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questões cinematográficas

Que horas ela volta? – do ângulo de Roberto Gervitz

No texto transcrito abaixo, Roberto Gervitz, diretor, entre outros filmes, de Feliz Ano Velho (1987) e Prova de coragem, que estreia esta semana no Festival de Brasília, discorda do comentário sobre Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, publicado quinta-feira passada (10/9/2015). (EE)

| 14 set 2015_11h56
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No texto transcrito abaixo, Roberto Gervitz, diretor, entre outros filmes, de  (1987) e Prova de coragem, que estreia esta semana no Festival de Brasília, discorda do comentário sobre Que horas ela volta?, de Anna Muylaert, publicado quinta-feira passada (10/9/2015). (EE)

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Entendo que a boa receptividade ao filme da Anna Muylaert possa ser relacionada ao contexto mundial que atravessamos, tão conservador em todos os sentidos, mas não acredito que a recepção favorável possa invalidar um filme. Mesmo reconhecendo haver similaridade entre as premissas dramáticas de TeoremaQue horas ela volta?, comparar os filmes de Pasolini e Muylaert me parece forçado. Isso porque toda obra deve ser entendida também pelo contexto histórico e cultural em que surge e, nesse sentido, esses filmes respondem não só a momentos radicalmente diferentes, mas também a assuntos diferentes.

Talvez a diferença essencial seja que não é Val quem transforma a família da casa burguesa em que trabalha como doméstica, mas a convivência e o conflito com sua filha é que terminam por transformá-la. É através dessa relação com sua filha que certos mecanismos escravocratas de dominação e discriminação, entranhados na sociedade brasileira, se revelam e acabam provocando que ela não mais deseje viver naquela casa, reproduzindo tal tipo de relação. Val acaba por conquistar dignidade o que já é muito e o primeiro passo, pois percebe que pode se contrapor aos mais ricos e fazer escolhas (ainda que não revolucionárias). O filme de Muylaert trabalha prioritariamente em uma clave não simbólica, é naturalista e direto, ao contrário de Teorema que tem uma estética radicalmente distinta. 

E se no filme de Pasolini o intruso é o agente transformador e detonador da ordem/família burguesa, em Que horas ela volta? é a filha de Val que se revela como um novo sujeito social que bem ou mal surgiu nos últimos vinte anos em nosso país. Ainda que insuficientes, incompletas, tímidas, houve mudanças que transformaram e muito uma parcela importante do povo brasileiro. Essa parcela da população teve acesso à educação e a bens que jamais fizeram parte da experiência de seus pais, inclusive a experiência de viver em uma democracia. Assim, Jessica, encarnando o novo, confronta sua mãe que representa o que sempre foi – a humilhação, a aceitação do lugar que lhe destinam e a alienação. 

Acho que esse conflito é construído de maneira brilhante pela Anna Muylaert e, ainda que haja momentos que esbarram no caricato (graças também a uma certa histrionice de Regina Casé que, no geral, foi contida pela diretora), o filme pontua que se trata de um assunto da maior seriedade. Refletindo um pouco mais sobre o filme, creio que a família burguesa poderia contar com atores que não a limitassem a uma caricatura, traço comum a muitos filmes brasileiros quando retratam a classe média alta ou a burguesia.

Por algumas reações ao filme que pude ler nas redes sociais, vejo que ele se apresenta como bastante incômodo tanto para um lado quanto para outro, mas principalmente para o lado burguês. E se não me agrada tanto o caricato para o qual às vezes o filme envereda sem necessidade, creio que o humor dramático presente em seu roteiro, é bem apropriado para que haja um diálogo mais direto com um público pouco afeito aos conflitos de classe, de acordo com a nossa tradição de colocar panos quentes em tudo. 

Há pelo menos uma cena antológica, emocionante e rica simbolocamente que se dá quando Val caminha na piscina vazia. E o final do filme não é nada populista, pois patrões e empregados não comemoram juntos, como se daria em um filme de Frank Capra, por exemplo. Val escolhe o seu caminho e o filme segue com ela e a filha, deixando para trás a comodidade de um cativeiro em forma de casa. A periferia onde ela vai morar é feia, paulista, não é a Mangueira de Cartola. Assim o filme não deixa as coisas facilmente resolvidas. Entendo que alguns possam dizer que Val aceitou o seu lugar social ao alugar uma casinha na desumana periferia. Mas essa mudança para afirmar e conhecer o seu lugar real e não fantasioso é o primeiro passo. Ela não pertence àquela família e não aceita mais a posição de agregada, algo que sobreviveu à realidade rural. Val está feliz porque se libertou e isso já é muita coisa em um  país escravocrata e de nenhuma mobilidade social como o nosso. 

Considero o filme da Anna Muylaert um excelente filme com personagens bem desenhados em um belo roteiro. Poderia ser menos reiterativo, mais enxuto? Poderia e deveria, na minha opinião. Mas como já disse o Gilberto Gil, a perfeição é uma meta. Ainda bem…

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