ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Presença de João Paulos
Aventuras de papas pelo Norte do Brasil
Maria Dolores | Edição 5, Fevereiro 2007
Terça-feira, 10 e meia da noite. Aldenor Ernesto Lima, 68 anos, acaba de chegar. Vai até o caixa, conversa um pouco com Emerson, um de seus oito filhos, diz boa-noite aos funcionários e se posta atrás do balcão. A casa está cheia. Ele passa a vista na clientela e rapidamente identifica fregueses fiéis, clientes desde sempre. Olha então com mais calma para ver se há algum visitante. Do lado de fora, em duas mesas unidas na calçada, acha um rosto novo. Aproxima-se, pergunta se a comida está boa. Ao ouvir os elogios, não hesita: “Minha comida é boa mesmo, até o papa, quando veio a Manaus, quis comer aqui”. Como assim, “o papa”? O que morreu há quase dois anos? Aquele? Aqui? “Isso mesmo.” Pronto, mais um cliente no bolso.
O Canto da Peixada é um restaurante com cara de boteco na esquina de uma das avenidas mais movimentadas de Manaus. Oferece a tradicional culinária amazonense desde que abriu, em 1974, quando Lima, natural de um vilarejo a 80 quilômetros da capital do estado, decidiu se fixar na cidade. “Eu sirvo muito embaixador, ministro estrangeiro, capitão desses navios de turistas do exterior, e até o Lula, antes de ser presidente, já comeu aqui”, ele diz. Mas capitão de navio, ministro estrangeiro e embaixador é bobagem perto do santo padre. Lima se gaba: “Quando fiquei sabendo que o papa vinha visitar a cidade, fui procurar o arcebispo e disse que queria servir comida pra ele. E não é que ele mesmo falou que queria comer peixe em Manaus? Daí o arcebispo indicou meu restaurante”.
Para eternizar o grande momento do Canto da Peixada, Lima fez o que fazem as igrejas: montou um altar. Solene, compartilhando a parede atrás do balcão com propaganda de cerveja, lá está o relicário: uma caixa de madeira e vidro que abriga um prato fundo de bordas verde-água com o desenho de um peixe indefinido no centro, um pratinho em formato de meia-lua com o mesmo desenho, duas taças grandes, outra pequena, um garfo, uma colher e uma faca. Todos os apetrechos sagrados que João Paulo II usou para comer caldeirada de tucumã e costela de tambaqui com molho escabeche. Refeição que os outros mortais podem saborear por pouco mais de 40 reais. O papa não precisou sacar o cheque. Lima não cobrou.
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João Paulo II nunca foi a Rio Branco, capital do Acre, mas está lá, ao lado de João Paulo I. Os dois disputam a atenção dos rio-branquenses há quatro anos. Ambos têm mais ou menos as mesmas dimensões, oferecem conforto semelhante. Seria quase impossível distingui-los não fosse a cor e, sobretudo, o conteúdo: na maioria das vezes, João Paulo II recebe os títulos mais populares. Quando João Paulo II, vermelho vivo, exibiu O Código da Vinci, João Paulo I, azul-turquesa, teve de se contentar com a sala vazia. E é impossível negar o sucesso do mesmo João Paulo II nesse início de ano, fruto talvez de seu ecletismo, com Xuxa Gêmeas e Jogos Mortais 3 em cartaz, contra Uma Noite no Museu, exibido no concorrente.
Os dois papas dão nome aos únicos cinemas da capital do Acre, desde que o Cine Rio Branco ardeu em chamas durante um incêndio, na década de 80. Saudoso dos tempos de infância e juventude, regados a Mazzaroppi, Oscarito, Gilda e muito bangue-bangue, o comerciante José Maria Melo abriu, por sua conta e risco, uma sala de projeção na galeria de lojas construída por ele em 1990. “A idéia era dar à cidade um novo cinema – meu pai queria muito isso – e também aumentar o fluxo de pessoas na galeria”, explica Gláucio Villamor, filho de Melo, que atualmente cuida dos negócios da família.
Católico, o comerciante batizou o empreendimento de Cine João Paulo, em homenagem ao papa João Paulo II e ao filho caçula, homônimo do sumo pontífice. Mas nem fé nem nome santo foram suficientes para manter a casa aberta. Por falta de público, o cinema fechou. Pai e filho deduziram que uma das causas da baixa freqüência pudesse ser o frio. Com medo de que o calor de Rio Branco atrapalhasse as sessões, haviam instalado um eficiente sistema de ar-condicionado, ajustado na potência máxima. Era mais potente do que a encomenda: “De repente aparecia alguém com manta, cobertor, lençol, e aí vimos que tinha alguma coisa errada. Ficava frio demais lá dentro”, conta Gláucio, que então mandou regular a temperatura.
A bilheteria melhorou, mas não muito. Foram oito meses de projetores parados e cadeiras vazias. Até que se obteve o apoio da imprensa local e o cinema foi reaberto. O filme de reinauguração foi Independence Day, com a casa cheia. Dali em diante, o Cine João Paulo nunca mais parou. Quatro anos depois, Melo decidiu fazer outra sala, conjugada, e a batizou de João Paulo I. A sala antiga, a que havia sido a origem de tudo, foi rebatizada de João Paulo II, provavelmente por questões de hierarquia pontificial.
“Uma pena que às vezes os filmes demorem um pouco a chegar. E nem todos chegam”, diz Rummenigge Brasileiro, que tem 24 anos, trabalha na Polícia Militar de Rio Branco e adora filmes de diretores festejados, como Quentin Tarantino. “Kill Bill passou aqui, até nem demorou tanto”, diz satisfeito. Mas, na contramão de Rummenigge, a maioria prefere mesmo as superproduções de Hollywood. Titanic atraiu caravanas de cidades vizinhas e do interior do estado. Todos queriam assistir ao amor de Jack e Rose na tela de João Paulo II. Em 2006, quando O Código Da Vinci chegou a Rio Branco, em uma das raras ocasiões que a cidade foi incluída no lançamento nacional de um filme, lotou outra vez João Paulo II. Enquanto isso, João Paulo I se resignava a um ou outro gato-pingado. Até no ramo cinematográfico, coitado, é papa de segunda linha.