Globo
Real beleza – apagão de talento
É duro ser condenado na manhã do dia de estreia. Alguém poderá argumentar que uma nota no segundo caderno de um jornal impresso não tem esse poder. Mas para quem vive numa cidade onde só há um grande jornal diário, lido mais por falta de opção do que por gosto, foram chocantes as cinco linhas publicadas quinta-feira passada (6/8/2015) no Globo sobre Real beleza, filme escrito e dirigido por Jorge Furtado.
É duro ser condenado na manhã do dia de estreia. Alguém poderá argumentar que uma nota no segundo caderno de um jornal impresso não tem esse poder. Mas para quem vive numa cidade onde só há um grande jornal diário, lido mais por falta de opção do que por gosto, foram chocantes as cinco linhas publicadas quinta-feira passada (6/8/2015) no sobre Real beleza, filme escrito e dirigido por Jorge Furtado.
Ainda mais brutal do que o curtíssimo texto, assinado por Susana Schild, foi o famigerado bonequinho que, no caso, dormia a sono solto. Ambos foram uma ducha gélida em quem planejava ver o filme naquela tarde para comentá-lo neste blog. É razoável supor que também tenham desanimado espectadores em geral que consultaram o jornal para escolher o programa do dia.
Quanto mais curto, maior a tendência do texto parecer uma sentença e a autora (ou autor) assumir o papel de promotora, ou juíza. E a distância que separa o comentário crítico da condenação sumária tende a desaparecer por completo quando a notinha vem acompanhada por um bonequinho ou por estrelas.
Estranhei a dureza dos termos condenatórios da sempre gentil Susana – “estáticos”, “artificiais”, “corpo estranho”, “faltou foco”. O cinema não terá grandes obras primas estáticas e artificiais que à primeira vista podem parecer corpos estranhos e sem foco? Susana, com toda certeza, seria capaz de citar várias. Jorge Furtado, por sua vez, não teria crédito suficiente, considerando sua filmografia, para fazer um filme diferente dos que o consagraram no passado?
Apesar de desestimulado pela nota da Susana, fui assistir a Real beleza na segunda sessão da tarde daquele dia de estreia. Havia umas quinze pessoas no cinema. Provavelmente, não haviam lido o Segundo Caderno do . Talvez tenham sido atraídas pela Adriana Esteves, fazendo Anita, a principal personagem feminina.
Finda a sessão, fui obrigado a admitir para mim mesmo que, no fundo, Susana tinha razão. Real beleza não me pareceu satisfatório, embora isso não altere em nada minha discordância do tom condenatório da nota, assim como dos termos da sentença e do bonequinho dormindo. Jorge Furtado certamente faz jus a uma crítica menos ligeira.
No dia seguinte à estreia (sexta-feira, 7/8/2015), o comentário um pouco mais longo da Susana Schild, publicado no caderno Rioshow do , acompanhado mais uma vez do bonequinho dormindo, reiterou a perversidade da véspera. Para condenar o filme, Susana lança mão do conhecido recurso retórico de elogiar Jorge Furtado, para em seguida considerar Real beleza um filme fora da curva. Cobra dessa maneira, uma inventividade perpétua, equivalente à dos seus primeiros curta-metragens, Ilha das flores (1989), em especial. E considera que sua filmografia anterior se opõe à legítima tentativa de inflexão feita em Real beleza, em busca de um novo tom narrativo tão pouco usual quanto necessário ao cinema brasileiro dos nossos dias.
A escassez de reflexão crítica sobre cinema, em particular nos jornais diários, mas também na mídia em geral, será sintoma ou causa, ao menos parcial, da crise de qualidade e falta de interesse da maioria dos filmes produzidos no País? Não seria benéfico a todos – produtores, realizadores e espectadores – um processo de debate que propiciasse a oportunidade de roteiros, encenação, direção de atores e montagem serem discutidos ao longo da realização dos filmes?
Um dos aspectos que me chamaram atenção em Real beleza foi o que chamaria de falta de critério nas diferentes etapas de realização, do roteiro à montagem. A impressão que o filme me causou é que houve um apagão de talento, resultante possivelmente da cumplicidade e conivência que muitas vezes se criam entre profissionais habituados a trabalharem juntos.
Será ingenuidade imaginar a possibilidade de haver no cinema algo semelhante ao que Howard Becker descreveu em entrevista recente (Prosa&Verso, O Globo, 8/8/2015)? Segundo Becker, campos de conhecimento podem alcançar objetivos “de maneira coletiva, por meio de um processo de crítica, argumentação e discussão. Por isso, os pesquisadores de ciências naturais se interessam tanto em publicar seus achados em periódicos revisados por seus pares, ou seja, por seus colegas. Ao fazê-lo, o trabalho fica exposto à crítica organizada de pessoas que sabem muito sobre o mesmo tema, que conhecem os erros e distorções que podem afetar uma pesquisa.”
Se algo semelhante a esse processo não for mesmo possível no cinema, área ocupada por egos inflados, quem mais tem a perder, além do público, são os próprios realizadores.
Leia Mais
Assine nossa newsletter
Email inválido!
Toda sexta-feira enviaremos uma seleção de conteúdos em destaque na piauí