ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Os arcobotantes de Copacabana
Fantasias medievais à beira do Oceano Atlântico
João Moreira Salles e Nataly Cabanas | Edição 8, Maio 2007
Quem caminha à beira da praia, na avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, provavelmente diminuirá o passo na altura da rua Miguel Lemos. É difícil não reparar numa das raras construções recentes da orla de Copacabana. Foi erguida em trinta dias, custou 500 reais (insumo principal: 20 litros de impermeabilizador Sika-2, suíço, 11 reais o litro, ou de Vedacit Rapidíssimo, nacional, 9 reais o litro), é obra de um colombiano e de um cearense, está de pé há cerca de um ano e meio e provavelmente não durará outro tanto. Apesar do Sika-2 ou do Vedacit Rapidíssimo, areia não foi mesmo feita para ficar de pé por muito tempo. Ainda assim, dezoito meses para um castelo de areia devem equivaler a mil anos para as catedrais góticas que servem de inspiração a Alonso Gómez-Diaz, 50 anos, e Rogean Rodrigues, 25. Se existisse em escala natural, o que eles construíram nas areias de Copacabana não faria feio em Chartres ou às margens do Reno.
Não se deve confundir o castelo de Gómez-Diaz e Rogean com uma monstruosidade que fica pouco adiante, na direção do Forte de Copacabana. Na monstruosidade, foram esculpidas formas femininas em poses obscenas. O castelo verdadeiro tem oito torres fortificadas, que do chão da calçada ao topo da mais alta abóbada chegam a mais de 2 metros de altura. Vários elementos da arquitetura medieval estão aqui: arcobotantes, contrafortes, cúpulas, pontes que ligam uma torre a outra (à moda da Ponte dos Suspiros), florões, gabletes, botaréus, tímpanos e termos correlatos que pedem uma ida ao dicionário. Os detalhes são extraordinariamente elaborados. Os arcos acima de cada porta e de cada janela têm floreios e rendilhados, os cimos das torres não repetem formas. Há agulhas em ponta, em rosca, em estilo bizantino e oriental. Há escadarias e aquedutos, torres circulares que se projetam para fora de torres convencionais, sacadas com muretas vazadas, telhados de uma água, pátios em vários níveis e mais de 124 janelas e portas, todas elas abertas.
Rogean Rodrigues, o jovem cearense, explica que “castelo é a opulência, é o rei”. Gómez acrescenta: “Mas Rogean também representa o Ceará quando faz as casinhas pobres ao redor do castelo do rei”. Talvez, mas Rodrigues gosta mesmo é de fazer o castelo do rei. Ao falar de seu trabalho, Gómez usa frases como “busco a plasticidade” e “esses castelos expressam minhas inquietudes”. Rodrigues é mais simples: “Eu sou bom de acabamento”. Antes de se tornar discípulo de Gómez, ele era engraxate e morava na favela do Pavão-Pavãozinho. Via os castelos na areia e imaginava que talvez levasse jeito para a coisa. Gómez o incentivou. “Eu tinha o dom e não sabia”, diz Rodrigues. “No início, imitava. Depois fui ver nos livros, em biblioteca pública. Em Búzios me deram um do Gaudí. É uma baita influência.” Rogean Rodrigues o considera o maior arquiteto de todos os tempos.
“Eu não precisava de um pupilo”, afirma Gómez. Mas “a arte não pode ser solitária”, sentencia, e, assim, o mestre decidiu tomar um aprendiz, à moda das guildas medievais. “Rodrigues era um virtuoso e, como eu, também era imigrante. Aos poucos, graças à vinda dele, houve uma mudança no meu trabalho. Foi quando apareceu o tribal.” É difícil identificar o tribal no castelo da Atlântica – talvez a máscara pré-colombiana esculpida na fachada de uma das torres, ou a figura meio babilônica, ainda não inteiramente formada, que surge na encosta da duna. Não são tribos daqui. Rodrigues não discrimina: “Já fiz castelo com entrada egípcia, tinha esfinge e tudo”.
Em Copacabana não se vê esfinge. Mas vê-se um veleiro encalhado, uma carruagem da Gata Borralheira, dois cachorros meio fora de escala, a Branca de Neve, o Woody (o caubói de Toy Story), o pai de família dos Incríveis, alguém de outra galáxia, um gladiador atracado com um tigre, a Pequena Sereia, uma vaquinha e um carneiro de cornos retorcidos, a chinesinha Mulan e um homem meio rechonchudo de blazer, camiseta, topete e ar de crooner de Las Vegas sobre o qual Rodrigues não sabe dar maiores informações (“Esse gordinho é quem mesmo?”). São bonequinhos de plástico deixados por crianças que passam pelo calçadão.
Gómez e Rodrigues já construíram no litoral de São Paulo, no Nordeste, na Venezuela, na Colômbia. Passaram por Equador, Peru e Bolívia. Ganharam algum dinheiro. Em Tabatinga, cidade na selva amazônica a 1 110 quilômetros de Manaus, ergueram uma obra bem espetacular. Financiada pela prefeitura, tinha 5 metros de altura, sistema elétrico de iluminação, paisagismo e bomba d’água para a cascata. Ficou um ano em exposição e custou 7 mil reais de material. Receberam 10 mil de cachê.
Nem sempre as vacas são tão gordas. Ganharam bem na noite dos Rolling Stones – 600 reais –, quando mais de 1 milhão de pessoas passaram pela praia. O esquema de segurança funcionou. Ninguém rompeu a cordinha frouxa que sem muita convicção delimita o perímetro do castelo. No réveillon, em média, eles põem no bolso 1 500 pratas. Numa terça-feira ensolarada de fevereiro, às 3 da tarde, o que chamam de bilheteria (um pote de plástico leitoso com boca larga, desses que ficam no balcão da venda cheios de pé-de-moleque) tem 60 reais. Está ali desde as 10 da manhã. Um cartaz pede contribuições de 2 reais por foto, e a gentil colaboração de quem apenas pára e olha. Quem pára e olha geralmente não colabora. Já quem tira foto se sente constrangido, acaba pagando. Em cinco minutos (contados no relógio), pararam catorze pessoas. Nenhuma pôs a mão no bolso. No verão, eles ganham em média 1 500 reais cada um. Nos meses ruins, 300. Tudo é dividido meio a meio. Hoje Rodrigues tem duas casas na Zona Norte. Não fossem os castelos, acha que ainda seria engraxate. Deu sorte no dia em que cruzou com Gómez.
Gómez tem um agente que negocia os castelos com hotéis, restaurantes e lojas. “O que salva é isso”, diz. “Às vezes um empresário nos contrata para fazer uma festa, um logo, o nome de uma empresa.” Gostariam de obter uma licença da prefeitura carioca, que tolera a atividade mas não emite autorização formal. Sem papéis que comprovem a legalidade do negócio, fica difícil achar uma empresa que os contrate para intervenções nas praias do Rio. Sonham com o dia em que poderão esculpir, bem grande, algo como McDonald’s – Amo muito tudo isso ou piauí – A revista para quem tem um parafuso a mais.
Enquanto isso não acontece, eles vão fazendo castelos bonitos e contando com a boa vontade do povo. Da polícia, nada temem. Sabem que ocupam um espaço público, mas não lhes passa pela cabeça que um dia as forças da lei venham desmanchar a golpes de coturno seus rendilhados de areia fina. As chuvas de verão também não os atemorizam. Não há aguaceiro que desmanche castelo impermeabilizado. E assim, ao contrário dos pequenos negociantes da praia, que todo dia levam e trazem sua mercadoria nas costas, os escultores de areia vivem no conforto de saber que, faça sol ou faça chuva, seu ganha-pão permanecerá ali, sossegadamente precário numa das mais belas faixas de areia do mundo.
Desânimo, só tiveram uma vez. Em agosto de 2001, eles viram, ao longe, dois homens que se aproximavam, dois estrangeiros. Era Bill Clinton passeando no calçadão com seu amigo Anthony Hopkins. O ex-presidente parou em frente ao castelo e pôs a mão no bolso. Rodrigues e Gómez vislumbraram boas perspectivas. A nota era de 1 dólar e nem foto eles tiraram.
Documentarista, é fundador da piauí. Dirigiu No Intenso Agora, Santiago, Entreatos, Notícias de uma Guerra Particular e Nelson Freire. É autor de Arrabalde: Em Busca da Amazônia (Companhia das Letras)