Blitz!
Na trivial interpelação de tipos "suspeitos", um espelho do estado de direito no Brasil
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 8, Maio 2007
Depois de atender, no começo da noite de 8 março, o nono e último aluno de sua compacta agenda de trabalho (um jovem empresário de Higienópolis, em São Paulo), o treinador particular Eduardo Conradt montou na sua Yamaha de 125 cilindradas e tomou o rumo da serra da Cantareira. Parou numa padaria, em Mairiporã, para comprar o lanche que faria com a mulher e o casal de filhos, de 7 e 5 anos. Sua volta para casa foi interrompida pouco antes das 11 da noite, na estrada de Santa Inês, a 50 metros de um posto da Polícia Militar.
O clarão súbito dos faróis de um carro no sentido oposto, que ocupava toda a estrada deserta, ofuscou e irritou Conradt. Ele diminuiu a velocidade, esperou que o veículo emparelhasse, e do alto dos seus 92 quilos de músculos, distribuídos em 1,93 metro de altura, mostrou o dedo médio em riste. No mesmo instante, com um calafrio, deu-se conta de que fizera uma besteira: o carro era da Rota, a temida tropa de choque da PM paulista. Ao ouvir os pneus da viatura chorarem, dando a volta num quase cavalo-de-pau, Conradt acelerou a moto e ainda tentou escapar. Desistiu quando ouviu um tiro. Com o camburão a um triz de roçar suas pernas, parou a moto no acostamento precário.
Quatro PMs saíram, com armas na mão. Um deles, aparentemente o mais jovem, assumiu a linha de frente, gritando: “Vagabundo!”. “Idiota!”. “Filho da puta!”. O nutricionista e professor de Educação Física, de 38 anos, sentiu na testa o cano frio de um revólver. “Mãos na cabeça!”, escutou. Ainda sentado na moto, com o capacete, entrelaçou os dedos atrás da nuca. Sentiu a mão de aço de um policial esmigalhar-lhe os dedos. Em seguida, vieram solavancos na cabeça. O policial tentava arrancar seu capacete sem soltar a trava. “Tira essa merda e sai da moto”, ordenou. A mochila com os pães, o queijo e o presunto foi jogada no chão de terra. O treinador desmontou da moto, e foi logo empurrado contra a parede de uma construção abandonada. “Abre as pernas, otário!”, ordenou o PM, dando chutes na parte interna dos tornozelos. “Nós vamos te matar e jogar o corpo ali naquele mato”, ouviu, enquanto apanhava e era revistado. “Vão levar uns vinte anos para te achar.”
Numa cantina de São Paulo, no mês passado, enquanto comia um ravióli com carne assada, Conradt contou:
“Foram uns vinte minutos de terror. Não me mataram porque eu me humilhei, fui um covarde total, pedi desculpas inúmeras vezes. O que não me sai da cabeça é o barulho do tiro. É muito alto. O policial que me bateu tinha 1,75 metro, mais ou menos. Ele bate no meu ombro. Naquela hora, esse baixinho atarracado parecia um gigante, tal a minha impotência. Se fosse jogar uma partida de futebol, eu quebrava ele no meio. Mas, ali, ele era muito poderoso, um Golias. Parecia que eu tinha 1,20 metro, e ele 2 metros. Só escapei porque eles checaram os documentos e viram que eu era uma pessoa de bem. Me deram uns conselhos para não fazer mais aquilo, e me mandaram embora”.
Aquilo é o dedo médio erguido em sinal de protesto pelos faróis que quase o cegaram. Um gesto banal que, com um mínimo de sensatez e de preparo psicológico, faria os PMs o relevarem, e seguirem seu curso. Teoricamente, Conradt poderia processar os policiais, acusando-os de abuso. Perguntado sobre qual deveria ter sido o procedimento dos policiais, o treinador hesita. Por fim, disse: “Talvez me levar até a delegacia, me dar um sermão por ofensa à autoridade, e me mandar para casa?”.
João Batista de Lima Bittencourt, gaúcho de Capão da Canoa, trabalhador da construção civil, teve menos sorte. Também ele voltava para casa de moto, numa noite de 1994, por uma estrada de cascalho, num bairro afastado, quando foi abordado por uma viatura de polícia. Não era suspeito de nada. Segundo a versão dos dois PMs que o interceptaram, o motoqueiro não obedeceu à ordem de parar. Ao se aproximarem, Bittencourt teria levado a mão à cintura e puxado uma faca. Levou então um tiro no rosto, que o deixou paraplégico, quase cego e com dificuldades na fala. “Legítima defesa”, arbitrou a Justiça, em primeira e segunda instâncias, e absolveu os dois policiais. Somente no ano passado, decorridos doze anos, o Tribunal de Justiça confirmou, na ação cível, a responsabilidade do Estado, e a indenização do operário passou de 25 para 75 mil reais. Bittencourt não fala sobre a noite de treva. E o relator do processo, o desembargador Odone Sanguiné, considera que a versão policial do uso da faca, mesmo que verdadeira, não poderia justificar o tiro. Muito menos numa região vital.
Amedrontamento, submissão, insegurança, antecipação do pior, sudorese de culpado sem culpa, alívio e gratidão por ter saído ileso, seguidos de frustração, humilhação e raiva por ter tido medo – costuma ser essa a seqüência de sentimentos do civil honesto em relação à abordagem das autoridades policiais. Com freqüência, a abordagem truculenta serve de embrião do qual brotarão o achaque e, às vezes, a tortura.
No ano passado, os 750 PMs da Rota paulista em atividade de rua abordaram pouco mais de 134 mil pessoas. Dá a média de 11 mil por mês, 370 por dia, ou quinze por hora. Os veículos revistados passaram dos 31 mil, quase 2 600 por mês, ou 86 por dia. Se a lei regula as blitze – já que obriga o motorista a portar os documentos pessoais e do carro –, não regula com clareza a abordagem pessoal. Flagrantes à parte, a legislação só restringe o direito constitucional de ir e vir se houver a tal “fundada suspeita”. O nó da questão está na subjetividade com que o critério é entendido pela autoridade, quando em ação. Pela legislação, ninguém é obrigado a portar identificação quando estiver na rua.
Uma pesquisa do Datafolha com 4 509 paulistanos constatou que, no final de 2003, 54% dos entrevistados tinham mais medo do que confiança na polícia. Entre os jovens de 16 a 25 anos, o medo atingia 68%. No mesmo ano, as professoras Silvia Ramos e Leonarda Musumeci, do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Candido Mendes, coordenaram uma pesquisa sobre abordagem policial no Rio de Janeiro. Ouviram 2 250 pessoas e descobriram que 71% delas aprovavam as abordagens. Mas quase a metade dos entrevistados considerou que a polícia fluminense tem pouco, ou nenhum, respeito pelo cidadão. Sessenta e oito por cento a classificaram como muito corrupta, 57% como muito violenta, e 43% como muito racista.
A pesquisa também verificou que é baixíssima a eficácia das blitze: não chegou a 2% a constatação de ilegalidades entre os abordados. As pesquisadoras concluíram que o que prevalece é o chamado efeito visibilidade. Elas se perguntaram se os recursos empregados nessas operações não poderiam ter destinação mais racional e mais eficaz. “Os jovens, principalmente os negros e pobres, são vítimas preferenciais das abordagens, muitas vezes violentas”, diz a professora Sílvia Ramos. “O abuso começa com a linguagem desrespeitosa. Com o tapa na cara, o ódio da farda é automático. Tem jovem que entrou para o tráfico depois de uma abordagem policial.”
A capa do manual que ensina os policiais cariocas a abordar um cidadão na rua é estampada com a imagem de uma caveira, empalada por uma faca e cruzada por duas garruchas. A caveira é o símbolo do Batalhão de Operações Policiais Especiais, o BOPE, da Polícia Militar do Rio de Janeiro. O tenente-coronel Renato Esteves Fialho esclarece que o esqueleto nada tem a ver com a violência, “como dizem as ONGs do tipo da Anistia Internacional”. Segundo ele, na heráldica a caveira significa que “as forças especiais de segurança, como o BOPE, são tão competentes que matam até a morte”.
Fialho é o comandante do Centro de Formação e Aperfeiçoamento de Praças da PM fluminense há pouco mais de um ano. Tem três décadas de polícia, comandou batalhões em favelas e na Baixada Fluminense, esteve no meio de tiroteios e participou de incontáveis abordagens. Às 11 da manhã de uma quarta-feira, o coronel estava de uniforme esportivo. Usava short e tênis pretos, meias e camiseta brancas, e cordão dourado. É bem grisalho para 50 anos. Tem entradas proeminentes e rugas bem marcadas na testa. “Para entrar, o cara tem que passar por uma série rigorosa de exigências e de provas, e, aqui dentro, aprende a cumprir a lei e a respeitar os direitos de cidadania”, afirmou. E por que, então, tantos casos de abordagem policial agressiva? “Somos seres humanos e podemos errar”, ele disse. “O ser humano sempre vai ter desvios de conduta. O grau de criminalidade e de violência do Rio de Janeiro talvez contribua para o stress do policial, e faça com que ele cometa algum tipo de excesso.”
A apostila da caveira tem 31 folhas, e todos os 1 200 alunos que, em 2007, passarão pelo Centro de Formação devem decorá-la. Na capa, lê-se: “Nós somos a elite, só o fato de existirmos assusta”. A frase vai de encontro ao pensamento do coronel: “Eu nunca pratiquei nem vi excessos em abordagens da Polícia Militar, mas é claro que a capacidade de respostas dos PMs depende das suas condições de trabalho, que no Rio têm sido pífias ao longo dos anos”. Ao passar por um bebedouro novo que mandou instalar em um dos pavilhões da escola, o coronel exemplificou, com um neologismo, o que quer dizer: “Nós temos que humanizar as condições. Não amamãezar, mas humanizar”. Fialho manda tirar uma cópia do manual sobre abordagem de pessoas. “Pode levar”, ofereceu. “Nós ensinamos tudo certinho.”
O texto começa dizendo que, ao final do aprendizado, o policial deverá ser capaz de “abordar pessoas suspeitas com a máxima segurança, empregando técnicas adequadas a cada situação”, e de “entender as diferenças entre ser enérgico e ser arbitrário ou mal-educado”. A seguir, em quatro páginas, vem uma exposição objetiva da legislação, começando pelos artigos constitucionais sobre os direitos e deveres do cidadão. Está grifado, e em negrito, que racismo constitui crime inafiançável e imprescritível. Também se lê o artigo primeiro da Lei 9.455/97: “Constitui crime de tortura: 1) Constranger alguém com emprego de violência ou grave ameaça, causando-lhe sofrimento físico ou mental com fins diversos; 2) Submeter alguém sob sua guarda, poder ou autoridade, com emprego de violência ou grave ameaça, a intenso sofrimento físico ou mental, como forma de aplicar castigo pessoal ou medida de caráter preventivo”.
Na página 3, ensina-se que “a busca pessoal é feita não somente nas vestes ou nos objetos que a pessoa traga consigo, mas também sobre o corpo que, por meio de investigações oculares ou manuais, quer por meios mecânicos ou não, tendo em vista os ladrões e, principalmente, ladras preferirem esconder pequenos objetos, produtos de crimes, em qualquer esconderijo natural”. Na página 15, aprende-se que, “Quando mulheres e crianças se tornam criminosos, são mais perigosos do que homens adultos”.
Está em negrito que a busca pessoal é “vexatória” e que só será realizada quando houver “fundada suspeita”. A explicação desse conceito essencial começa com algum rigor – “ocultação de arma proibida, de coisas achadas ou obtidas por meios criminosos, instrumentos de falsificação ou de contrafação” – mas termina com um genérico “qualquer elemento de convicção, entre outros”. Algumas frases são recorrentes: “Os excessos devem ser apurados e punidos”; “Não existem indivíduos suspeitos, mas atitudes suspeitas”; “Você não tem o direito de incomodar pessoas que não estão infringindo a lei”; “Mantenha o abordado sob vigilância constante, para evitar surpresas, sem, entretanto, fazer uso da violência”; “Não aborde para investigar; investigue para abordar”.
Wesley Denilio, o Black Delírio, é estudante universitário de cinema, músico e rapper na favela do Acari, na zona oeste do Rio. “Já perdi a conta de quantas vezes fui abordado”, disse, no puxadinho de quarto e cozinha onde mora. “Eles te abordam como se fossem bandidos. Usam uma linguagem completamente marginalizada. Uma vez, um deles me deu um chute na bunda e mandou eu voltar para casa dizendo que eu não tinha nada que ir para a aula.”
O rap e hip-hop têm sido eloqüentes nas denúncias contra as abordagens violentas. “Por que eles agem pela cidade como se fossem uma gangue/ impondo a nós, civis, a lei do sangue”, diz Def Yuri em “Foda-se a polícia”. Marcelo Yuka e O Rappa cantam “A viatura foi chegando devagar/ e de repente, de repente, resolveu me parar/ um dos caras saiu lá de dentro/ já dizendo: aí, compadre, você perdeu!/ Era só mais uma dura/ resquício da ditadura/ mostrando a mentalidade/ de quem se sente autoridade/ neste tribunal de rua”.
Uma das letras de Delírio diz o seguinte: “Todo poder está nas mãos do opressor/ até mesmo os soldados armados que propagam o terror/ o desgraçado sabe a qual classe pertence/ mas faz tudo errado/ capitão-do-mato/ que persegue escravo rebelde/ tortura, humilha/ mata pai de família”.
O quartel amarelo que abriga os quatro PMs que abordaram Eduardo Conradt fica na avenida Tiradentes, no centro de São Paulo. Sabe-se que o comandante está na casa porque a bandeira que indica a sua presença está hasteada. Normalmente, ele chega cedo, ali pelas 8 da manhã, e sai tarde, entre 9 e 10 da noite. Ele é o tenente-coronel Júlio César Dias Vieira, de 49 anos, 22 deles na PM de São Paulo, e catorze na Rota. Está no comando desde junho do ano passado. Ouve com atenção a história da abordagem que, em Mairiporã, vitimou um professor de Educação Física, cujo nome é omitido.
“Se fizeram isso, eles têm que pagar”, disse, ao fim do relato. “Não podemos nos dar ao luxo de ter policiais com desvios de conduta. A nossa ferramenta de trabalho é vida. Não é vender fruta. Eu digo isso todo dia. Eles têm que agir dentro dos limites legais. Toda vez que alguém denuncia que foi torturado eu instauro inquérito policial militar para apurar. Só não posso condenar ninguém antes que a Justiça o faça.”
Naquele dia, as 63 Blazer da Rota que estavam nas ruas, cada uma com quatro PMs, registraram a revista pessoal e identificação de 328 pessoas e 83 veículos. Tudo isso resultou em míseros dois flagrantes – a captura de um foragido e um porte ilegal de arma. “A Rota atua dentro dos parâmetros da legalidade, usando a energia necessária”, disse o tenente-coronel Dias. “A abordagem é uma situação crítica, que às vezes provoca constrangimentos, mas não existe violência nas abordagens da Polícia Militar de São Paulo”, acredita. Na mesa de antiquário, preta, em que o coronel despacha, de portas sempre abertas, há uma reprodução, em mármore, de O pensador, de Rodin. Na sala ao lado, onde troca de farda, há vidros com balas em cima de uma geladeira.
“Encosta as mãos naquela parede ali, que eu vou mostrar como é que faz”, pede. Mostra, e prossegue: “Você tem que ficar com o corpo inclinado e com as pernas abertas para, no caso de reação, ser facilmente desequilibrado”. As mãos do coronel são quase de seda. Uma delas segura delicadamente três dos dedos trançados na cabeça, os do lado direito. Enquanto ele faz a revista, gentilíssimo, o pé esquerdo encosta cuidadosamente no pé esquerdo do revistado.
“Está vendo? É assim que eles fazem”, conclui o tenente-coronel Dias, referindo-se aos seus subordinados. Fica um pouco desconcertado com o comentário de que a delicada abordagem, tal como ele acabou de fazer, não existe na ruas. E explicou: “A Rota mudou muito. Nós queremos desmistificar essa história de que a polícia é violenta, que arrebenta, que mata”.
“Há policiais que são violentos, que torturam e que matam”, diz o ouvidor das polícias de São Paulo, Antônio Funari Filho. “Existe violência nas abordagens, inclusive torturas durante o transporte para a delegacia, na mala da viatura, ou a prática de roleta russa, que não deixa marcas.”
Um dos casos que a ouvidoria apura é o do tecladista Éviton Rosa Brandão. Numa noite de outubro passado, ele e seu grupo, o Lua Nua, tocavam forró em um bar de Guarulhos. Três viaturas da PM chegaram e ordenaram que parassem a música. Brandão questionou os motivos da ordem, e foi espancado por cinco policiais, com tapas no rosto, chutes na barriga, pontapés e marteladas dos canos das armas em seu queixo e peito. Testemunhas afirmaram que os presentes foram ameaçados com gás pimenta. Segundo a Comissão de Direitos Humanos da Câmara Municipal de Guarulhos, durante toda a ação três dos policiais “manejavam suas armas de forma displicente, engatilhando e desengatilhando, apontando para diversas direções, com a típica fisionomia de drogados”.
O promotor Carlos Cardoso, assessor de direitos humanos do procurador-geral de Justiça de São Paulo, afirma: “Há setores da polícia que com freqüência se utilizam da tortura para apurar os casos. Se comparar com quinze anos passados, melhorou. Mas a tortura está longe de ter sido abolida, inclusive nas abordagens”. Ele defende que todas as ações externas das polícias deviam ser documentadas com mais rigor, para possibilitar um controle interno mais eficiente. “Os policiais gozam de uma margem de discricionariedade que, com muita freqüência, evolui para arbitrariedade”, afirma. “Devíamos ter uma regulamentação legal para definir quais os direitos que o cidadão tem e quais os limites do policial. Isso hoje é tratado de maneira difusa.”
O advogado Daniel Augusto da Silva, do Centro dos Direitos Humanos de Sapopemba, está cansado de ouvir relatos de abordagens em que “alguns policiais agem como se fossem bandidos”. Ele próprio já viveu uma situação tensa, em um bar onde estava com amigos. “Queriam me revistar, por nada, mas eu consegui demovê-los mostrando minha carteira da Ordem dos Advogados”, conta. O centro preparou, imprimiu e distribui uma cartilha, explicando o que pode e o que não pode ser feito nas abordagens policiais.
“A abordagem é uma ameaça de tortura em potencial por parte da pessoa que é paga inclusive para te proteger”, diz a cientista política Ângela Mendes de Almeida, professora da PUC de São Paulo e coordenadora do sítio Observatório das Violências Policiais. Vera Lúcia Vieira, também da PUC, informa que vários de seus alunos já passaram por abordagens humilhantes e provocativas, “onde a lei que esses policiais praticam é a da ilegalidade”. “Parece que eles têm um código próprio, uma cumplicidade entre eles que funciona dentro dos camburões e que prevalece sobre o aprendizado formal das academias de polícia”, diz.
No Centro de Formação de Soldados da Polícia Militar de São Paulo, em Pirituba, no mês passado, o tenente Fabio Nakaharada pediu a quatro de seus alunos para demonstrarem uma abordagem. Saiu tudo perfeito. “Daqui eles saem sabendo a coisa certa, a lei e os direitos humanos”, disse, mostrando o currículo que inclui essa disciplina. Pergunto a Castro, um dos rapazes que faz a demonstração, que tipo de reação o faria dar um tapa na cara do cidadão abordado. Nakaharada tomou a dianteira, e respondeu no lugar do outro: “O tapa não existe em lugar nenhum do procedimento. O que existe é o escalonamento do uso da força, do mínimo para máximo, começando com a verbalização e indo até o uso da arma em caso de absoluta necessidade. Agora, se um dia um PM dá um tapa, é por sua conta e risco. A orientação do centro é não aceitar provocações. Mas a polícia de São Paulo tem 95 mil homens na ativa e pode acontecer de algum mau profissional desvirtuar o trabalho dos bons”.
Se passassem duas tardes na favela do Acari, um aglomerado plano de 50 mil cariocas onde o tráfico é forte e bandidos não se preocupam em se esconder, o tenente Nakaharada e os coronéis Dias e Fialho talvez admitissem que os excessos não são tão raros e pontuais. “Já invadiram a minha casa e furtaram eletrodomésticos”, acusa o líder comunitário Vanderley da Cunha, alvo de inúmeras abordagens desrespeitosas. “Eles não têm nenhum respeito pelas pessoas”, reclama Carlos Alberto Mendes da Silva, presidente de Associação dos Moradores. Ambos contam que grupos de policiais se postam, com freqüência, na avenida que separa a favela das estações Coelho Neto e Acari, do metrô carioca.
O objetivo é achacar consumidores de drogas. Como esses não trazem tarja na testa, sobra para os moradores, indiscriminadamente. Silva contou que já viu amigos levarem tapas de policiais. “Preferi ficar calado”, diz. Um desses amigos é Carlos Henrique Marques, também da diretoria da Associação. Na tarde de 11 de setembro de 2002, ele dava aula na escolinha de futebol do centro cultural de Acari. PMs entraram na favela atirando. Marques não tinha nada a ver com a confusão, mas levou pontapés e três tapas na cara. Reclamou com o tenente que comandava a operação e deu parte na corregedoria. Quatro meses depois, o chamaram para depor, às 18 horas, no batalhão em que os agressores serviam. Foi recebido pelo que mais lhe bateu. “Eu desisti”, diz. “Achei melhor ficar vivo”.
Numa sexta-feira do mês passado, início da noite, quatro PMs fardados, mas sem os nomes à vista, paravam aleatoriamente pedestres na rampa de subida para o metrô Acari, ao lado da avenida Automóvel Clube. Estavam como que à toa, sem carro à vista e sem formalidade na postura. Em meia hora, interceptaram cinco rapazes. Falavam baixo, e mandavam os jovens levantar a camisa, numa revista discreta e completamente irregular, se confrontada com o manual em vigor. Parecia mais um achaque do que uma revista. Informado da cena pelo telefone, o tenente-coronel Rogério Seabra Martins, relações-públicas da corporação, agradeceu. Vinte minutos depois, deu o retorno: um tenente confirmou no local a estranha abordagem, e ordenou que os quatro policiais saíssem da estação. “Eles eram do policiamento em transportes e ônibus urbanos, e não deveriam estar ali”, disse Seabra. “Abrimos um procedimento para apurar.”
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