Toritama Blues
O pioneiro quebrou, mas seu ouro azul brilha no agreste
Cristina Tardáguila | Edição 7, Abril 2007
Em um mês, eles confeccionam mais de 2 milhões de peças de roupa em tecido jeans. São montanhas de calças, bermudas, saias, vestidos, jaquetas e macacões, prontos para atender os mais variados gostos e tamanhos. O corte, a costura e as demais etapas da produção os mantêm ocupados a semana inteira, desde o amanhecer. As máquinas, enfurecidas, não permitem luxos como sábados, domingos, feriados e enfermidades.
Entre eles, são raros os que guardam em casa uma carteira assinada, e mais raros ainda os que sabem da existência de direitos trabalhistas. Seus patrões não têm o costume de pagar impostos, o que ajuda bem a baratear a roupa que vendem. A lei em vigor entre empregados e empregadores é a do preço baixo associado à venda intensiva. Até para o outro lado do oceano. Parece negócio da China, mas não. Eles são todos pernambucanos de Toritama, cidade de apenas 34 quilômetros quadrados e meros 21 800 habitantes que pode perfeitamente ser considerada a China de Pernambuco.
Encravada no mar de pedras que lhe rendeu o nome indígena (tori = pedra; tama = região), Toritama fica a 180 quilômetros de distância de Recife. Seu sonho é ser conhecida em todo o Brasil como a capital nacional do jeans. Merece. De suas máquinas, saem 16% da confecção nacional com o tecido. Nos últimos 25 anos, Toritama cresceu como um tigre asiático. O ouro azul, como o jeans é carinhosamente apelidado na região, alimenta o tigre do agreste quase sozinho. Mais de 90% dos toritamenses economicamente ativos vivem dele, enfurnados em 2 200 fabriquetas. E tudo começou com uma saia, em 1980.
A saia era para a Maria José, mas quem a comprou, na cidade vizinha de Santa Cruz de Capibaribe, foi o marido, Eudes Florentino da Silva. Presentinho. A mulher gostou, as amigas gostaram, e Eudinho, que via seu negócio de calçados de couro naufragar, pediu a Maria José que tentasse copiar a peça. Na semana seguinte, Eudinho levou vinte saias jeans para a feira. Vendeu tudo. Comprou mais retalhos, a mulher costurou cinqüenta saias. Outra vez, todas vendidas. Fizeram e venderam mais cem, mais 150, mais 200. E Eudinho largou o couro de vez.
O novo ofício não era moleza. O denim era tão duro que ficavam, ele e Maria José, se arrebentando entre tesouras e calos. Um dia Eudinho lembrou dos apetrechos que usava para cortar sandálias. E com a talha de sapateiro teve uma das grandes alegrias de sua vida: “De uma hora para a outra, passei a cortar cem calças em duas horas. Enriquei rapidinho”.
Com menos de um ano no universo do índigo, Eudinho já duplicava o tamanho da empresa. Além da mulher, havia “contratado” a sogra e a vizinha. Quando elas já não davam conta, passou a caçar costureiras pela cidade. Segundo narra, peito inflado, ia lá e as “arrancava” dos sítios das redondezas, onde todas tinham uma máquina de costura para produzir o próprio enxoval. Botava todas elas dentro de casa, na sala, de maneira que dali a pouco, num espaço de 20 metros quadrados, 24 cotovelos se chocavam freneticamente para cortar, costurar, abrir casas, pregar botões e arrematar peças jeans.
Vieram, então, as primeiras máquinas adquiridas especificamente para o denim: dois aparelhos seminovos, que quebravam semana sim, semana sim. E tocava Eudinho o seu Chevette 74 até Caruaru, para buscar o único técnico da região apto a consertar o maquinário.
Os anos se passaram, foram se enchendo os bolsos do visionário do agreste. “Ganhava uma dinheirama do diacho. Era como se hoje eu tivesse um salário de 8 mil reais.” Foi nesse mar de luxo que teve os três filhos: Eurimendes, estudante de direito, Marília, estudante de enfermagem, e Lilioza, secundarista numa escola particular de Caruaru. Dos planos de nenhum deles consta a possibilidade de tomar as rédeas do negócio do pai. Chega de China pernambucana. Mas Eudinho não se incomoda. “Eles estudaram e vão longe”, aposta.
Quem vê o pioneiro do jeans hoje em dia, aos 55 anos, suado, cansado, enfurnado numa loja de 15 metros quadrados sem cadeiras, sem nem um ventilador para afastar o bafo da rua, custa a acreditar que ele já foi uma potência. “Sempre andava de carro do ano. Em 82, por exemplo, busquei Eurimendes na maternidade dirigindo um Chevette zero quilômetros sem placa! Parei a cidade! Depois, todo ano comprava um Monza novinho. Não dava nem tempo do outro ficar velho.”
O tempo das vacas fofas terminou abruptamente. Foi em 1994, ano do Plano Real. Eudinho diz que perdeu o equivalente a 300 mil reais nas transações para transformar seus cruzeiros reais em URV e suas URVs em reais. “Uns aproveitadores me passaram a perna. Eu só estudei até o primário, não sabe?”
Hoje Eudinho circula discretamente a bordo de um Uno 2000. Entre os habitantes de Toritama, são pouquíssimos os que conhecem sua história. “Acho que eu bem merecia uma estátua aqui!”, diz, apontando um espaço vazio. Sem notar, o homem que descobriu o ouro azul mostra um grande outdoor que anuncia, para a segunda semana de maio, o que poderia muito bem se chamar Toritama Fashion Week. Vem aí o Grande Festival do Jeans. Mais de 400 mil pessoas são esperadas na cidadezinha do agreste.