ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Bolivarianos do balneário
Ah, se o Comandante estivesse vivo...
Roberto Kaz | Edição 5, Fevereiro 2007
No dia 19 de janeiro, uma sexta-feira, o técnico em informática João Cláudio Platenik Pitillo saiu mais cedo do trabalho. Quando o relógio bateu 3 da tarde, ele já estava diante da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro, onde nunca entrara. Aos poucos, os amigos – ou “companheiros”, como prefere – foram chegando, todos de vermelho. Pitillo, inadvertido, usava uma camisa Lacoste azul-bebê de listinha branca. Destoava. Da sacola que trazia, tirou um adesivo com a efígie de Che Guevara – símbolo de um grupo do qual participa – e o colou no peito, sobre o jacarezinho da marca. Estava, assim, devidamente uniformizado. Ele é membro dos Círculos Bolivarianos Leonel Brizola, organização surgida em 2004 para, segundo o manifesto de fundação, prestar “solidariedade para com a Revolução Bolivariana na Venezuela”.
No dia em que Pitillo foi à Assembléia, os Círculos Bolivarianos Leonel Brizola compareceram em massa. O evento era especial: o presidente da Venezuela, Hugo Chávez – que viera ao Brasil para a Cúpula do Mercosul -, seria homenageado com a Medalha Tiradentes, a mais desmoralizada distinção dada pelo combalido Poder Legislativo do estado do Rio. A cerimônia estava marcada para 5 e meia da tarde. Pitillo chegou cedo.
Pitillo é um homem alto e gordo de 33 anos. Nos Círculos Bolivarianos Leonel Brizola, ele coordena o Setor Bolivariano de Favelas e a Videoteca Bolivariana Glauber Rocha, onde, dos Estados Unidos, só entram filmes como Stalingrado: A Batalha Final, Inimigo do Estado e Tiros em Columbine. A pirataria é permitida – e incentivada: “A gente copia o filme que for, sem custo. Só na base do regalo socialista.” A sacola que carrega, inclusive, está cheia de filmes politizados, para assistir com a namorada: “Ela não faz parte do grupo, mas entende a causa e é companheira. Até trocou o quadro da Hello Kitty pelo do Che Guevara”.
Para recepcionar Hugo Chávez, os membros trouxeram panfletos, adesivos cartazes, bandeiras do país vizinho e broches, importados da Venezuela, com a frase “Chávez, és um vencedor“.
Às 17 horas, a Assembléia é aberta ao público. Dentro, as paredes estão tomadas por faixas, umas sobre as outras. A maior parte delas pede a nacionalização do petróleo. Aurélio Fernandes, um dos coordenadores dos Círculos, espalha a palavra de ordem para quando Chávez entrar: “Alerta! Alerta! Alerta que caminha!/ A espada de Bolívar por América Latina!”. Todos decoram.
Hugo Chávez chega com uma hora de atraso. O primeiro que se dirige à mesa é o presidente da Assembléia, Jorge Picciani, acusado de manter trabalho escravo em suas fazendas. Pitillo se assusta: “Caramba, é o Picciani! Não olha que você vira pedra”. O deputado tenta abrir a solenidade. Sua voz desaparece debaixo da vaia. A gritaria se prolonga até que Picciani pronuncia os nomes próprios “Hugo” e “Chávez”. Berros. O pessoal puxa o grito de guerra: “Alerta! Alerta!…”.
O público se levanta para ouvir o Hino Nacional da República Bolivariana da Venezuela, tocado pela banda da Polícia Militar. Fernandes sabe os primeiros versos. Sua esposa vai até o último. Em seguida, é a vez do Hino Nacional brasileiro. Pitillo se põe de pé, mas abdica da cantoria: “Esse hino é muito filho-da-puta. Foi feito pelos positivistas, que eram herdeiros do fascismo”. O auditório está tomado por bandeiras de Cuba, da Palestina e da Venezuela. Uma garota pergunta se alguém tem uma bandeira do Brasil para emprestar. Não há resposta.
O deputado Paulo Ramos, do PDT, responsável pela homenagem a Chávez, começa seu discurso: “Estar aqui, hoje, representa uma veemente manifestação contra o capitalismo mundial”. A multidão aplaude. Um manifestante exclama: “Lula neoliberal!”. O discurso prossegue: “Não podemos deixar de mandar uma mensagem de recuperação ao companheiro Fidel Castro”. Pitillo dá um pulo da cadeira e grita: “É isso aí!”. Inicia-se um novo clamor: “Cuba! Cuba! Cuba!”.
Com uma lista na mão, o presidente venezuelano agradece a absolutamente todos os grupos ali presentes. Quando chega ao nome dos Círculos Bolivarianos Leonel Brizola, Pitillo salta mais uma vez da cadeira: “Sou eu! Soy yo! Soy yo!”. No fundo da Assembléia, uma repórter da Globo se prepara para entrar no ar. Os membros dos Círculos Bolivarianos Leonel Brizola percebem. O coro entra em ação: “O povo não é bobo!/ Abaixo a Rede Globo!”. Hugo Chávez entende que está em seu habitat natural. Minutos depois, providenciará o clímax da cerimônia.
São 20 horas e 15 minutos. Chávez discursa há mais de uma hora. Não parece cansado. Nesse mesmo dia, o jornal O Globo havia publicado um editorial contra ele. Depois de uma pausa dramática, Chávez denuncia “los oligarcas dueños de la Rede Globo!“. Aplausos intensos. Um exemplar do jornal aparece a seu lado. Segurando-o com a ponta dos dedos, como se fosse bicho peçonhento, brada: “O Globo es inimigo del pueblo brasileño!“. Emocionado, Pitillo diz: “Esse momento foi feito para o Brizola. O Chávez critica a imprensa, fala de nacionalização… até o jeitão dos dois é parecido. Ah, se o Comandante estivesse vivo…”.
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