Rufina Amaya se escondeu atrás das árvores, enquanto seu grupo era conduzido para a execução. Ela ouviu os gritos dos próprios filhos sendo mortos FOTO: SUSAN MEISELAS_MAGNUM PHOTOS
Testemunha da chacina
Rufina Amaya, a única sobrevivente do massacre de El Mozote, de 1981, em El Salvador
Alma Guillermoprieto | Edição 7, Abril 2007
Rufina Amaya, a mulher tantas vezes identificada como a última, ou única, sobrevivente da chacina na aldeia de El Mozote, morreu no mês passado. Houve, a rigor, outros sobreviventes daqueles acontecimentos monstruosos, mas ela parece ter sido a única que deles emergiu com o juízo praticamente intacto, uma lembrança clara do que aconteceu e a disposição de descrever como centenas de pessoas, entre elas seu marido e quatro dos seus filhos, foram sistematicamente massacradas no dia 11 de dezembro de 1981, numa aldeia paupérrima de El Salvador.
A carnificina ocorreu nos primeiros dias do envolvimento americano em El Salvador. Naquele conflito, guerrilheiros de esquerda tentavam derrubar um governo absolutamente odiado pela maioria da população, devido à corrupção generalizada e às atrocidades cometidas contra os direitos humanos. O governo Reagan intercedeu em favor da ordem estabelecida, treinando e equipando o exército salvadorenho e reforçando as defesas contra o que, a seu ver, poderia se transformar numa maré vermelha comunista que ameaçaria chegar às próprias margens do Rio Grande.
Cheguei a El Mozote (eu era repórter do Washington Post), região dominada pela guerrilha, quando meu amigo Ray Bonner, do New York Times, e a fotógrafa Susan Meiselas deixavam a área. Vi primeiro uma capela em ruínas e mais três casas de adobe nas proximidades, onde os restos carbonizados de dúzias de vítimas – era impossível dizer quantas – jaziam, semi-ocultos em meio ao entulho. Ao longo dos caminhos que ligavam El Mozote a aldeias ainda menores, cadáveres ressecados esturricavam ao sol. Havia corpos nos milharais abandonados, nas casas de um só cômodo, nas quais uma máquina de costura a pedal era sinal de grande riqueza, nas plantações de frutas cítricas onde os pássaros ainda cantavam. Havia cadáveres por toda parte – crianças, homens, mulheres, animais – e o mau cheiro era onipresente.
Rufina Amaya, uma mulher pequenina, na casa dos 40 anos, vestida como uma campesina qualquer, de saia e blusa de mangas curtas, avental rendado e sandálias de plástico, tinha um rosto que parecia ter se transformado em pedra. Com pormenores precisos, ela me contou a mesma história que repetiria ao longo dos anos. E que todas as provas forenses haveriam de confirmar uma década depois.
Um oficial do exército, amigo do marido dela, dissera aos moradores que não se preocupassem com a ofensiva que vinha sendo preparada contra os guerrilheiros, porque todos sabiam que El Mozote, que tinha uma grande população evangélica, não era “subversiva”. Os soldados chegaram no dia seguinte. Depois de uma operação de busca marcada pela brutalidade, disseram aos residentes que eles podiam voltar para as suas casas. “Ficamos felizes”, lembrava a senhora Amaya. “A repressão tinha acabado.”
Mas os soldados voltaram. Dividiram os habitantes em grupos de homens, moças jovens, mulheres e crianças. Rufina Amaya conseguiu fugir, e se esconder atrás de algumas árvores, enquanto seu grupo era conduzido para o local da execução. De lá, testemunhou os assassinatos, que se estenderam até tarde da noite. Um oficial do exército, quando um subalterno veio lhe dizer que um soldado se recusava a matar crianças, respondeu: “Onde está o filho da puta que disse isso? Vou matá-lo”. No ato, trucidou uma criança com uma estocada de baioneta. Rufina Amaya ouviu os gritos dos seus próprios filhos sendo mortos. Os soldados conduziram muita gente para a igreja e as casas em torno de uma área gramada, que servia como praça do vilarejo. Fuzilaram ou esquartejaram os habitantes com machetes. Depois atearam fogo às construções. Acreditando ter matado todos os cidadãos de El Mozote e das aldeias vizinhas, os soldados finalmente se retiraram.
Agora que os ossos das vítimas foram desenterrados, limpos e contados, e que tiveram um funeral decente, é espantoso pensar que, anos a fio, Rufina Amaya foi tachada de mentirosa. O que ela descrevia, afinal, era a chacina brutal da sua família, dos seus amigos e dos fiéis com quem se encontrava nos cultos da capela. Quem mentiria sobre uma coisa dessas?
Os pequenos agricultores que morreram em El Mozote e nas aldeias vizinhas – estuprados, torturados, queimados, mortos a golpes de baioneta – foram bucha de canhão numa das últimas batalhas da Guerra Fria. Caso se acreditasse no depoimento de Rufina Amaya (e nas fotografias de Meiselas e nas nossas reportagens, feitas no calor da hora) o que ficaria em risco era o apoio que o governo Reagan continuava a dar ao governo salvadorenho. Por enfrentar muitas controvérsias internas, esse apoio dependia de investigações do Congresso americano que, a cada semestre, precisava atestar que os salvadorenhos faziam progressos em matéria de respeito aos direitos humanos.
Nas audiências parlamentares e em suas declarações à imprensa, altas autoridades do governo americano negaram terminantemente a ocorrência de qualquer atrocidade. Ray Bonner foi chamado de mentiroso num editorial do Wall Street Journal. Conto isso apenas para exemplificar como instituições poderosas e corajosas da imprensa podem ser intimidadas pela Casa Branca. O massacre de El Mozote praticamente desapareceu das páginas dos grandes meios de comunicação, e o governo Reagan continuou a assegurar que o exército de El Salvador vinha melhorando em matéria de respeito aos direitos humanos.
A ocorrência do massacre de El Mozote continuou a ser contestada até a assinatura de um tratado de paz, entre o governo e os guerrilheiros, em 1992. Enfrentando uma forte oposição do governo, membros da Equipe de Antropologia Forense da Argentina foram designados, por uma comissão de investigação da ONU, para escavar toda a área. O trabalho de exumação prosseguiu até 2004. A essa altura, os restos de mais de 300 homens, mulheres, crianças e bebês tinham sido recuperados nas principais áreas de execução. A lista das vítimas da aldeia e dos vilarejos vizinhos, no entanto, tem mais de 800 nomes. Até onde se sabe, foi a maior chacina ocorrida no Novo Mundo nos tempos modernos.
Os fatos que aconteceram em El Mozote não estão mais sujeitos a discussão. Ao final de um quarto de século, tampouco fazem parte da memória da maioria dos salvadorenhos, muitos dos quais sequer haviam nascido no dia em que meninas foram arrastadas aos prantos para as montanhas, onde as estupraram, e crianças gritavam pelas mães quando eram assassinadas. Nos Estados Unidos, gente que discutia apaixonadamente a situação de El Salvador teria dificuldade em lembrar qual foi a última ocasião em que falou – ou sequer se lembrou – do destino daquela pequena nação.
Tendo injetado dezenas de milhões de dólares nas forças armadas salvadorenhas, o governo americano só aplicou uma fração desse montante no esforço de reconstrução do país depois do fim da guerra. Rufina Amaya, uma camponesa baixinha, de pele morena, cuja única arma era sua intensa vontade de sobreviver, e manter viva a memória do que vira num dia horrendo, morreu de derrame, aos 64 anos. Será lembrada em El Salvador, porque hoje faz parte da história do país. E da história dos Estados Unidos também.
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