Não é monstruoso que o ator, por uma paixão fingida, possa forçar a alma a sentir o que ele quer, de tal forma que seu rosto empalidece e toda a sua aparência se ajusta ao que ele pretende? FOTO: MARTINE FRANCK_MAGNUM PHOTOS
No dorso instável de um tigre
O pânico de ser atriz vem da autoconsciência, do julgamento de si mesmo, da expectativa e de qualquer ruído que lembre o quão inútil é a profissão
Fernanda Torres | Edição 3, Dezembro 2006
Em fevereiro de 1995, pouco depois da estreia da peça Cell Mates, em que fazia um dos papéis principais, o ator inglês Stephen Fry acordou, foi para a garagem, ligou o carro e tentou se matar. Aí pensou na mãe, ficou com pena dela e decidiu fugir. Pegou o carro e, de fininho, foi parar na Alemanha. Passou meses desaparecido. A peça saiu de cartaz. Fry também — segundo o próprio, para sempre. Mas voltou ao cinema, tendo feito o papel-título em Wilde. A razão de largar o teatro? Aquilo que, em inglês, se chama stagefright.
Não existe uma boa tradução de stagefright para o português. “Pânico de palco” deixa a desejar. “Pânico da plateia”, idem. Talvez a melhor tradução seja “pânico de cena”, ou “medo da cena”. Afinal, não é propriamente do palco que o ator tem pavor, nem da plateia. É do todo: pavor de perder o próprio sentido da profissão. Qualquer ator se pergunta antes de entrar em cena: “Mas, afinal, por que fui inventar isso pra mim? Por que não sou engenheiro ou médico? Que sentido há em fingir que sou outro?”.
Num dos seus monólogos, Hamlet faz a mesma pergunta:
Não é monstruoso que esse ator aí,
Por uma fábula, uma paixão fingida,
Possa forçar a alma a sentir o que ele quer,
De tal forma que seu rosto empalidece,
Tem lágrimas nos olhos, angústia no
[semblante,
A voz trêmula, e toda a sua aparência
Se ajusta ao que ele pretende?
E tudo isso por nada! Por Hécuba!
O que é Hécuba pra ele, ou ele pra Hécuba,
Pra que chore assim por ela.
Pânico de cena seria um estado patológico no qual o ator, em bom português, trava com as quatro patas, empaca, amarela. No estrangeiro, os casos são inúmeros, graves e renomados. Laurence Olivier se livrava da pressão de ter que ser Olivier xingando o público na coxia, antes de começar o espetáculo. Depois que passou dos sessenta, o pavor era tamanho que ele pensou em desistir da profissão.
Não conheço, no Brasil, caso de ator que tenha sofrido desse mal a ponto de abandonar a profissão, muito menos de alguém que tenha pensado em se matar. Acredito que isso se explica pelo fato do tão temido pânico de cena só acontecer, de verdade, em praças onde o teatro é levado a sério.
Aqui, há mais de vinte anos, os Cassetas lançaram com retumbante sucesso o inesquecível slogan: Vá ao teatro mas não me chame. O ambiente no Brasil é meio hostil a classe teatral. Pior: é indiferente. Além disso, 3 mil reais por mês, um carro na garagem, uma TV, fogão e geladeira representa o topo da cadeia alimentar de mais de 95% da população brasileira. Falar em sofrimento do artista, numa realidade dessas, dá até vergonha.
Marco Nanini define bem a questão: “O Olivier tem stagefright porque o Olivier pode. Eu também adoraria ter stagefright. Mas se eu começar a dar piti antes de entrar em cena, o público simplesmente desaparece”. Nanini é desses atores que correm atrás de um personagem como o jogador do Nelson Rodrigues corria atrás da bola: como se fosse um prato de comida. É um caso clássico de ator brasileiro que é empresário de si mesmo. Não tem como chamar o produtor para dizer que não vai dar espetáculo. Ele é seu próprio patrão.
Nanini conta que, certa vez, sentiu algo semelhante a uma síndrome do pânico, “mas era porque tinha que entrar num aparelho de ressonância magnética”. Ele costuma suar frio quando tem de dizer a fala de um comercial nos 23 segundos exigidos. Apresentações de improviso, festas, prêmios e recepções também lhe provocam uma grande ansiedade. Mas no palco, sobretudo no teatro, onde se ensaia e sempre existe o dia seguinte, Nanini diz que se sente em paz. Encara os momentos mais difíceis, as piores plateias, as peças ruins e os eventuais deslizes como parte da profissão. Segundo Nanini, existe uma diferença entre o temor que faz parte das dificuldades naturais do ofício, e aquele outro, anormal, do curto-circuito em cena. O primeiro ele sempre sentiu. O segundo jamais o ameaçou.
Gosto da observação do Nanini. Até que ponto o medo de estar em cena pode ser considerado uma patologia? Tenho certa implicância com essas nomenclaturas, com a classificação da angústia. Cada vez que inventam um novo nome para um desvio de comportamento, suspeito que algum laboratório na Suíça está ganhando muito dinheiro às custas da neurose alheia. Encarar o pânico de cena como uma doença não ajuda em nada a vida do ator. O medo de estar em cena é o motor primordial da profissão. Controlá-lo é a arte do negócio.
Uma vez, o Pedro Cardoso me contou, como se fosse um segredo importante — e é —, que foi o diretor Amir Haddad quem lhe ensinou a ficar calmo, a relaxar sem perder a loucura, essencial quando se tem de fingir ser quem não se é. Ayrton Senna afirmou ter visto Deus enquanto dirigia seu bólido a 300 quilômetros por hora – Deus, através do Ayrton, desenhava linhas perfeitas nas curvas fechadas da pista de Mônaco. Com o ator não é diferente. Você fica em estado de graça quando pára de fazer esforço, quando perde a consciência de que está atuando.
Não se ouve falar de pânico de cena em relação a quem está começando a carreira. Na juventude, o ator já é alguém em permanente estado de pânico. Não conheço nenhum ator jovem que seja calmo. Confunde-se nervosismo com vigor, mergulha-se de cabeça em qualquer psicodrama, o diretor tirano encontra em você um prato cheio para exercitar o sadismo. É comum fazer teatro gutural, raivoso, aos gritos. Eu gostava de teatro físico: se não saísse de cena pingando suor, aquilo para mim não era teatro.
Sérgio Britto conta que recentemente, numa peça de vanguarda dirigida por uma jovem diretora, todos os exercícios do ensaio buscavam a tensão. Começava-se tensionando os dedinhos do pé, depois subia-se pelo corpo até o cocoruto da cabeça. Sérgio percebeu que a tensão era tanta que, a certa altura, já não era possível compreender o que os colegas diziam. Decidiu conversar com a diretora. Ela respondeu: “Não tem problema, o importante é que eles estejam tensos”. Dificilmente você sofrerá do maldito pânico se estiver exorcizando sua tensão no palco. Acredito que esse medo só ataca atores mais experientes, gente que, depois de ter encontrado, acaba perdendo o sentido de estar em cena.
Talvez o primeiro e único ator brasileiro que sofreu a ponto de ter autoridade para dizer de boca cheia “Eu senti stagefright!” tenha sido o Sérgio Cardoso. Aconteceu nos anos 40, na temporada de Hamlet no Teatro Fênix do Rio de Janeiro. Naquelas priscas eras, teatro era coisa séria.
Sérgio Cardoso fazia parte do Teatro do Estudante, grupo criado por Paschoal Carlos Magno para “qualquer pessoa que quisesse estudar teatro e tivesse menos de 30 anos”. Ao terminar de se maquiar, ainda no camarim, nervoso, pronto para entrar em cena, Sérgio Cardoso chama a produção. Diz que não haverá espetáculo e pede que devolvam o dinheiro dos ingressos. Explica que não sabe fazer o papel, não sabe, não sabe… Sérgio Britto, como o fiel Horácio, toma a frente e diz que, nesse caso, será obrigado a ligar para o pai do Sérgio Cardoso, seu Francisco – seu Francisco era muito rígido –, e contar o fricote do filho. Funcionou. Hamlet baixou rapidinho.
Sérgio Cardoso exercia sua profissão no limiar da sanidade. Enfrentava Hamlet com tamanha fúria que não eram raros os dias com algum acidente em cena. Ele quase levou a mão de Sérgio Britto num juramento de espadas, e fez a peruca dele voar longe numa cena de ódio ao padrasto (no meio da temporada, Britto trocou o papel de Horácio pelo do rei Cláudio). A peruca desceu sozinha escada abaixo, enquanto a plateia ria. Sérgio sacudia tão furiosamente a mãe, Gertrudes, que os peitos da atriz saltavam para fora do decote medieval. Como sua pressão arterial variava junto com o batimento cardíaco, era comum ele desmaiar depois das apresentações. Tinha sopro no coração. Morreu aos 47 anos, provavelmente vítima da própria profissão. Sérgio Cardoso foi o mais próximo de Laurence Olivier que conseguimos chegar.
E aí vieram os anos 60. Período de glória do teatro experimental. Numa peça, depois de o autor assistir a inúmeros e exaustivos ensaios de improvisação, para que o texto surgisse do coletivo – aquela mistura de Marx com Grotowsky (o teórico polonês) –, o autor virou para o grupo e declarou que o texto dele ia ser o não-texto. Aí o diretor chegou e disse que a direção também ia ser a não-direção. E aí os atores decidiram, em uníssono, partir para a não-interpretação.
O teatro na época era visceral, engajado, sério. Havia os laboratórios, as improvisações grupais, que às vezes terminavam em suruba. Não era fácil ser ator de vanguarda. Ouvi uma vez uma história sensacional. Os personagens principais parece que eram o Stênio Garcia e o Roberto Bonfim. Nunca quis confirmar com nenhum deles, para não desfazer a fantasia. Nos ensaios experimentais coletivos, durante as improvisações mais lascivas, os dois belos jovens, escreveu não leu, eram atacados pela ala gay do elenco. Os dois decidiram bolar um plano: para não dar bandeira, cada um se colocava estrategicamente em lados opostos do palco; quando começava o exercício, deslizavam de corpo em corpo até se encontrar; e assim permaneciam, agarradinhos um ao outro, protegidos do resto do elenco.
Fauzi Arap, diretor, autor e ator extraordinário, alçado à posição de deus absoluto depois da interpretação que fez de um bêbado niilista na histórica montagem, de 1963, de Os Pequenos Burgueses, de Gorki, no Teatro Oficina, foi um que abandonou o barco. Dizem que ele teria desistido da profissão no meio de um espetáculo em que dividia o palco com Tônia Carrero. Na hora da deixa, teria parado em suspenso e dito: “Eu não sou ator! Eu não sou ator! Eu não sou ator!”, e saiu porta afora.
Fui falar com o Fauzi e confirmei: a história é lenda. O que ele me disse é que desistiu da profissão porque descobriu como ganhar a vida de outra maneira, se expondo menos. Passou a escrever e a dirigir. Achava que teatro era uma experiência tão vertiginosa que ele não quis, ou não conseguiu, fazer dela um ganha-pão funcional. Fauzi conta que olhava para os outros, ouvia aquelas vozes, via aqueles gestos – e não se reconhecia como ator. Suava frio, era tímido, e sua interpretação vinha justamente do mal-estar que sentia ao fingir ser outro, da falta de intimidade com o ato de representar.
Para lidar com o desconforto, Fauzi desenvolveu o método da ação e da contra-ação. O personagem quer e não quer falar, quer e não quer representar. Ao cruzar a perna, costumava congelá-la no ar para manter o público em suspenso, à espera de que ela repousasse, ou não, sobre a outra perna. Dizem que a plateia o seguia como a serpente segue o encantador. Essa vontade e contravontade é o próprio princípio do teatro e está no intestino grosso do pânico de cena.
O diretor paulista Antunes Filho, num recente exercício com jovens dramaturgos, diante do blá-blá-blá de alguns textos, repetiu à exaustão: “Vocês não percebem?! O personagem não quer falar!!!”. É preciso sentir nas vísceras o incômodo de se expor, o perigo do salto triplo. Se não fosse assim, circo não tinha graça.
São muitos os medos da profissão. O mais comum é o pavor de esquecer a fala. São casos e mais casos. O diretor e ator francês Louis Juvet — Madame Morineau viu — exigia que um ator da companhia ficasse parado, olhando-o nos olhos, enquanto ele repassava o texto minutos antes de entrar em cena. Marlon Brando distribuía dálias — colas com o texto escrito — pelo cenário, pelos atores, pelos figurantes, pelas árvores, postes, bancos, por onde quer que seus olhos passassem.
Contam-se nos dedos os atores que não desenvolveram nenhuma forma de mandinga antes de entrar em cena. Não fujo à regra. Tenho que pisar no palco com o pé direito, e não repito um sutiã ou calcinha que tenha me trazido má sorte. Minha mãe tem o estranho costume de segurar um prego torto na coxia. Muitos se benzem, ninguém fala o nome daquela tragédia de Shakespeare (digo baixinho: aquela do rei escocês) e “Merda!” é a saudação oficial para se desejar boa sorte.
Dizemos merda para vencer o medo com as armas da crendice. O teatro nasceu na Grécia e, como se sabe, os deuses gregos tinham uma relação passional com a espécie humana. Nós éramos pasto das suas disputas – tinham inveja, competiam, armavam arapucas para nós. De forma que os mortais tiveram que inventar artimanhas para passar incólumes por eles. Fala-se merda para desviar a atenção do pessoal do andar de cima, e assim evitar que eles se deem conta dos nossos eventuais êxitos aqui na terra. É como o break a leg da tradição anglo-saxã, o “quebre uma perna”. Tudo serve para baixar a expectativa do comediante. Sempre é recomendável botar os pés no picadeiro sem se esquecer que faz parte do jogo cair do cavalo.
Existe uma outra expressão em inglês — suspension of desbelief, a suspensão da descrença — que define o estado do espectador que aceita a ilusão criada em seu benefício. Um ator precisa que a plateia embarque na mentira, assim como uma criança precisa da outra criança para brincar de polícia e ladrão. É um fingimento mútuo: eu vou fingir que não sou eu e você vai fingir que acredita. Quando isso não acontece, os efeitos são dolorosos para o ator e tediosos (ou hilariantes) para a plateia.
Da primeira vez que eu pisei num palco profissionalmente, o abismo, a quarta parede, lá onde fica o público, era isso mesmo: um enorme buraco negro prestes a me sugar. Não conseguia ouvi-los, senti-los, nada. Eu fazia Cordélia, em Rei Lear, e passava mais de uma hora fora de cena. Comecei a ir em casa para jantar. Ou então ficava no fliperama ao lado do teatro. Na hora de pisar novamente no palco, nem eu mesma era capaz de me convencer que ali era a Cornualha. Passei a sofrer ataques de riso. Eu ria morta, ria em pé, ria parada, ria no agradecimento. Ria, ria, ria. O elenco me dava bronca, eu sentia angústia, mas na hora H era irresistível, caía na gargalhada. Foi um pânico de cena, um pânico de cena de ator inconsequente.
Na estreia da Casa dos Budas Ditosos, anos depois da Cordélia risonha, eu já tinha aprendido que existe vida no buraco negro do público. Combinamos, eu e o Domingos de Oliveira, diretor da peça, acender a luz da plateia em alguns momentos do espetáculo. O teatro do Centro Cultural Banco do Brasil de São Paulo é pequeno, tem cento e poucos lugares. Na estreia, apareceram a crítica Bárbara Heliodora, o diretor Antunes Filho e o cineasta Hector Babenco, entre outros tantos. Eu tinha a sensação de que a plateia adernava o teatro para o lado de lá. Quando a luz acendeu pela primeira vez, percebi que um dos pontos de iluminação caía exatamente na cabeça do Babenco. Ela reluzia no meio da pequena multidão. Notei que Hector não estava muito entusiasmado. Imediatamente, me bateu a vergonha de representar. Eu dizia o texto, mas minha cabeça divagava: será que ele me acha ruim? Lembrei do Pixote, do filme do Fittipaldi, do Beijo da Mulher-Aranha, de uma péssima leitura que eu tinha feito do Carandiru. A luz continuou a acender e a apagar em cima da cabeça dele e, toda vez que isso acontecia, lá estava o Hector, cada vez mais entediado. No dia seguinte, a gente acabou com essa frescurada de ficar acendendo refletor na cara da plateia. São os horrores da estreia. Nenhum ator gosta de estreia, nem figurante. Numa montagem dirigida por Augusto Boal, no Arena, com o elenco amador do Teatro Oficina, um figurante, na véspera da estreia, se virou para o autor, o Zé Renato, e avisou: “Olha, amanhã eu não vou aparecer porque a gente fica muito nervoso na estreia, mas depois de amanhã pode contar comigo!”.
Já nas primeiras três falas, você sabe se o público virá com você ou não. Na estréia da Electra com Glauce Rocha, em Porto Alegre, nos anos 70, o pano se abriu e entraram em cena Orestes e Pílades, devidamente paramentados de gregos. Orestes tinha uma voz fraca, e gritou agudo: “Píííílades! Ó, Píííílades!”. O gerente do teatro olhou para o secretário e disse, desolado: “Lá se foi a temporada…”.
O público se manifesta como um só organismo. Toda plateia sofre de humores, não importa se formada por cem pessoas, por mil ou por dez mil. Alguns espectadores têm o poder de contaminar teatros inteiros, para o bem ou para o mal. Sempre bato o olho em quem está contra. Acho que existe um campo gravitacional que puxa a tua atenção para quem não está gostando. E, é claro, há o público errado para a peça errada.
Lembro de uma firma de construção civil, de São Paulo, que topou comemorar seu aniversário fechando uma sessão da Gaivota, de Tchecov, que eu fazia. A montagem não primava pelo ritmo fluente e, antes do espetáculo, serviram jantar acompanhado de vinho. No fim do primeiro ato, ouvimos os primeiros cochilos. Lá pelo meio do segundo, o público roncava sem cerimônia. No final, a gente via um acordando o outro para aplaudir.
Matheus Nachtergaele conta que quase perdeu o prumo durante uma apresentação do belíssimo (e vanguardíssimo) Jó. O público seguia a ação se deslocando pelas entranhas de um hospital abandonado de São Paulo. Depois de ser dependurado num pau-de-arara, Mateus era mergulhado numa banheira de sangue feito de chocolate e, em seguida, nu, caminhava em direção ao público narrando as provações da sua existência. Foi quando uma senhora se virou para a amiga e disse: “Satisfeita, Yolanda?!”.
E é claro, existem as vaias, o ódio declarado da plateia.
Fui retumbantemente vaiada duas vezes. A primeira no estrangeiro, em alemão. Foi quando aprendi na prática o significado da palavra Scheisse, que é “merda” no sentido literal e não cênico. Mesmo com medo, não deixei de achar glorioso. Pareciam os bárbaros invadindo Roma.
A outra vez foi no histórico Tuca, o teatro da PUC de São Paulo, palco de vaias bem mais importantes que a minha, como a de Caetano Veloso quando cantou “É Proibido Proibir”. No meu caso, o burburinho começou porque o público quis o dinheiro de volta e a bilheteria estava fechada. Eles tinham toda a razão, nosso trabalho era muito ruim, uma versão de Don Juan pra lá de confusa. Bilheteria fechada, o pessoal achou que era o caso de entrar de novo no teatro para protestar. A plateia do Tuca tem 700 lugares, se estende a perder de vista. A vaia veio rolando lá do fundo, em onda, como uma cascata sonora. Era imponente, tinha beleza. Pensei: “Meu Deus, estou sendo vaiada no Tuca! Vou lembrar disso para o resto da vida!”. Todo ator possui um lado masoquista. Os grandes fracassos têm importância para a gente. Não é gênero, não.
O vexame no teatro é contornável, a glória também, nada é permanente, tudo será repetido no dia seguinte. Existe o incômodo de estar presente nos momentos embaraçosos, mas isso passa. Cinema não passa. Tenho pavor de cinema. Cinema fica. Não é à toa que, entre a classe artística, o Canal Brasil é conhecido pelo nome de Quem Deve Treme. Uma cena emocionalmente complicada, no cinema, exige que o ator passe o dia botando os nervos no micro-ondas. Vai filmar? Você esquenta, lembra das razões do personagem. Ah, não vai mais?! Vai fazer o contraplano antes? Aquele em que você está de costas. Você faz, já gasta um pouco do que represou. E quando termina: “Almoço!”. Aí você enche a barriga, fica com sono porque acordou cedo, se distrai com uma conversa besta. “Vamos filmar!” Agora é com você: close do rosto. Cadê aquele sentimento delicado que te envolvia três horas antes? Foi-se com a espera, o tédio, o estrogonofe e o cafezinho. Você começa a fazer força para se lembrar de qualquer coisa tocante, rápido, vai rodar. O barulho do negativo, truuuuuuutruuuuu, o custo da película, da câmera, da equipe, a luz que está caindo, a locação que não pode ficar para a semana seguinte, o personagem a léguas de distância e você lá, frio, frio, frio feito uma geladeira.
Cinema é uma arte muito pouco confortável para o ator. É uma vez e pronto. Bom ou mau, aquele momento se congelará para sempre.
Recentemente recebi um convite que trouxe de volta a insegurança do início da minha carreira. Fui chamada para repetir, como atriz, o depoimento que uma mulher havia dado dias antes ao diretor. Não uma personagem de ficção, mas uma mulher de verdade, que contou sua história. Me mandaram a fita com o depoimento dela. Eu deveria assistir e encontrar uma maneira de interpretá-la, repetindo o que ela havia dito. A empreitada se revelou dificílima. Toda vez que eu via a fita original, tinha certeza de que, quando o filme ficasse pronto, alguém se levantaria da plateia para gritar: “Ela está mentindo!”.
Wagner Moura me disse que, no Carandiru, os atores gostavam de pegar sol no pátio do presídio durante os intervalos das filmagens. O problema é que a outra ala da carceragem ainda estava ativada e os presos ficavam pendurados nas grades da cela, olhando os atores e gritando: “Tu é marginal porra nenhuma! Tu é viado! ô, VIADO!”. Ninguém do elenco quis mais arejar lá fora, para não ter que lidar com a crítica feroz dos presos. Esse negócio de fazer gente que existe é uma coisa muito complicada.
Quando chegou o dia da minha filmagem, fui para lá nervosa, com a tal mulher no corpo, doida para me livrar dela. Na hora combinada, me sentei diante da câmera, o personagem em mim – mas a equipe continuou a se relacionar comigo, com a Nanda Torres, e aí me deu um curto, a boca secou, a mulher se escafedeu, sumiu. “A pior coisa que existe é você estar com a entidade no corpo e os outros insistirem em falar com o cavalo.” A frase é do Amir Haddad, o mesmo que ensinou Pedro Cardoso a ficar calmo. Amir faz teatro de rua. Quando está atuando, fica perdido quando algum conhecido passa berrando: “Ô, Amir!”.
Adoeci por causa dessa filmagem. Saí de lá direto para a cama. Só levantei uma semana depois, à base de Amoxil 875mg. Saí dali com raiva – raiva dessa profissão idiota. A experiência instalou uma dúvida incômoda na minha cabeça. Existe um paradoxo na vida do ator. Se você tiver êxito, provavelmente se tornará conhecido. Mas, uma vez transformada em figura pública, como convencer o resto do mundo que você é quem finge ser? O convite para fazer uma mulher real, do subúrbio do Rio, mexeu com os meus brios, aguçou a desconfiança de que, talvez, eu tenha perdido a capacidade de me perder em alguém. A profissão de ator não tem nada a ver com fama.
Quando se está em cena, seja no teatro, no cinema ou na televisão, você quer dominar os sentimentos, é um esforço mental gigantesco. Minha mãe diz sempre que só se deve falar depois de criar uma imagem na cabeça. Você fabrica uma alucinação e a projeta para o público. É um trabalho que acontece invisivelmente. É muito tênue, frágil, requer concentração. O pânico vem da autoconsciência, do julgamento de si mesmo, da expectativa, da censura interna e de qualquer ruído que lembre o quão inútil é a profissão.
Na antiga cidade grega de Pela, existe um mosaico com a imagem de Dionísio cavalgando as costas de um tigre. Para o deus do teatro, o palco, assim como o chão que pisamos em vida, é o dorso instável de uma fera. O medo é um sentimento inseparável do comediante. Se um ator, numa fração de segundo, se der conta de que quem está ali é ele, o mortal, e não o outro, o personagem imaterial, terá a alma exposta e correrá o risco de a qualquer momento ser abocanhado e cuspido pela besta imaginária. A peça em que Renata Sorrah mais tremeu, de bater os queixos antes de entrar em cena, foi um texto de Pirandello com o sugestivo título de Encontrar-se. No fundo, está tudo contido na primeira fala do primeiro ato de Hamlet.
“Quem está aí?”
Fernanda Torres, atriz e escritora, é autora do romance Fim, da Companhia das Letras