ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
O Espírito Santo dos modernos
Filas e empurra-empurra para ovacionar um cinqüentão calvo investigado pela Justiça
| Edição 5, Fevereiro 2007
São 5h30m do dia 9 de janeiro. Da janela do hotel em frente ao Moscone Center, centro de convenções no miolo de São Francisco, dá para ver a multidão de gente encasacada que se aglomera ali desde as 21 horas do dia anterior. Na TV, reportagens ao vivo reproduzem a excitação que precede a abertura dos portões. Faltam menos de quatro horas para o tão ansiado show. Cada ingresso custou 215 dólares. Há quatro mil lugares disponíveis, disputados a tapa, cotovelada e pisão por homens e mulheres que parecem dispostos a tudo para chegar o mais perto possível de seu ídolo. A imprensa também se estapeia. Vindos de toda parte do mundo, mais de quatrocentos jornalistas precisam garantir o melhor lugar para cobrir o espetáculo. Todo ano é assim, e a coisa só piora quando fãs e imprensa desconfiam que, caso entrem, poderão estar diante de uma nova mania planetária.
“Estou tão nervoso que nem dormi direito”, revelou Brett Thomason, de 23 anos, à piauí. Era a sua primeira vez. “Fiquei dez anos sonhando com esse momento… Nem acredito que é verdade”, disse ele, com os olhos rútilos de um personagem de Nelson Rodrigues. Thomason integra uma das tribos de adoradores que dentro em pouco entrará no auditório, nerds que cresceram ou envelheceram embalados pelos sucessos criados por seu ídolo.
Depois de horas de espera e empurra-empurra, a manada ocupa o auditório aos trambolhões. Homens e mulheres de aparência bem comportada abandonam de vez a etiqueta e se estapeiam para garantir lugar na fila do gargarejo. A trilha sonora está a todo volume. Tem Coldplay, Gorillaz, muito U2 e James Brown – “I Feel Good”. Pelo mapa da acomodação final, estão jornalistas de um lado, convidados e aspirantes a celebridade no meio e público em geral pelo resto do salão.
Dezenas de câmeras de televisão se aprontam para o momento. Flashes pipocam. Um telão gigantesco, de altíssima definição, na parte central do palco. Uma voz anuncia que vai começar. A platéia aplaude, ansiosa.
E Steve Jobs sobe ao palco.
É aplaudido desvairadamente. Como um tribuno bolchevique prestes a tomar o palácio de inverno, ele anuncia a que veio: “Hoje vamos fazer história, juntos!”. Urros de prazer na platéia. Jobs – presidente, CEO e verdadeira CPU da Apple Computer Inc. – está em cena. Poucos hesitariam em dizer que se trata de algo infinitamente mais eletrizante do que qualquer show de rock.
Jobs adota procedimentos de estrela. Arredio a jornalistas, nunca dá entrevistas e raramente fala em público. Certeza de que ele aparecerá ao vivo, só mesmo aqui, na palestra de abertura da Macworld, a feira anual da Apple, na qual costuma fazer um balanço das conquistas da marca da maçã (imensas, nos últimos anos) e, sobretudo, anunciar novidades. Foi na Macworld que o empresário apresentou ao mundo o iMac e o tocador de música iPod.
Jobs fundou a Apple nos anos 70. Uma década depois, os acionistas o puseram para fora da empresa. A Apple amargou prejuízos e ele foi convidado a voltar. Tudo ia muito bem, até que estourou o escândalo financeiro. Como tantos outros altos executivos, Jobs também é remunerado com ações da companhia. No final do ano passado, a Apple engrossou a lista de empresas investigadas pelo governo americano por irregularidades em transações com ações. Jobs e outros diretores teriam falsificado as datas de posse de suas ações (o chamado backdating). Com isso, teriam gerado lucros artificiais e se beneficiado financeiramente. Se for verdade, os acionistas amargaram um prejuízo de cerca de 80 milhões de dólares. Logo depois da divulgação da notícia, as ações da Apple chegaram a cair 6%. Jobs sobe ao palco do Moscone californiano para provar a si e ao resto do mundo que continua soberano.
Aos 51 anos, calvo, o megaempresário veste o figurino oficial do Vale do Silício: tênis, calça jeans e blusa de malha. Jobs sabe se transformar num apresentador que cativa a massa – embora a platéia de macmaníacos já seja cativa e dócil ao extremo. Risonho, piadista, seu discurso é mais ensaiado do que os do presidente Bush. Nos dias que antecedem a palestra, treina à exaustão, à base de missô e sucos de fruta. Três aparelhos de teleprompter espalhados pelo palco servem de cola.
O público sabe quando aplaudir e não o deixa falar por mais de dois minutos sem uma nova salva de palmas. Jobs faz troça dos concorrentes, solta comentários engraçadinhos sobre a Microsoft de seu arqui-rival Bill Gates. As cifras mostram que o iPod, anunciado há seis anos, é hoje o tocador de MP3 mais vendido no mundo. A loja virtual de música iTunes chegou à marca de 2 bilhões de músicas vendidas. Palmas e mais palmas. Ele exibe os novos comerciais dos iPods. Mais palmas ainda.
São agora 9h26m. Jobs começa a tirar seus coelhos da cartola. Anuncia a Apple TV, chamada por ele de “tocador de DVD do século XXI”. Quinze minutos depois, dá a deixa: “Este é o dia pelo qual venho esperando há dois anos e meio”. Confirmando a apoteose, declara: “Hoje a Apple vai reinventar o telefone!”. O rebanho reage como se visse a Virgem – surge, finalmente, o iPhone.
Depois da agonia, o êxtase. Jobs lista os atrativos do mais novo objeto de desejo concebido pela Apple. Seu telefone celular acaba com o teclado padrão. Como o mundo já aprendeu, o iPhone é uma tela interativa que se modifica segundo a vontade do usuário. Jobs aciona o comando de exibir as ações da Bolsa – imediatamente, surgem no telão as ações da Apple em franca ascensão. Teatro da melhor qualidade. Delírio.
Jobs ensaia a despedida. Informa que a palavra “computer” deixa de fazer parte do nome oficial da Apple e se retira do palco. Como encerramento, um pocket-show do cantor pop John Mayer. Depois que ele canta duas músicas, a estrela do dia, e talvez da semana, volta à cena. Aplausos e mais aplausos. No total, mais de sessenta rodadas de aplausos. São 11h10m. Fim do show.
No telão, surge a foto em preto-e-branco de um Jobs garoto, ao lado do amigo Steve Wozniak, nos tempos em que fundaram a Apple. Jobs desce até a platéia e, cercado por centenas de jornalistas, faz questão de cumprimentar os colaboradores. Wozniak, hoje consultor da Apple, é um deles. Imodesto, ele disse à piauí: “Nessa foto nós tínhamos nossos 20 e poucos anos, mas sabíamos que estávamos fazendo uma revolução”.
Lá fora, na feira, uma multidão se acotovela para ver iPhones que giram em vitrines. Para alguns funcionários da Apple, trabalhar na empresa é uma espécie de missão divina. Um deles diz: “Não temos horário, às 2 da manhã a sede está lotada de gente trabalhando sem parar. Mas me sinto recompensado. Sou um macmaníaco que ainda por cima ganha salário para estar próximo das idéias de Steve Jobs”.
Diante da vitrine com o iPhone, Brett Thomason, o rapaz que passou dez anos à espera de encontrar Steve Jobs, fotografa o aparelho. “Não tem gente que vai ao museu ver a Mona Lisa? Eu vim para ver o iPhone.”