquisas de opinião mostravam que a maioria dos alemães queria que ela adotasse uma posição intermediária entre o Ocidente e a Rússia. Uma minoria substancial – sobretudo na antiga Alemanha Oriental – se solidarizava com o argumento russo de que a expansão da Otan havia forçado Putin a agir defensivamente, e que os líderes ucranianos eram provocadores fascistas. Helmut Schmidt, o ex-chanceler social-democrata, manifestou opiniões nesse sentido, assim como Gerhard Schröder – que agora atuava como lobista para uma companhia controlada pela gigante russa de petróleo e gás, a Gazprom, e que havia comemorado seu septuagésimo aniversário com Putin, em São Petersburgo, um mês depois de a Rússia anexar a Crimeia.
Um fosso se abriu entre a opinião popular e a elite. Cartas de protesto inundaram as redações de jornais que defendiam o endurecimento contra a Rússia. Merkel, fiel a seu estilo, nada fez para aproximar os dois lados. A crise provocava em grande parte da população uma mescla de indiferença e ansiedade. Eles se ressentiam de ter seu belo sono perturbado.
“A maioria quer paz e uma vida confortável”, disse Alexander Rahr, conselheiro da companhia de petróleo e gás alemã Wintershall. “Não querem conflito nem uma nova Guerra Fria. E, para tanto, gostariam que os Estados Unidos se mantivessem bem longe da Europa. Se a Rússia quer a Ucrânia, com a qual poucos se solidarizam, que fique com ela.” De certo modo, a culpa histórica da Alemanha – que inclui a morte de mais de 20 milhões de soviéticos na Segunda Guerra Mundial – contribui para a passividade do país.
Alemães e russos compartilham memórias tão terríveis que qualquer sugestão de conflito conduz ao impensável. Michael Naumann analisou a crise ucraniana no contexto desse “vínculo emocional gigantesco entre criminoso e vítima”, no qual a Alemanha sempre assume a posição mais fraca. Em 1999, Naumann, então ministro da Cultura de Schröder, tentou negociar a devolução de milhões de objetos de arte que os russos levaram da Alemanha Oriental depois da Segunda Guerra Mundial. Durante as negociações, ele e seu colega russo, Nikolai Gubenko, falaram do próprio passado.
Naumann, nascido em 1941, ficou órfão de pai no ano seguinte, na Batalha de Stalingrado. Gubenko, também de 1941, perdeu o pai em ação. Cinco meses depois, sua mãe seria enforcada pelos alemães. “Xeque-mate”, o russo disse ao alemão. E os dois choraram. “Não havia nada a negociar”, Naumann recorda. Gubenko disse: “Enquanto eu viver, não vamos devolver coisa nenhuma.”
Angela Merkel, como é de seu feitio, tem uma visão da Rússia desprovida de sentimentalidade. Alexander Lambsdorff, deputado alemão do Parlamento Europeu, comentou: “Ela pensa na Rússia como um poder hegemônico tradicional que, subjugado por um tempo, agora reemergiu.” A Ucrânia obrigou a chanceler a praticar um malabarismo digno de Bismarck, e ela começou a dedicar duas ou três horas diárias à crise. Em público, pouco disse, esperando que o mau comportamento russo mudasse a opinião pública alemã. Precisava cuidar de sua coalizão no Bundestag, que incluía os sociais-democratas, mais favoráveis aos russos. E tinha de manter a Europa unida, o que significava afinar-se com 27 outros líderes e entender as limitações de cada um – como sanções à Rússia afetariam os mercados financeiros londrinos; se os franceses concordariam em suspender a entrega de navios de assalto anfíbios já vendidos aos russos; se a Polônia e os países do Báltico se sentiam seguros do apoio da Otan; a influência da propaganda russa na Grécia; a dependência búlgara de gás russo. Para que as sanções surtissem efeito, a Europa tinha de permanecer unida.
Merkel também precisava manter aberto o canal com Putin. Mesmo depois de a União Europeia ter aprovado a primeira leva de sanções, em março de 2014, a política da Alemanha não era isolar a Rússia – os vínculos entre os dois países são muito fortes. A chanceler é o mais importante interlocutor de Putin no Ocidente; eles conversam no mínimo toda semana. “Ao longo dos últimos meses, ela falou mais com Putin que Obama, Hollande e Cameron somados”, diz o alto funcionário. Merkel pode ser dura a ponto de se tornar desagradável e, ao mesmo tempo, oferecer a Putin saídas para a encrenca em que ele se meteu. Acima de tudo, ela tenta entender como ele pensa.
“Com a Rússia, mesmo agora que a gente sente muita raiva, eu me forço a conversar independentemente dos meus sentimentos”, disse ela no Museu Histórico Alemão, durante uma reunião com estudantes. “Toda vez que faço isso, fico surpresa com a quantidade de pontos de vista que se pode ter sobre uma questão que para mim é bastante clara. Aí, tenho de lidar com esses outros pontos de vista, e isso também pode trazer uma solução nova.”
Em pelo menos um telefonema, Putin mentiu para a chanceler, coisa que ele jamais havia feito antes. Em maio do ano passado, depois de os separatistas ucranianos terem organizado um referendo amplamente criticado, a declaração oficial russa foi mais positiva que a posição que Merkel acreditava ter combinado de antemão com Putin. Ela cancelou o telefonema da semana seguinte porque se sentiu enganada e quis que ele percebesse que ela estava com raiva. “Os russos ficaram espantados”, contou o alto funcionário. “Como é que ela podia cortar o contato?” Se havia um país que a Rússia não podia se dar ao luxo de perder, esse país era a Alemanha.
Em 6 de junho, na Normandia, nas comemorações do septuagésimo aniversário do Dia D, Merkel e Putin se encontraram pela primeira vez desde o começo da crise. Obama, Hollande, Cameron e Petro Poroshenko, o recém-eleito presidente da Ucrânia, também estavam presentes. As fotografias que saíram na imprensa mostraram o desgosto da alemã ao cumprimentar o russo – os lábios franzidos, as sobrancelhas arqueadas –, ao passo que Putin tinha uma expressão que parecia tentar agradar a colega. Sob a ótica do poder, ela estava ganhando. “Esse isolamento político é prejudicial a ele”, disse o assessor graduado de Merkel. “Putin não gosta de ser excluído.” (A Rússia tinha acabado de ser suspensa do Grupo dos Oito.) Mais tarde, a chanceler orquestrou uma conversa rápida entre Putin e Poroshenko.
No aniversário do Dia D, a líder da Alemanha estava no centro dos acontecimentos. Como disse Kurbjuweit: “Foi espantoso ver todos os vencedores da Segunda Guerra Mundial, ver a perdedora e o país responsável por tudo aquilo – e, no entanto, a líder é ela, é com ela que todo o mundo quer falar! Isso é muito estranho. E só é possível, acho, porque é a Merkel – porque ela é tão simpática e tranquila.”
A última bolinha que a chanceler precisa manter no ar é a americana. A opinião de Merkel sobre Barack Obama melhorou na mesma proporção em que a popularidade dele caiu. Em julho de 2008, como candidato presidencial, Obama quis discursar no Portão de Brandemburgo em Berlim – coração histórico da cidade e local reservado a chefes de Estado e de governo, não a senadores americanos. Merkel não permitiu, e Obama falou sobre a unidade entre Europa e Estados Unidos na Coluna da Vitória, no Tiergarten, para o delírio de 200 mil fãs – uma multidão que a chanceler jamais teria conseguido reunir, que dirá encantar. “O que a desagrada em Obama é sua retórica extravagante”, diz o alto funcionário. “Merkel não confia nela e não é boa nesse tipo de coisa. O que ela diz é ‘quero ver ele cumprir o que promete’.”
Nos primeiros anos do governo Obama, Merkel era frequentemente comparada a ele, levando a pior. Essa crítica a irritava. Segundo a revista Stern, a piada favorita da chanceler é aquela em que Obama caminha sobre as águas. [1] “Ela de fato não acha que ele seja um bom parceiro”, afirma Torsten Krauel, articulista do Welt. “Julga-o um acadêmico, uma voz solitária incapaz de construir coalizões.” O relacionamento dela com Bush era bem mais caloroso, disse-me o parceiro político de longa data. Um homem efusivo como Bush provoca uma reação, ao passo que Obama e Merkel são como “dois assassinos de aluguel numa mesma sala. Não precisam conversar – ficam calados, são matadores”.
À medida que foi conhecendo Obama, Merkel passou a ver com mais simpatia as semelhanças entre os dois – duas pessoas analíticas, cautelosas, distantes, de um humor seco. Benjamin Rhodes, subconselheiro para segurança nacional de Obama, contou-me que “o presidente acha que não há outro líder no mundo com quem tenha trabalhado mais de perto do que com ela”. Obama é a antítese dos líderes fanfarrões que Merkel se especializou em deglutir no café da manhã. Numa viagem a Washington, ela se reuniu com vários senadores, incluindo os republicanos John McCain, do Arizona, e Jeff Sessions, do Alabama. Achou-os mais preocupados em se mostrarem duros com o ex-adversário de Guerra Fria do que com os acontecimentos na Ucrânia. Para Merkel, a Ucrânia era um problema prático a ser resolvido. Essa era a visão de Obama também.
No dia em que falei com Rhodes, 17 de julho, a tevê em seu escritório no subsolo da Casa Branca mostrava os destroços do avião da Malaysia Airlines espalhados por um campo no leste da Ucrânia. A causa do acidente ainda não estava definida, mas Rhodes disse: “Se os russos abateram o avião, e se havia americanos e europeus a bordo, isso vai mudar o jogo.” Na Alemanha, a reviravolta foi imediata. A visão de combatentes separatistas pilhando os passageiros mortos – era um avião civil, com vítimas holandesas – afetou os alemães mais do que meses de combates entre ucranianos. Embora a crise estivesse começando a prejudicar a economia alemã, Merkel tinha agora 75% da opinião pública a seu favor. No final de julho, a UE concordou em aprovar uma nova e abrangente leva de sanções financeiras e energéticas contra a Rússia. [2]
A íntima cooperação entre Washington e Berlim, que tem lugar nos bastidores, coincide com um período de hostilidade pública e de recrudescimento do antiamericanismo na Alemanha. A causa imediata desse sentimento negativo foi a revelação – baseada em documentos vazados por Edward Snowden para a Spiegel, no final de 2013 – de que, durante uma década, a Agência de Segurança Nacional americana, a NSA, havia gravado as conversas de Angela Merkel ao celular. A chanceler, impassível como sempre, expressou mais irritação que revolta; entre os alemães, porém, o sentimento de traição foi profundo. E ainda não se aplacou. As transgressões da NSA foram citadas em praticamente todas as conversas que tive em Berlim, sobretudo porque Obama, embora tenha declarado que a escuta foi interrompida, nunca se desculpou publicamente. (Expressou seu pesar a Merkel em particular.)
“Grampear o telefone dela foi mais que falta de educação”, disse Rainer Eppelmann, o ex-dissidente alemão-oriental: “É coisa que não se faz. Amigos não espionam amigos.” Representantes do governo norte-americano com quem conversei, ainda que preocupados com os efeitos do vazamento da informação, reviraram os olhos ante a ingenuidade e a hipocrisia alemãs, já que a espionagem é praticada pelos dois lados.
Funcionários do governo alemão propuseram aos americanos um acordo de não espionagem, mas ouviram um não. Os Estados Unidos não mantêm um acordo desse tipo com país nenhum, nem mesmo dentro dos chamados Five Eyes – os aliados de língua inglesa [3] que compartilham virtualmente toda informação coletada por seus serviços de inteligência. Segundo os alemães, os Estados Unidos teriam convidado a Alemanha a integrar os Five Eyes, mas depois voltaram atrás. Os americanos negam ter feito o convite. “Isso nunca foi discutido a sério”, disse uma autoridade graduada do governo Obama. “Os Five Eyes não são um mero acordo, e sim toda uma infraestrutura desenvolvida ao longo de mais de sessenta anos.”
Em julho de 2014, funcionários do Serviço Federal de Inteligência da Alemanha, o BND, prenderam em seu escritório de Munique um burocrata suspeito de espionagem para os Estados Unidos. O sujeito fora flagrado querendo fazer negócios com os russos via Gmail. Quando os alemães pediram aos colegas americanos informação sobre ele, a conta no Gmail foi abruptamente encerrada. Levado a interrogatório, o burocrata admitiu ter passado documentos (aparentemente inócuos) a um agente da CIA na Áustria durante dois anos, tendo recebido 25 mil euros pelo serviço. Os alemães retaliaram de forma inédita: expulsaram o chefe da CIA em Berlim.
Por ter acontecido logo depois das revelações sobre a NSA, esse segundo escândalo foi pior que um crime – foi uma asneira. Angela Merkel ficou fora de si. Nenhum funcionário do governo americano, em Washington ou Berlim, parece ter aquilatado os benefícios da operação de espionagem e seu potencial custo político. Obama não sabia do espião. “O presidente espera das pessoas que levem em consideração a dinâmica política ao tomarem decisões sobre o que fazemos ou não fazemos na Alemanha”, disse Rhodes, o subconselheiro de segurança nacional de Obama.
O presidente americano preocupou-se o bastante para enviar a Berlim, no final de julho, seu chefe de gabinete, Denis McDonough, a fim de apaziguar o governo alemão. Depois de uma reunião de quatro horas, os dois países concordaram em elaborar regras mais claras na espionagem e no compartilhamento de informações de inteligência. Mas os detalhes ainda precisam ser definidos, e a proporção de alemães que hoje expressa uma opinião favorável aos Estados Unidos mal chega a 50% – o nível mais baixo em toda a Europa, só ultrapassado pela sempre hostil Grécia.
Por trás do antiamericanismo e da solidariedade com a Rússia, pode estar acontecendo algo mais profundo. Durante a Primeira Guerra, Thomas Mann interrompeu A Montanha Mágica e dedicou-se a ensaios apaixonados sobre a Alemanha e a guerra, publicados em 1918, pouco antes do armistício. Nessas Considerações de um Apolítico, Mann abraça o caráter nacional e a filosofia da causa alemã. Como artista, alia-se à Alemanha – “cultura, alma, liberdade, arte” – contra a civilização liberal da França e da Inglaterra (apoiada por Heinrich, seu irmão mais velho), uma civilização na qual a atividade intelectual sempre foi politizada. A tradição alemã era autoritária, conservadora, “apolítica”, mais próxima do espírito russo que do materialismo raso da Europa democrática. A guerra representava a antiga rebelião contra o Ocidente. A Alemanha imperial se recusou a aceitar a imposição forçada dos princípios universais da igualdade e dos direitos humanos. Embora Thomas Mann tenha se tornado um defensor dos valores democráticos em seu exílio durante os anos do nazismo, ele nunca renegou essas Considerações.
Várias pessoas em Berlim sugeriram que esse livro difícil e esquecido possa dizer algo sobre a Alemanha da era Merkel. A reunificação pacífica do país e sua força durante a crise do euro podem estar conduzindo a Alemanha de volta a uma identidade que é mais antiga que a República Federal do pós-guerra, cuja constituição foi escrita sob pesada influência americana. “A Alemanha Ocidental era um bom país”, disse-me o colunista e escritor Georg Diez. “Era jovem, sexy, ousada, ocidental – americana. Mas talvez fosse apenas uma casca. A Alemanha está se tornando mais alemã, menos ocidental. Ela descobriu suas raízes nacionais.”
Diez não quis dizer que isso seja positivo. Disse apenas que a Alemanha está se tornando menos democrática, porque, em essência, o que os alemães querem é estabilidade, segurança, crescimento econômico – querem, acima de tudo, que os deixem em paz, enquanto alguns cuidam do seu dinheiro e mantêm o país longe das guerras. Têm, pois, exatamente a chanceler que desejam. “Merkel tirou a política da política”, concluiu ele.
Aos 60 anos, Angela Merkel é a estadista mais bem-sucedida da história alemã moderna. Sua popularidade oscila em torno de 75% – dado inaudito para uma época de ressentimentos contra líderes eleitos. A simplicidade permanece sendo sua assinatura política, temperada com virtude protestante e retidão prussiana. Uma vez, na companhia de um grupo de jornalistas num bar de hotel no Oriente Médio, ela disse: “Dá para acreditar? Aqui estou eu, a chanceler! O que estou fazendo aqui? Na minha adolescência na RDA, imaginávamos os capitalistas com capotes pretos, cartola, charuto e pés grandes, como nos desenhos. Agora, aqui estou eu, e eles têm que me ouvir!” É claro que há um bocado de cálculo em sua imagem pública. “Ela toma tanto cuidado em não se mostrar pretensiosa que isso já é uma espécie de pretensão”, diz o alto funcionário.
Merkel ainda mora no Centro de Berlim, num apartamento alugado em frente a um canal que ladeia o Museu Pergamon, o grande prédio neoclássico que abriga peças da Antiguidade. A plaquinha de bronze do interfone do prédio traz o nome do marido – PROF. DR. SAUER –, e um único policial monta guarda do lado de fora. No imenso escritório no gigantesco edifício de concreto e vidro da sede da Chancelaria, Merkel trabalha numa escrivaninha comum perto da porta, preferindo-a à mesa de 4 metros que Schröder mandou instalar na outra extremidade da sala. “É uma mulher neuroticamente ocupada”, diz o parceiro político de longa data. “Nunca dorme mais que cinco horas. Posso ligar para ela à uma da manhã. Vai estar acordada, lendo – papelada burocrática, não literatura.”
Ela recebe convidados na Chancelaria com comida caseira alemã: sopa de batatas e repolho recheado. Quando sai para comer em seu restaurante italiano preferido, vai com uns poucos amigos e não desvia os olhos da conversa para cumprimentar o público, que sabe deixá-la em paz. Quando o marido liga para a Filarmônica para comprar ingressos (Merkel e Sauer têm paixão por Wagner e Webern), insiste em pagar com seu cartão de crédito. O casal entra e toma seus lugares quase sem ser notado. Uma amiga minha certa vez se sentou ao lado de Merkel no salão de beleza que a chanceler frequenta, e as duas conversaram sobre cabelos. “A tintura é a coisa mais importante para uma mulher”, disse a chanceler, cujo penteado já não é alvo de gozação.
Há pouco tempo, o presidente Joachim Gauck apareceu nas manchetes ao conclamar a Alemanha a assumir suas responsabilidades globais com mais seriedade, incluindo seu papel nas questões militares. Foi o tipo de discurso que Merkel (que nem o comentou) jamais faria, sobretudo depois de uma pesquisa encomendada pelo Ministério das Relações Exteriores ter revelado que 60% da população mostravam-se céticos quanto a um maior envolvimento do país no mundo.
Os jornalistas alemães acham quase impossível cobrir Angela Merkel. “É um sacrifício encontrar assunto”, diz Ulrich Schulte, que escreve para o Tageszeitung. A Merkel que eles admiram e apreciam em particular, mas são proibidos de citar, desaparece em público. Qualquer assessor ou amigo que trair sua confiança é banido de imediato. A mídia alemã, num reflexo dos tempos, é cada vez mais centrista, preocupada com “bem-estar físico” e outros tópicos relacionados a comportamento. Quase todos os repórteres de política com quem falei votaram em Merkel, apesar da sensação de que ela está tornando irrelevante o trabalho deles. Não havia razão para não votar nela.
Enquanto isso, a chanceler neutralizou a oposição, em grande parte apropriando-se de seu programa. Além disso, acolheu as reivindicações dos sindicatos, baixou a idade mínima para a aposentadoria de certas categorias e aumentou o auxílio do Estado às mães e aos idosos. (Merkel disse a Dirk Kurbjuweit, da Spiegel, que, à medida que a Alemanha envelhecia, ela dependia cada vez mais do voto dos idosos.)
Em 2011, o desastre nuclear de Fukushima, no Japão, chocou a chanceler, que recuou em sua posição sobre energia nuclear: decidiu que a Alemanha vai abolir esse tipo de energia ao longo da próxima década, e ao mesmo tempo seguirá liderando as maiores economias industriais do mundo em matéria de energia solar e eólica. (Um quarto da energia gerada no país provém hoje de fontes renováveis.) Nesse meio-tempo, vem tentando abolir de seu partido certas ideias que expressam intolerância – por exemplo, quando discorre sobre a necessidade de dar melhor acolhida a imigrantes. Os apoiadores dos sociais-democratas e do Partido Verde têm cada vez menos motivos para votar, e o comparecimento às urnas diminuiu. O escritor Peter Schneider, líder estudantil de 1968, afirma: “Essa é a genialidade de Angela Merkel: na verdade, ela tornou sem sentido as diferenças entre os partidos.”
No final de 2014, nas eleições em três estados antes pertencentes à Alemanha Oriental, um novo partido de direita mostrou força – o Alternativa para a Alemanha, AfD –, conquistando 10% dos votos. O AfD quer que a Alemanha se retire da zona do euro e se opõe às políticas liberais de Merkel em relação ao casamento gay e à imigração. Ao mover seu próprio partido para o centro, a chanceler criou espaço na política alemã para um populismo equivalente ao da Frente Nacional francesa e ao do Partido da Independência do Reino Unido. Se a economia alemã continuar desacelerando, porém, ela terá dificuldade em seguir pairando sobre a política partidária na incontestada condição de Mutti, a torcedora Número 1 da equipe campeã da Copa do Mundo.
Por enquanto, a questão política mais premente em Berlim é se ela vai ou não se candidatar a um quarto mandato em 2017. Joschka Fischer descreveu a Alemanha sob Merkel como um país que retornou ao período Biedermeier – os anos entre o final das Guerras Napoleônicas, em 1815, e as revoluções de 1848 –, quando a Europa Central desfrutava de paz e o foco da classe média consistia na riqueza crescente e no estilo de decoração. “Ela está governando a Alemanha numa época em que o sol brilha todos os dias, e esse é o sonho de todo político democraticamente eleito”, afirmou ele. “Mas não há debate intelectual.” Sugeri que todo Biedermeier tem um fim. “Sim”, ele concordou, “em geral termina em desastre.”
Um consenso político fundado no sucesso econômico, com cidadãos satisfeitos, uma imprensa favorável e uma líder imensamente popular, que raras vezes se afasta da opinião pública – a Alemanha de Merkel lembra os Estados Unidos de Dwight Eisenhower. Mas se hoje tal quadro talvez cause inveja aos americanos, preocupados com o declínio nacional, aos alemães mais afeitos à reflexão provoca certa inquietação: a democracia alemã não tem idade suficiente para ter direito a descanso.
“Nós recebemos dos americanos a democracia, como um presente, eu diria, durante as décadas de 40 e 50”, disse Kurbjuweit. “Mas não tenho certeza de que as atitudes democráticas estejam solidamente enraizadas em meu país. Nós, alemães, precisamos praticá-las. Ainda estamos em período de treinamento.”
[1] A piada é a seguinte: Obama, Berlusconi e Sarkozy estão à beira de um lago. Berlusconi diz: “Olhem ali, uma ilha, vamos até lá?” Berlusconi caminha sobre as águas e Obama segue atrás. Sarkozy põe-se a caminho, mas morre afogado. Berlusconi diz a Obama: “Acho que o Sarkozy não conhecia o caminho das pedras.” E Obama pergunta: “Que pedras?”
[2] As autoridades de aviação holandesas, que conduzem a investigação oficial, só devem divulgar em meados deste ano suas conclusões sobre as causas da queda do avião da Malaysia Airlines. No dia 12 de fevereiro último, enquanto a oposição republicana pressionava Obama a enviar armas ao governo da Ucrânia, Merkel e Hollande mediaram um acordo entre Putin e Poroshenko para um novo cessar-fogo no país.
[3] Os Five Eyes são Estados Unidos, Reino Unido, Austrália, Nova Zelândia e Canadá.