Na festa de gala a bordo do Giulio Cesare, em 1954, minha mãe e João Alberto, o tenente que escapou de um acidente de avião no Rio Prata FOTO: ACERVO FAMILIAR
A última missão
Num transatlântico, o encontro com o sobrevivente de um desastre de avião; e o seu reencontro numa fotografia da Coluna Prestes
Eduardo Escorel | Edição 6, Março 2007
Foi Marinete quem nos deu a notícia.
Ela viera de Alagoas e fora contratada como babá, talvez por indicação do porteiro. Como de hábito, saíra cedo levando meu irmão e minha irmã menores, ela ainda de carrinho, para brincarem no Jardim de Alá. Eu estudava à tarde e acabara de acordar quando Marinete voltou transtornada, pouco depois de ter saído. Onde terá comprado aqueles cartuchos de pó corante que diluiu em água? Alheia ao meu espanto, tingiu de preto um de seus uniformes, numa bacia de alumínio, no chão da área de serviço, e foi para o velório no Catete. Com a morte do presidente, o colégio onde eu era disciplinado a cascudos
pelos padres suspendeu as aulas. Apesar do abalo da Marinete, não deixei de comemorar o dia de folga.
Na manhã seguinte, Marinete apareceu triunfante. Contou que, depois de passar horas na fila, até chegar perto do caixão, desmaiara e fora levada a um pronto-socorro. Anos depois, procurei- a nas imagens das manifestações de desespero filmadas no velório. Não a encontrei.
Graças a Marinete, tive minha primeira lição sobre liderança carismática. Até aquele momento, não tomara conhecimento de Getúlio Vargas. Meu interesse por política se resumira à coleção de bótons que fizera com minha irmã mais velha na campanha presidencial americana de 1952. A simpatia dos meus pais fora pelo democrata Adlai Stevenson, mas o bóton que mais cobiçávamos era o com a inscrição “I Like Ike”, do republicano Dwight W. Eisenhower. A preferência do meu pai por Stevenson transparecia a tal ponto nos relatórios escritos para o Itamaraty que o embaixador recomendou, em nome da imparcialidade requerida de um diplomata, que moderasse seu entusiasmo. Quando teve oportunidade de contar isso ao próprio Stevenson, meu pai recebeu dele um retrato com dedicatória em que agradece sua gallantry in action (fidalguia em ação).
Em outubro de 1954, embarcamos no Giulio Cesare a caminho de Roma, onde meu pai assumira seu novo posto. O transatlântico levava mais de mil passageiros. Era um dos grandes orgulhos da frota italiana, o mais rápido da rota sul-americana. Ocupando três cabines contíguas na primeira classe, além da minha mãe, íamos minha irmã mais velha e eu, meu irmão e minha irmã menores. E Marinete, a única a circular à vontade pela segunda e terceira classes, onde encantava passageiros e tripulantes com passos de frevo.
Os onze dias de travessia foram de puro encantamento, passados entre banhos de piscina, jogos, uma festa de aniversário no deque e refeições feitas na sala das crianças, separada da dos adultos. Despreocupação total, própria de uma infância de privilégio. Na minha idade, o luxo, em contraste com o apartamento de sala e três quartos no Leblon, de onde saíramos, era um atrativo a mais.
Com os filhos menores entregues aos cuidados da Marinete, e os dois maiores circulando por conta própria, minha mãe pôde se dedicar à leitura. Passados mais de cinqüenta anos, ela ainda sabe de cor a epígrafe do livro que leu durante a viagem: “Make me a willow cabin at your gate, and call upon my soul within the house” (“Uma cabana de ramos de salgueiro no portão, Que chame por minha alma dentro da casa”), trecho da peça Noite de Reis. Do título do livro, não se lembrava, mas sabia que o primeiro nome da autora era Pamela. Ficou em dúvida se era Hansford Johnson ou Frankau. Contemporâneas, as duas inglesas foram autoras prolíficas, de grande sucesso, dos anos de 50 e 60.
Sabendo a epígrafe, não foi difícil identificar The Willow Cabin, de Pamela Frankau, como a leitura de bordo da minha mãe. Mergulhada no romance, não deve ter lembrado que o qüiproquó da comédia de Shakespeare, na qual Pamela Frankau foi buscar a epígrafe e o título do seu livro, se origina de um naufrágio. O navio em que viajam os gêmeos Viola e Sebastian afunda no Adriático. Salvos por acaso, eles choram a morte um do outro – sem saber que ambos sobreviveram. Em retrospecto, esse desastre marítimo fictício parece um presságio dos acidentes e naufrágios dos quais eu começaria a ter notícia ainda durante a viagem.
Ao nos aproximarmos do equador, começaram os preparativos para o batismo dos que cruzariam a linha imaginária pela primeira vez. O ritual consistia em um banho de farinha e água, gosma que empastava o cabelo e grudava no corpo. Em seguida, o passageiro era jogado na piscina. Passada a provação, como único consolo o infeliz recebia um certificado do seu novo status, o de Filho de Netuno. Por meio desse antigo rito, a violência do mundo emergia naquele reino encantado.
Tendo declarado minha condição de veterano, consegui escapar da iniciação. Aos 9 anos, aquela era minha terceira travessia. Só deixei de esclarecer que não fora batizado em nenhuma das anteriores. Da primeira vez, no bimotor DC-3 que nos levou aos Estados Unidos, não se cogitou de batismo. Na volta ao Brasil, éramos os únicos passageiros do Sygma, um cargueiro norueguês, e com certeza os marinheiros tinham mais o que fazer.
Tendo me livrado do trote, à noite desfilei, satisfeito, no concurso de fantasia infantil. Dividi o primeiro prêmio com minha irmã maior. Ela se vestira de menina antiga, com chapéu e babados de papel crepom rosa, e eu de mestre-cuca, com avental branco até o pé, panela, colher de pau e chapéu de chef. O retoque final foi um bigode e um cavanhaque, pintados com o lápis de sobrancelha da minha mãe. Fantasiada de camareira, ela foi premiada entre os adultos. O ascensorista do navio se apresentou vestido de touro e, a partir desse dia, passou a meter medo no meu irmão que, apavorado, evitou o elevador pelo resto da viagem, dando grandes voltas para usar as escadas.
O navio seguia, imerso na escuridão. Olhando o mapa, diria que devíamos estar a meio caminho entre o Rio e a escala em Dakar. Depois do concurso de fantasia, a festa de gala continuaria sem as crianças. O traje passava a ser a rigor. Minha mãe conversava com um senhor em quem eu não havia reparado até aquele momento. Para não ter que ir dormir, sentei perto deles e lá fiquei, ouvindo a conversa. Nunca entendi por que ele acabou me contando um episódio da sua vida. Seria uma história que gostava de relembrar, ou foi o fato de estarmos no meio do oceano, que o fez pensar na vez em que, voltando para o Brasil num vôo noturno, o avião em que viajava caiu no mar? Mesmo não sendo bom nadador, agarrado em alguma coisa ele conseguiu chegar a terra firme. O amigo que viajava com ele, e nadava muito bem, morreu afogado.
Suponho que o relato tenha sido detalhado, com floreios, pausas retóricas e instantes de suspense, mas só lembro desses fatos descarnados. Ainda assim, me impressionaram muito. Não imaginava que aventuras como aquela pudessem acontecer na vida real. Parecia impossível alguém sobreviver a um desastre de avião. Era um feito heróico, mas não correspondia, em nada, à aparência dele – aos meus olhos de menino, um velho careca, meio gordo e de olhar assustador. Eu admirava caubóis, índios, homens mascarados, cavalos, cachorros e jogadores de futebol. Meu ídolo do momento, além do ponta-direita Julinho, era o xerife feito por Gary Cooper em Matar ou Morrer. Magro, alto, exemplo de retidão moral, ele sim era capaz de vencer o pânico e salvar o dia.
Antes de dormir, perguntei quem era aquele homem. Chamava-se João Alberto, e estava a caminho de Genebra. Minha mãe talvez soubesse mais do que isso, mas foi só o que me contou.
Na escala em Barcelona, João Alberto nos convidou, a minha irmã maior e a mim, para um passeio pela cidade. Adotados por algumas horas, fomos ver a réplica em tamanho natural da Santa Maria, a nau capitânea na qual Colombo cruzou o Atlântico Norte. Comparado ao poderoso Giulio Cesare, feito de aço e pintado de branco, aquele pequeno navio de madeira me pareceu mesquinho. Achei inverossímil que pudesse ter chegado incólume às ilhas do Caribe, depois de 36 dias, levando 56 homens a bordo. Não me surpreendeu saber que nunca voltou, por ter atolado, sido desmontado e sua madeira usada na construção de uma fortaleza. O grande programa do passeio em Barcelona, mais adequado a nossos interesses infantis, não foi marítimo. Na colina mais alta da cidade, no parque de diversões, minha irmã e eu ficamos maravilhados vendo nossas imagens distorcidas na sala dos espelhos.
Nunca mais encontrei João Alberto. Não vi nosso bondoso guia turístico nem mesmo nos dias finais da viagem. Ele não aparece nas fotografias tiradas a bordo, pouco antes de chegarmos a Gênova. Na aflição do desembarque, ao tentar conseguir um carregador, fachino em italiano, meu pai chamou um peru (tachino).
Tomamos o trem noturno e nos instalamos em Roma por dois anos, no segundo andar da Via Nicola Martelli 40, o único endereço da infância que nunca esqueci. Marinete não demorou a se apaixonar por um bagnino (salva-vidas) italiano e a largar o emprego de babá.
Antes de deixar a Itália, dessa vez em um quadrimotor DC-7 da Panair do Brasil, acompanhamos comovidos as notícias do naufrágio do Andrea Doria, transatlântico ainda maior e mais luxuoso do que o Giulio Cesare. Navegando rumo a Nova York, fora atingido, tarde da noite, em meio à neblina, pela proa reforçada de um navio quebra-gelo, e afundou na manhã seguinte. A maioria dos passageiros e da tripulação foi salva por navios que responderam ao pedido de socorro. Ainda assim, houve 52 mortos no desastre.
Para substituir o Andrea Doria, o Giulio Cesare foi deslocado para o trajeto entre a Europa e os Estados Unidos. Quando voltou à rota original, eu já era adolescente. Durante uma das suas passagens pelo Rio, fui ao centro da cidade para revê-lo. Ao saltar do lotação, na Praça Mauá, não reconheci o navio à minha frente. Depois de apenas seis anos, perdera toda a imponência. Entre a realidade e a lembrança, surgira uma distância intransponível.
Em menino, tivera sensação semelhante ao assistir à apresentação de um dos meus ídolos num circo. Eram os primeiros tempos da televisão, que transmitia, em preto-e-branco, velhos filmes B, feitos para serem exibidos nas salas de cinema, nos quais William Boyd interpretava o caubói Hopalong Cassidy. Naquela tarde, em Washington, quando meu herói entrou no picadeiro, todo de negro, montado em Topper, seu cavalo branco, não acreditei que fosse a mesma pessoa que eu conhecia da televisão. Havia um abismo entre a imagem que eu via em casa e aquele senhor enrugado, transpirando debaixo do rouge e do pó-de-arroz enquanto dava voltas e empinava Topper. Impressão análoga à que tive também quando voltei às ruas da minha infância em Roma. Andei pela Via Nicola Martelli e as redondezas, depois de quinze anos, como se estivesse percorrendo, em sonho, uma cidade fantasma. Me senti perdido, estrangeiro em um território que me pertencera.
Minha decepção diante do Giulio Cesare, de Hopalong Cassidy e das ruas de Roma foi o preço pago pela nostalgia de uma época que naufragara no oceano sem fim do presente. Continuava viva na memória, mas estava petrificada no mundo real. Voltar à infância só seria possível através da ficção ou de imagens do passado.
Foi assim que reencontrei João Alberto, depois de 25 anos. Pude então voltar no tempo sem me desiludir. Lá estava ele, trinta anos antes da viagem no Giulio Cesare: magro, cabeça alongada, corpo encurvado, barba comprida, sentado entre Juarez Távora e Cordeiro de Farias,na célebre fotografia do alto-comando da Coluna Prestes. João Alberto está em posição simétrica a Siqueira Campos, sentado à esquerda, entre Djalma Dutra e Luís Carlos Prestes. Na foto, ele parece um homem recatado, que não sabe bem o que fazer com as mãos, largadas no colo, meio sem jeito. É dos poucos que está de paletó e botinas. O amassado na calça faz supor que tenha tirado as perneiras para a pose histórica. Já a postura de Siqueira Campos é altaneira. De pernas cruzadas e um esboço de sorriso, irradia autoconfiança. Usa botas de montaria de cano longo, couro sanfonado e abas para proteger os joelhos. João Alberto estava com 29 anos, Siqueira Campos era dois anos mais moço. Usavam barba para atenuar a juventude e impor respeito à tropa.
Quando vi essa foto pela primeira vez, já aprendera que os tenentes João Alberto Lins de Barros e Antonio Siqueira Campos haviam chefiado destacamentos da Coluna que partiu de Mato Grosso e percorreu 25 mil quilômetros, a pé e a cavalo, através de treze estados. Enfrentando tropas governistas muito superiores, em uma guerra de movimento, os revoltosos nunca foram derrotados. Opunham-se ao autoritarismo do governo Arthur Bernardes, defendiam o respeito à Constituição de 1891 e propostas reformistas. Depois de quase dois anos de marcha, quando os integrantes se exilaram na Bolívia e no Paraguai, Luís Carlos Prestes se transformara no líder que viria a ser celebrado como o Cavaleiro da Esperança.
Nas Memórias de um revolucionário, de João Alberto, há o relato desse período de lutas, e também da viagem feita a Buenos Aires, em maio de 1930. Lá está, em detalhe, a descrição do desastre de avião que ele me contou quando eu era menino. De acordo com João Alberto, ele e Siqueira Campos foram encontrar Prestes no exílio. O chefe da Coluna informou-os que aderira ao comunismo, avisou que lançaria um manifesto rompendo com a Aliança Liberal e tentou convencê-los a seguir seu exemplo. João Alberto e Siqueira Campos não concordaram.
Arrasados com o desacordo com Prestes, partiram de volta numa madrugada chuvosa e fria. O avião era um monomotor de cinco lugares, do correio aéreo francês, próprio só para vôos diurnos. João Alberto adormeceu logo depois da decolagem. Acordou com uma pancada na cabeça. As ondas batiam no avião. Siqueira Campos conseguiu abrir uma porta e subir no teto, onde os dois tripulantes e os três passageiros, agarrados uns aos outros, tentaram se equilibrar enquanto o avião afundava no rio da Prata. Pensando ter menos chance de se salvar, João Alberto entregou a Siqueira Campos o dinheiro que Prestes lhe dera, e recebeu do amigo um dos assentos de couro do avião, que lhe serviria de bóia. Acabaram tendo que se jogar na água gelada, vestidos só com a roupa de baixo. Depois de nadar um pouco, João Alberto ouviu Siqueira Campos chamando por ele e o viu afundar. João Alberto foi o único sobrevivente.
Cinco meses depois do desastre, em outubro de 1930, ele estava no trem que levou Getúlio Vargas e a tropa vitoriosa para o Rio de Janeiro. Na cena em que foi filmado a caminho do poder, saltando de um vagão no Paraná, ele está sorrindo. Nas décadas seguintes, seria homem de confiança de Getúlio nas mais diversas funções: interventor em São Paulo, duas vezes chefe de polícia, deputado constituinte, diplomata, chefe de comissão, presidente de órgãos técnicos, organizador da expedição Roncador-Xingu, que pretendia fixar habitantes em áreas despovoadas e pesquisar riquezas minerais. Fundou instituições científicas e centros de pesquisa. Foi músico, compositor e um dos criadores do cordão do Bola Preta.
Teve também fases menos gloriosas. Membros da elite paulista o acusaram de manter sua influência política em São Paulo por meio da violência polícial e da manipulação de recursos do Instituto do Café. Como chefe da polícia do Distrito Federal, dotada de verbas secretas destinadas a ações repressivas, era responsável pela manutenção da ordem pública. Para apoiar Vargas, fundou um jornal com recursos que teriam origem no jogo do bicho. Durante a ditadura do Estado Novo, recebeu críticas duras por sua gestão à frente da Fundação Brasil Central.
A viagem à Europa, no final de 1954, para chefiar a delegação brasileira à reunião anual do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), deve ter sido sua última missão, possivelmente nomeado pelo presidente que se matara semanas antes. Na foto resgatada de um álbum de família, minha mãe conversa com João Alberto no salão do Giulio Cesare em que me contou a versão amenizada do desastre do qual sobreviveu. Hoje, com alguns anos a mais do que ele tinha na época da viagem, já não me parece tão velho, nem tão gordo. Ele está de smoking, minha mãe com um vestido de tafetá de saia rodada e um colar de contas. Flagrada no meio de uma palavra, a boca retesada, os olhos vivos, fixos em alguma coisa fora de quadro, minha mãe parece feliz, com a vida pela frente. Ao lado dela, há uma cadeira vazia. Pode ter sido dali que ouvi de João Alberto o episódio marcante da sua vida aventurosa.Na fotografia, ele está de perfil, olhos fechados, como se cochilasse.
Imagino que João Alberto devia estar atônito naquela viagem, tão desnorteado quanto Marinete ao saber do suicídio de Getúlio. Ele fora figura de proa de uma era que chegara ao fim. Sem Vargas, o que seria dele? Morreu em janeiro de 1955, aos 57 anos, quatro meses depois de ter me contado sua história. O Giulio Cesare, por sua vez, também perdeu o rumo. Com o leme danificado, acabou sendo recolhido ao estaleiro. Despojado da decoração, do mobiliário, dos equipamentos elétricos, dos motores e das caldeiras, foi retalhado e vendido como ferro velho.
Mais de trinta anos depois da viagem à Itália, o telefone tocou um dia no apartamento dos meus pais. Era Marinete. Disse a minha mãe que estava morando em Santos, tinha uma filha, e queria ver a menina de quem cuidara. Não demonstrou interesse por ninguém mais da família. Minha irmã conta que Marinete ficou muito decepcionada quando chegou à casa dela, em Santa Teresa, num sábado à tarde. O que tinha acontecido com a menininha de dois anos, linda e loira, que guardara na memória? Três décadas depois, era uma adulta que não lembrava da Marinete nem da nossa travessia do Atlântico no Giulio Cesare.
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