A Lição
A Lição – conto moral
A Lição reafirma que um filme pode encontrar seu lugar no cinema contemporâneo quando retoma os ensinamentos do neo-realismo, é filmado com simplicidade, além de ser muito bem interpretado, mesmo seguindo situação dramática convencional – a superação de obstáculos para alcançar um objetivo.
Nada sei sobre a Bulgária. Ou melhor, sei que a capital é Sófia. Sempre soube. Fora isso, nada. Agora, fiquei sabendo também que há uma grande atriz búlgara, Margita Gosheva. Ela faz o papel de Nadezhda (Nade), uma mulher comum, professora de inglês que vive em outra cidade perto da capital e é a personagem principal de (2014), escrito e dirigido por Kristina Grozeva e Petar Valchanov. Gosheva não é nenhuma novata. Tem 16 anos de carreira, já fez 6 filmes, trabalhou em produções estrangeiras, e atua regularmente no teatro. No entanto, até há alguns dias eu não a conhecia. Falha minha.
Tampouco sabia alguma coisa sobre o cinema búlgaro até consultar a Wikipédia. A enciclopédia ensina que há 138 salas de cinema na Bulgária, 2.1 por cada cem mil habitantes. Os dados são de 2011, ano em que foram produzidos 15 filmes búlgaros e o PIB do país foi de cerca de 54000 milhões de dólares (no Brasil, em 2013, havia mais de 2600 cinemas, mas apenas 1.3 por cada cem mil habitantes, proporção bem inferior à da Bulgária. Apesar da escassez de telas, em 2011 foram produzidos 98 filmes brasileiros, 6.5 mais do que búlgaros, e o PIB do Brasil, de 2500000 milhões de dólares, foi 46 vezes maior).
A desproporção territorial, populacional, do PIB e entre o respectivo número de produções nacionais não impediu A Lição de chegar às telas do Brasil, depois de percorrer alguns festivais mundo afora (Toronto, Reykjavík, Varsóvia, Tóquio) e ser premiado em dois deles (Gotemburgo e San Sebastian). Enquanto isso, a única notícia, mais ou menos recente, de um filme brasileiro ter sido exibido na Bulgária é da participação de Elvis & Madona, de Marcello Laffite, no festival de cinema de Sófia, em 2011. Fora esse, nenhum outro título parece ter chegado ao circuito comercial búlgaro.
Lembrando que A Lição, além de ser produção búlgara é apresentado também como co-produção grega, fica difícil saber quem é o gigante e quem é o anão ao fazer o paralelo cinematográfico entre Bulgária e Brasil. A eficácia narrativa de A Lição é inversamente proporcional à modéstia da produção, reforçando a impressão de que o apodo de anão ou pelo menos de gigante com pés de barro cinematográfico cabe mesmo é ao Brasil.
A Lição reafirma que um filme pode encontrar seu lugar no cinema contemporâneo quando retoma os ensinamentos do neo-realismo, é filmado com simplicidade, além de ser muito bem interpretado, mesmo seguindo situação dramática convencional – a superação de obstáculos para alcançar um objetivo.
Entre os críticos americanos, houve quem assinalasse a suposta influência sobre A Lição do filme dos irmãos Dardenne, Dois dias, uma noite [foto acima], premiado pelo júri ecumênico no Festival de Cannes, em 2014. A estrutura narrativa e os temas de ambos, além do périplo de suas respectivas personagens principais – Nadezhda (Margita Gosheva), em A Lição, e Sandra (Marion Cotillard), em Dois dias, uma noite – sugerem, de fato, uma similaridade. Mas a essa semelhança superficial se contrapõem a diferença radical indicada com precisão por outra crítica americana: “Os dois filmes focalizam mulheres que embarcam em uma odisseia de auto-degradação, total servilismo, engolindo seu orgulho próprio, para manter o lobo da pobreza e da marginalização social completa fora da porta. Mas ao menos esse filme búlgaro vai além do belga, apertando ainda mais os parafusos e terminando em registro muito mais ambíguo.” (Jessica Kiang em The Playlist)
Conforme comentado em fevereiro neste blog, Dois dias, uma noite é um conto de fada, enquanto A Lição, por comparação, é um filme de terror. O filme dos irmãos Dardenne professa crença no altruísmo de seres humanos com reservas de decência. Kristina Grozeva e Petar Valchanov, por sua vez, constroem um conto moral sobre compromissos necessários para sobreviver. Nade é uma leoa em defesa da casa onde mora com a filha e o marido, omisso e desonesto.
A inflexibilidade moral de Nade é corroída, porém, por imposições do mundo real. Ela persevera além do imaginável, mas acaba envolvida pelos valores humanos degradados que predominam e a levam a ceder. Nade é vitoriosa. Vence todos os confrontos ao longo da sua via crúcis, mas no final não é mais a mesma pessoa do início.
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