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Todos contra Daniel Dantas
Depois de brigar com sócios, assessores e com o governo, o banqueiro se enroscou na armadilha que ele mesmo construiu
Consuelo Dieguez | Edição 9, Junho 2007
Numa tarde ensolarada do começo do outono, a “Serenata nº 13 em sol maior”, de Mozart, ecoava pela sala envidraçada que abriga a presidência do banco Opportunity. A ela, seguiram-se sonatas, sinfonias, concertos. O ocupante da sala, o economista Daniel Dantas, surpreendeu-se com a pergunta sobre o seu apreço por música clássica. “Como?”, reagiu, sem entender. “Ah, a música!”, disse, afinal. Com um sorriso maroto, caminhou em direção à janela, apontou um pequeno vão no teto, entre a janela e a persiana, e informou: “Descobrimos microfones aqui, estavam ouvindo as conversas e antecipando nossos movimentos”. Dantas mandou instalar um sistema de som no forro do teto do banco – o Opportunity ocupa o 28º andar de um dos maiores prédios do centro do Rio – para dificultar a gravação do que se diz ali.
Para evitar que adversários registrassem suas palavras, chegou a fazer reuniões nas nuvens. O jato particular decolava do aeroporto Santos Dumont e não ia a lugar nenhum. Dava voltas sobre o Rio, às vezes por mais de uma hora, para que executivos do Opportunity pudessem conversar livres de grampo. Alguns códigos não-verbais foram criados para a comunicação entre Dantas e seus diretores, reduzindo a necessidade de conversas. Ele recorre a videoconferências apenas para se comunicar com seus advogados em São Paulo, Paris, Nova York e Londres. E só em último caso, diz, usa o telefone para tratar de “assunto sério”.
Quando era ministro, no primeiro mandato do presidente Lula, Luiz Gushiken deu um depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre corrupção nos Correios. O ex-chefe de Comunicação definiu com precisão o “assunto sério” que, há oito anos, mobiliza as energias de Daniel Dantas. Gushiken disse na CPI que o Opportunity é o pivô da “maior disputa societária da história do capitalismo brasileiro”. O alvo da contenda é o controle de companhias de telecomunicação, saneamento e transportes que, juntas, estão avaliadas em mais de 20 bilhões de reais. A disputa, que se desdobra em dezenas de ações judiciais em três continentes, opõe um dos maiores bancos americanos, o Citi, uma das grandes companhias de comunicação da Europa, a Telecom Italia, e dois gigantescos fundos de pensão brasileiros, a Previ (do Banco do Brasil) e a Petros (da Petrobras). Os quatro pesos-pesados classificam Daniel Dantas como inimigo. Em decorrência dessa briga maior, o banqueiro tem um rol de adversários que se estendem do mundo político à imprensa, do Judiciário ao Ministério Público, do empresariado à Polícia Federal.
Aos 52 anos, de altura mediana e magreza de adolescente, o que lhe dá um ar de fragilidade, Dantas conserva uma aparência jovem, embora os fios de cabelo no topo da cabeça estejam rareando. Tem olhos grandes, de um azul opaco, que se desviam com freqüência do interlocutor, como se lhe incomodasse ser observado com atenção. Caminha quase o tempo todo enquanto fala. Seja qual for a pergunta, jamais altera o tom de voz. Ainda que prefira se refugiar em abstrações a se deter em casos concretos, Dantas é um fino imitador. É com um cômico sotaque baiano-americano, por exemplo, que repete uma das máximas de Roberto Mangabeira Unger: “É a décima-terceira badalada que desmoraliza o sino”. Unger, professor em Harvard, para quem Lula criou a famosa Secretaria Especial de Ações de Longo Prazo, prestou assistência a Dantas na área de direito internacional. Foi pago pela Brasil Telecom, empresa controlada pelo Opportunity, e recebeu 2 milhões de dólares, entre 2002 e 2005.
O bom humor demonstrado pelo banqueiro destoa de sua reputação no mundo corporativo, no qual é visto como negociador ardiloso e desleal. “Daniel é incapaz de cumprir um acordo: para ele, um negócio é bom quando só ele ganha”, diz um executivo de uma empresa em litígio com o banqueiro. É difícil encontrar um empresário que se disponha a elogiar o criador do Opportunity.
Sergio Andrade, dono da Telemar e da Andrade Gutierrez, é exceção. Num almoço recente, num restaurante no Leme, comentou com um amigo sobre o ex-sócio no metrô carioca: “Ele tem uma rapidez de raciocínio prodigiosa”. Andrade contou que, já há alguns anos, tomara a decisão de não brigar com Dantas. “Acho ele simpático”, disse, sorrindo. A conversa foi por outros rumos. Dez minutos depois, perguntado se ainda tinha alguma operação na internet, Sergio Andrade respondeu que não. “Bem que eu gostaria, mas o Daniel me tomou o IG”, completou, já sem sorrir. Em 2004, a Telemar anunciou a compra do portal – estava prestes a adquirir a participação de um fundo de investidores estrangeiros. Faltava apenas a avaliação final do negócio. Ao tomar conhecimento da proposta da Telemar, Dantas ligou para o representante do tal fundo, e ofereceu pagar à vista, naquele mesmo instante, sem avaliação, os 50 milhões de dólares que a concorrente estava oferecendo. Levou a empresa na hora.
Em 1997, a iniciativa do governo Fernando Henrique de privatizar empresas de telefonia, transporte e saneamento foi recebida como uma atualização, tardia e urgente, do capitalismo no Brasil. Daniel Dantas juntou-se a um grupo de investidores para disputar os leilões e participar de uma empresa adequada às novas regras, com capital privado nacional e estrangeiro, além de uma participação estatal. A promissora sociedade logo se transformou numa fonte de conflitos. Ao longo de uma década, Dantas se indispôs com todos os seus parceiros. Primeiro se afastaram os canadenses da TIW, companhia telefônica que se associara a ele na compra das operadoras de celular Telemig e Amazônia, e os argentinos da Cometrans, com os quais tinha sociedade no Metrô do Rio. Os dois o acusaram de tê-los ludibriado. Em seguida, Dantas se desentendeu com dirigentes dos fundos de pensão. Por fim, perdeu o apoio do parceiro estratégico, o Citibank. Como se fosse pouco, abriu uma frente de batalha com a Telecom Italia.
A origem das desavenças está na estrutura societária montada por Dantas, que lhe garantia o controle das companhias privatizadas, embora sua participação acionária fosse bem menor do que a dos demais sócios. O banco tinha a maioria no conselho das empresas e, portanto, era quem ditava as normas. Cabia a Daniel Dantas decidir a estratégia, escolher os dirigentes e até os fornecedores. O banqueiro sustenta que a arquitetura jurídica – desenhada por ele, mas inicialmente aceita por todos os parceiros – lhe conferia o controle das empresas. Seus adversários, sentindo-se lesados, deflagram uma feroz batalha legal e o tiraram do controle das operadoras de celular, do Metrô carioca e do seu empreendimento mais valioso: a Brasil Telecom, companhia de telefonia fixa que cobre os estados do Sul e Centro-Oeste.
Daniel Dantas se levantou da mesa de reuniões, onde se sentara por um breve momento, e reiniciou seu delírio deambulatório. Ele sempre trabalha em pé. Perto da janela há uma bancada de madeira, de cerca de 1,20m de altura. É em torno dela que, de pé, Dantas despacha com as secretárias, fala ao telefone, consulta o laptop e escreve. “Eu penso muito melhor assim”, explicou. O escritório é decorado com sobriedade. Logo na entrada está a mesa de reuniões, de mármore cinza, cercada por cadeiras pretas. As paredes são ocupadas por estantes baixas, repletas de livros. Um painel de vidro emoldura um aforismo do presidente americano Abraham Lincoln, impresso em letras graúdas, de computador. Lê-se, em inglês: “Se eu fosse prestar atenção e, pior ainda, responder a todos os ataques que me fazem, não teria tempo para mais nada”.
Há pelo menos cinco anos, Dantas não faz outra coisa senão responder (ou iniciar) ataques. “Gasto 80% do meu tempo com advogados”, ele conta. Por que se envolveu nessas brigas infernais? Ele respondeu com outra pergunta: “O que eu poderia fazer?”. Apontando para uma rua indeterminada no centro do Rio, explicou: “É como se eu estivesse num carro e fosse cercado por ladrões que quisessem me levar tudo. Fui obrigado a me defender. Não foi briga, foi uma resistência. Dá para negociar com ladrões? Dá pra dizer: ‘Olha aqui, seu ladrão, leva esse relógio, mas deixa esse anel?’. Não tenha dúvida: sou a grande vítima nessa história”. Depois de uma pausa, concluiu a metáfora: “Aí os policiais se aproximaram – mas para proteger os ladrões e tentar me prender”. Ele não acha que as disputas societárias tenham comprometido o desempenho das empresas. “Tanto que na Brasil Telecom nós deixamos um caixa de 2,4 bilhões de reais.” [Esclarecimento: quando era gerida por Dantas, a Brasil Telecom apoiou projetos da VideoFilmes, empresa que pertence a um dos sócios de piauí.]
Dantas retornou à mesa trazendo à mão o telefone sem fio do qual nunca se separa. É através dele que se comunica, várias vezes a cada hora, com as três secretárias que há anos trabalham com ele. Chama as três de Vitória, nome da que ele contratou há mais tempo. Raramente usa “por favor” ou “obrigado”. Ligou e ordenou: “Chame o Arthur”.
Arthur Carvalho, que trabalha no lado oposto do corredor, entrou na sala instantes depois. É um dos seus sócios no banco, além de cunhado (é irmão de Maria Alice, mulher de Dantas). Carvalho também é baiano, magro, pequeno. Aparenta menos do que os seus 50 anos. É tímido a ponto de algumas vezes se manter quase encolhido. Parece ter medo de se expor, e só se manifesta quando instado pelo banqueiro.
– Arthur, diga aí, por que os canadenses e os argentinos nos deixaram? – perguntou Dantas. A resposta veio em forma quase de sussurro:
– Porque as empresas deles estavam quebrando e eles queriam sacar o dinheiro das nossas companhias.
– E a Telecom Italia?
– Porque eles queriam pagar um preço alto demais por uma empresa e nós não concordamos. O mais estranho é que os fundos de pensão apoiaram todos eles, concluiu Carvalho, referindo-se aos sócios de Dantas.
– Está vendo?, indaga o banqueiro, como se a verdade definitiva tivesse sido revelada.
Carvalho olhou ansioso para o chefe.
– Ok, Arthur, pode ir, disse-lhe Dantas.
Com 215 funcionários, o Opportunity administra, atualmente, 13,1 bilhões de reais dos seus mais de mil clientes, entre pessoas físicas, jurídicas e institucionais. De acordo com a Associação Brasileira dos Bancos de Investimento, o banco de Dantas ocupa o 19º lugar no ranking dos fundos brasileiros. Na avaliação dos próprios executivos do Opportunity, não fosse pelas disputas judiciais, o banco poderia administrar um patrimônio bem maior. A chefe do departamento jurídico, Danielle Silbergleid, uma jovem alta, magra, de cabelos longos, não ameniza os prejuízos sofridos pela instituição. “Não só perdemos clientes, como deixamos de atrair novos investidores”, diz a advogada. Eis aí um motivo, paradoxalmente, para mais brigas: Silbergleid considera que o banco está no direito de processar os sócios pelas perdas contabilizadas.
A batalha pelo controle dos negócios já consumiu das partes envolvidas cerca de 100 milhões de dólares. Dantas tem contratos com cinco grandes escritórios de advocacia do Rio. Responde a dois processos movidos pelo Ministério Público, e tem seis pedidos de prisão preventiva expedidos contra ele. Em Nova York, o Citibank entrou com uma ação exigindo-lhe uma indenização de 300 milhões de dólares, alegando má gestão dos recursos da corporação no Brasil. Executivos e ex-dirigentes do Opportunity são alvo de mais de meia centena de processos. “Embora Daniel seja o causador de toda a confusão, quem acaba sendo processado são seus colaboradores”, acusa um ex-diretor do banco. “Ele não assina nada e joga tudo para cima dos outros.”
Com 24 anos, Daniel Dantas chegou ao Rio de Janeiro em 1979, para cursar o mestrado em economia na Fundação Getulio Vargas. Poderia ter ficado em Salvador, onde trabalhou no grupo Odebrecht, depois de se formar em engenharia civil na Universidade Federal da Bahia. Seu pai, Raimundo Dantas, empresário do setor têxtil, era amigo de infância do senador Antonio Carlos Magalhães e tinha boas relações na política baiana. Mas, desde a adolescência, Dantas queria ter seu negócio. Aos 17 anos, montou uma fábrica de sacolas de papel com dois amigos. O empreendimento deu tão certo que, dois anos depois, ele o vendeu com lucro. Com os mesmos sócios, entrou para o ramo de distribuição de bebidas. “Nós estocávamos a cerveja e, quando chegava o verão, esperávamos o produto escassear para vender o nosso estoque com um lucro espetacular”, conta.
Ele completou o mestrado e o doutorado em apenas dois anos, na própria FGV. A economista Clarisse Messer, sua colega de curso, foi certa vez ao apartamento que ele alugava, em Ipanema. “Não parecia uma casa. Era um local de trabalho, lotado de livros, arquivos e com uma grande mesa de estudos”, diz ela. A dedicação de Dantas à vida acadêmica era tamanha que, em 1980, ele adiou o casamento para participar de um congresso de economia promovido pela Fundação. Os convites já estavam impressos e tiveram de ser refeitos. “Eu ia casar de qualquer maneira, era só questão de adiar a cerimônia por uma semana”, justifica. Durante o tal congresso, Dantas foi encarregado de ciceronear Franco Modigliani, prêmio Nobel de Economia. Os dois se aproximaram e o italiano o indicaria para um pós-doutorado no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, o MIT.
Moyses Glat, professor de Dantas na FGV, lembra da proximidade de seu aluno com outro professor, Mario Henrique Simonsen, ministro da Fazenda do governo Geisel. “Nós até ficávamos um pouco enciumados, porque o Simonsen passava horas no seu gabinete conversando com o Daniel.” Os dois tinham personalidades opostas. Simonsen era um hedonista que engolia o mundo. Lançava-se com igual voracidade a um bom prato de comida, um novo livro de matemática, um vinho tinto de boa safra ou uma ópera de Wagner. Não perdia um festival em Bayreuth, o templo dos wagnerianos. Dantas era, e continua a ser, um asceta. Enquanto o mestre se atracava com costeletas de cordeiro, grapas e suflês de chocolate, o pupilo se contentava em acompanhá-lo com uma insossa salada de tomate com palmito. O professor falava de música, e ele consultava a HP. A relação entre os dois era cerebral, alimentada pela necessidade, compartilhada por ambos, de aprender constantemente.
Ao seguir para o pós-doutorado em Boston, Dantas já era sócio de uma corretora no Rio, a Triplic. “Eu saía de Boston na sexta-feira à noite, passava o fim de semana no Rio trabalhando, voltava no domingo à noite e ia direto do aeroporto para a aula”, diz. No retorno do pupilo ao Brasil, Simonsen o indicou ao empresário Antônio Carlos Almeida Braga, o Braguinha, dono da Seguradora Atlântica Boavista, recém-anexada ao Bradesco. O empresário gostou do jovem baiano, e pouco depois Dantas se juntava aos irmãos Kati e Luis Antônio, filhos de Braguinha, na formação do Banco Icatu, em 1986. Ali, trabalhando em parceria com os irmãos, ele adquiriria a reputação de mago das finanças. Tinha pouco mais de 30 anos.
No Icatu, Dantas foi responsável por algumas tacadas espetaculares. Uma delas foi investir em mercadorias como café, laranja e cacau pouco antes da edição do Plano Collor – que, em março de 1990, confiscou todos os ativos financeiros. Enquanto o grosso do empresariado e dos banqueiros via seus recursos serem congelados, o Icatu exportou as mercadorias que havia estocado e conseguiu atravessar a crise de liquidez.
Houve um custo pesado: começou a circular o boato de que o Icatu não sofrera com o confisco porque Dantas havia recebido informações prévias sobre o Plano Collor. Dizia-se, também, que, às vésperas do congelamento, ele havia sacado uma fortuna do banco. No mesmo dia em que os jornais aventavam a possibilidade do saque, ladrões tentaram invadir o apartamento de Dantas, acreditando que encontrariam ali o dinheiro retirado. Um porteiro foi baleado e morto pelos assaltantes. Dantas recebeu ameaças telefônicas e decidiu mandar a filha para o exterior. Começavam ali os arranhões na sua reputação. Os boatos, entretanto, eram tão-somente boatos: Gustavo Loyola, diretor do Banco Central, garantiu, na época, que não houve nenhuma grande movimentação de recursos por parte do Icatu nos dias que antecederam a decretação do Plano Collor.
O segundo grande acerto profissional de Dantas ocorreu em 1993. Por determinação sua, o Icatu começou a investir em ações de estatais do setor elétrico e de telecomunicações. Dantas já antecipava as privatizações. “Embora fôssemos um banco menor, nos estruturamos antes dos outros”, ele diz. Sua teoria é simples: negócios são uma corrida sem hora para a largada. Portanto, “se você tem um carro mais fraco, o segredo é largar na frente”. Sua explicação para a aposta nas privatizações é de que bastava constatar o que acontecia no mundo. Era inevitável que o Brasil embarcasse na onda. “Temos uma mentalidade colonizada, e sempre acabamos imitando o que se faz lá fora”, avalia. Com uma carteira privilegiada de ações de estatais prestes a serem privatizadas, notadamente as da Telebrás, o Icatu obteve ganhos extraordinários.
Embora os ganhos de Dantas para o Icatu tenham sido mais do que expressivos, suas relações com Kati e Luis Antônio se esgarçaram. O mal-estar veio da resistência de Dantas em reduzir sua participação na sociedade, para que fossem aumentados os ganhos dos demais executivos. Os irmãos deram um prazo para que Dantas revisse a política de remuneração. Ele protelou a questão indefinidamente. De comum acordo, houve a separação: o Icatu não precisava mais de Dantas, e Dantas não precisava mais do Icatu.
O economista fundou o Opportunity com os 70 milhões de dólares que lhe couberam na saída do Icatu. Ao abrir as portas, em 1994, o banco contava com seis pessoas, ele aí incluído. Em menos de um ano, já eram noventa. “O calor era insuportável, o ar-condicionado não dava vazão para tanta gente”, conta Verônica Dantas, irmã do banqueiro. Ela é responsável por toda a administração do banco, e é a pessoa em quem Dantas mais confia. Como o irmão, Verônica é magra e tem grandes olhos azuis. “Eu sou o Daniel de saias”, ela avisa, ao se apresentar, “com a diferença de que ele pensa, e eu executo”. Seus longos cabelos, tingidos de preto, estão sempre penteados. Sua roupa, impecavelmente arrumada, parece que acabou de sair de uma loja. “A maior decepção da minha vida adulta foi descobrir que não existia ninguém melhor do que o Daniel”, diz ela. “Ninguém era mais inteligente do que ele. Isso não é bom, porque dá a impressão de que não há mais descobertas a serem feitas. Você já está ao lado da pessoa mais preparada que conhecerá na vida.”
Verônica ocupa uma mesa na ampla sala de operações, de onde parece vigiar tudo o que acontece. “Eu sou cobra de duas cabeças: cuido da administração e ajudo a controlar a gestão de recursos”, explica. Trabalham com ela setenta pessoas, todas atentas ao nervosismo dos mercados. Ainda assim, a sala é silenciosa. Não se ouvem risadas, as conversas nunca sobem de tom. A austeridade no trabalho é uma marca de Dantas, que a aprendeu no Bradesco, cuja sede, na Cidade de Deus, em São Paulo, ele freqüentava com Braguinha. “Existia ali uma disciplina rigorosa, era tudo silencioso, quase monástico”, ele recorda, com admiração.
Como no Bradesco do fundador Amador Aguiar, o ritmo de trabalho do Opportunity é estafante. Os funcionários costumam entrar às 8h30 e não têm hora para sair. Nos momentos de crise – freqüentes nos últimos anos –, não há noite, fim de semana. A maioria não deixa o banco nem para almoçar. Um serviço interno atende a todos: o pedido é feito por computador, e o preço vem descontado do salário. A atmosfera é sempre de urgência. A diretora Maria Amalia Coutrim costuma dizer: “Aqui não é full-time, é full-life“. Nos corredores, nunca se vêem pessoas circulando. Dantas passa o dia trancado na sua sala. Só uns poucos executivos entram ali. Seu contato com os funcionários é quase inexistente. Ele chegou a sugerir a Verônica que pedisse aos funcionários que não lhe dirigissem a palavra, nem mesmo um bom-dia (a irmã disse não).
Dantas jamais muda o figurino: terno azul-marinho ou preto, camisa azul-clara, gravata de um azul mais forte, e sapatos pretos, de amarrar. “Me visto assim porque acho mais prático”, ele explica. “São cores discretas, e eu não preciso aparecer muito.” Vegetariano, seu prato predileto são legumes cozidos. Só em dias de grande extravagância come um peixe, desde que grelhado. Não bebe, não ouve música, não vai ao cinema nem ao teatro. Não faz passeios. Todos os dias, sai de seu apartamento, de frente para o mar, em Ipanema, às 7 da manhã, e só volta do trabalho depois das 10 da noite. Circula num Omega blindado, com chofer. É seguido por um Santana com dois guarda-costas. Os fins de semana são dedicados a leituras técnicas. Um de seus autores prediletos é o bilionário americano Warren Buffett. Sua mulher passa a maior parte do tempo nos Estados Unidos, acompanhando a filha, que estuda na Califórnia. Ele dorme cinco horas por noite. Tem poucos amigos. É solitário. Jamais vai à praia. Limita os exercícios à esteira de casa. Não lembra a última vez que foi ao cinema, e muito menos o nome do filme. A última obra de ficção que leu foi o romance Ensaio sobre a cegueira, do português José Saramago.
Ele acha graça quando ouve que seus hábitos são esquisitos. “Outro dia, num restaurante, insistiram que eu tomasse um vinho caríssimo”, disse. “Argumentei que seria um desperdício oferecerem um vinho daqueles a uma pessoa que não tinha paladar apurado para apreciá-lo. Aí, me sugeriram aprimorar o paladar.” Fez uma pausa e massageou a testa, parecendo refletir sobre o assunto. “Acho uma aporrinhação esse negócio de aprimorar paladar. Se consigo gostar de um vinho que encontro em qualquer lugar, porque vou arrumar meu paladar e só ter prazer quando tomar uma coisa rara, de altíssima qualidade? É um contra-senso. É muito mais fácil gostar de qualquer coisa. Depois, eu teria que comprar uma adega climatizada, e aí acabaria a luz, e tudo viraria um inferno.”
Ele tem um patrimônio estimado em cerca de 1 bilhão de dólares. No entanto, não tem casa de campo ou de praia, apartamento no exterior, helicóptero, iate e outros bens comuns a bilionários. Um de seus lemas é o seguinte: “Quando leio que um empresário comprou um iate, desconfio que a empresa dele vai quebrar”. As paredes da cobertura onde mora – comprada num leilão judicial – são decoradas com pôsteres do Museu de Arte Moderna de Nova York. Embora tenha quadros de pintores brasileiros, como Di Cavalcanti e Portinari, eles foram comprados a título de investimento. Por que tanto ímpeto em ganhar dinheiro, se tem tão pouco gosto em gastá-lo? “O que me dá satisfação não é o dinheiro em si”, responde. “É o negócio.”
Embora o Opportunity tenha multiplicado seu patrimônio, o banco se mantém como empresa familiar. Dantas é o controlador, ainda que seu nome não figure na relação de sócios. Ali aparecem Verônica Dantas, o ex-marido dela, Carlos Rodemburg, e Arthur Carvalho. O quarto sócio é Dório Ferman, engenheiro pernambucano de 60 anos, o único fora do círculo familiar e das origens baianas. “O Dório conseguiu sobreviver àquela estrutura”, avalia um ex-diretor do banco. “O Daniel só confia na família dele, e é difícil trabalhar com alguém que te vê sempre como um intruso”, afirma um ex-executivo do banco. Essa dificuldade de se relacionar com os de fora faz com que Dantas acabe afastando auxiliares que poderiam ajudá-lo em momentos de crise. “O resultado é que, com exceção do Dório, só sobrou quem é subserviente ao Daniel”, completa.
Dório Ferman ocupa uma mesa ao lado de Verônica. Ele é o responsável pela gestão dos fundos de investimento do Opportunity. Seu convívio com Dantas vem da época em que estudaram juntos na Fundação Getulio Vargas. O que os uniu foi o interesse pelo mercado de ações. Ferman tinha uma pequena distribuidora de valores, chamada Lógica. Dantas começou a freqüentá-la. Os dois passavam as tardes estudando balanços de empresas. Uma vez, enquanto se ocupavam com ativos e passivos alheios, perceberam que o movimento no centro da cidade era anormal para o horário, cinco da tarde. “Estava tudo calmo, não havia trânsito. Ficamos preocupados. Achamos que podia ter acontecido alguma coisa enquanto estávamos ali, entretidos nos números”, lembra Ferman. Foi quando se deram conta de que era 31 de dezembro. Indagado se, quando jovens, afora ler balanço, saíam para se divertir, Ferman solta uma risada: “E tem coisa mais divertida do que ler balanço?”.
Ser considerado o pupilo dileto de Mario Henrique Simonsen fez com que instituições respeitáveis e poderosas se abrissem para Dantas. Quando, em 1997, o Citibank escolheu o Opportunity – com apenas três anos de existência – para ser o gestor de um dos maiores fundos de investimento no Brasil, ainda se vislumbrava, por trás da decisão, a sombra do ex-ministro, que fora membro do conselho do Citigroup. Dantas ficara relativamente conhecido no mercado externo em 1989, quando, no Icatu, criou o Fundo Brasil, para vender ações de empresas brasileiras na Bolsa de Nova York. Ganhou mais experiência em privatizações ao se associar, em 1995, a um grupo de fundos de pensão de estatais para participar dos leilões da Escelsa, Espírito Santo Centrais Elétricas, da Cemig, Companhia Energética de Minas Gerais, e da Vale do Rio Doce. Esses negócios o ajudaram a atrair parceiros para a privatização das teles. Mas, ser escolhido pelo maior banco americano para gerir seus investimentos no Brasil deu-lhe uma credibilidade extraordinária.
A Telecom Italia, por exemplo, que estava de olho na Telesp, a empresa de telefonia fixa de São Paulo, já havia fechado parceria com um consórcio formado pelas Organizações Globo, pelo Bradesco, e pelo grupo Vicunha. No entanto, em 1997, com a crise asiática respingando no Brasil, os italianos ficaram temerosos de que a Globo recuasse para não comprometer sua operação principal, a televisão. A representante da empresa no Brasil era Carla Cico, uma executiva de pouco mais de 40 anos e físico de corredora. Ela procurou o Opportunity: a Telecom Italia queria participar da compra de outra empresa de telefonia, caso o consórcio com a Globo não vingasse.
Para o banco de Dantas, contar com a Telecom Italia seria um reforço no consórcio que vinha montando para a compra da Tele Norte-Leste, atual Telemar. Depois da conversa com o banqueiro, Carla Cico pediu sigilo, explicando que teria de informar o comando da companhia sobre a proposta. Nesse mesmo dia, uma sexta-feira, ela embarcou para a Itália. Estava satisfeita, e chegou a comemorar seu aniversário, com bolo e tudo, durante o vôo. Na segunda-feira, bem cedo, acordou com um telefonema do presidente da Telecom Italia. Ele queria saber o que ela estava tramando com o Opportunity. A conversa com Dantas vazara para os jornais e, naquele momento, os presidentes da Globo, do Vicunha e do Bradesco viajavam para a Itália. A Telecom decidiu continuar no primeiro consórcio, mas aderiu também ao do Opportunity. Anos depois, Carla diria a amigos que devia ter percebido, naquele incidente, que Dantas não era confiável: tinha certeza de que fora ele quem vazara a informação.
O Opportunity se preparou para a privatização formando três fundos: um nacional, com dinheiro dos fundos de pensão; um estrangeiro, nas Ilhas Cayman, com dinheiro do Citibank; e um terceiro, do próprio Opportunity, também no Caribe, para investidores estrangeiros. Meses antes, Dantas convidara Pérsio Arida para se juntar ao Opportunity como um de seus principais sócios. Ex-presidente do Banco Central, Arida tinha boas relações com dois homens-chave na privatização: o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, e André Lara Resende, presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o BNDES. O Opportunity contratou também a economista Elena Landau, ex-diretora do BNDES. Na época, ela e Arida eram namorados.
Dantas estava com os consórcios montados quando, certa tarde, Carlos Jereissati – dono do grupo Lafonte e irmão de Tasso Jereissati, um cacique do PSDB, o partido do governo – entrou numa sala do banco onde os consorciados se reuniam. O empresário queria participar do consórcio da Telemar. Houve resistência. Jereissati disse que tinha ordens do PSDB para participar do negócio. “Ordens de quem?”, perguntou-lhe Elena Landau. “De Tasso”, respondeu ele. A economista, que já havia trabalhado com o ex-governador do Ceará, ligou para ele na mesma hora. Tasso negou a informação, e Jereissati saiu batendo as portas. Em pouco tempo, de olho na Telemar, formaria outro consórcio com a GP Participações e a Andrade Gutierrez.
A ruptura levou à criação, dentro do governo, de duas alas, cada qual apoiando um dos grupos. A manipulação da privatização e a proximidade de governantes e empresários viriam à tona em grampos telefônicos divulgados pela imprensa. As gravações demonstravam que Mendonça de Barros e Lara Resende estimularam a formação do consórcio Opportunity – segundo eles, para garantir a concorrência entre consórcios e aumentar o valor das empresas em leilão. O grupo de Carlos Jereissati contava com o auxílio do diretor de investimentos do Banco do Brasil, Ricardo Sérgio de Oliveira, que tinha ascendência sobre os fundos de pensão.
No dia do leilão, tudo parecia definido. O zunzum do mercado era de que a espanhola Telefónica adquiriria a Tele Centro-Sul (mais tarde rebatizada de Brasil Telecom). A Globo, com seus parceiros, compraria a Telesp. O Opportunity e seus sócios – Citibank, Telecom Italia e fundos de pensão – levariam a Telemar. O que ninguém esperava é que os italianos depositariam um envelope com uma proposta de compra da Tele Centro-Sul. Dentro do Opportunity, apenas Dantas tinha conhecimento dessa oferta. Houve outra surpresa: os espanhóis ofereceram 5,7 bilhões de dólares pela Telesp, derrotando o consórcio da Globo. Automaticamente, a oferta da Telefónica para o leilão seguinte, da Tele Centro-Sul, foi desconsiderada – pelas regras, nenhum consórcio poderia comprar mais de uma empresa. Sobrou a proposta do Opportunity, que levou a Tele Centro-Sul por um valor baixo, apenas 6% acima do preço mínimo. Por falta de concorrente, a Telemar caiu nas mãos do consórcio de Jereissati, que comprou a empresa pelo preço mínimo.
Dantas continua a negar que sabia da oferta dos italianos pela Tele Centro-Sul. Mas sua negativa tem a mesma credibilidade da décima-terceira badalada do sino. Ele admite apenas o óbvio: que fez um excelente negócio. “Pagamos 2 bilhões de dólares por uma boa companhia, menos da metade dos 5 bilhões que pagaríamos pela Telemar.” Até hoje, a história desse leilão está envolta em névoas. Caso os espanhóis da Telefónica não tivessem levado a Telesp, é certo que Dantas não compraria a Tele Centro-Sul com uma proposta tão acanhada. Os italianos faziam parte do seu consórcio, e também do da Globo, derrotado pela Telefónica.
A desestatização das teles contrariou as expectativas de que os negócios entre o Estado e a iniciativa privada inaugurariam uma era de transparência republicana. Foram os fundos de pensão das estatais que entraram com grande parte dos recursos para a compra das empresas, enquanto os investidores privados eram financiados pelo BNDES. Foi também o Estado, através do Banco do Brasil, que forneceu as garantias – ou seja, o avalista do negócio foi o próprio vendedor. Alguns integrantes do governo de Fernando Henrique se comportaram como manipuladores. Outros agiram como fantoches de grandes empresas. Empresários, por sua vez, atuaram como gângsteres, trocando golpes baixos e grampeando-se uns aos outros.
No começo de 1999, a diretoria da Previ foi renovada. Entre os novos diretores, havia representantes dos sindicatos dos bancários, ligados ao PT. Um deles era Sérgio Rosa. Iniciou-se uma auditoria dos contratos com o Opportunity. Foi constatado que os fundos, depois de investir 1 bilhão de dólares, não tinham direito ao prêmio de controle, caso as empresas fossem vendidas. Tampouco teriam preferência de compra, se um dos sócios saísse do negócio. Por fim, o Citibank e o Opportunity haviam firmado um acordo paralelo, garantindo vantagens que não se estendiam aos demais sócios.
Os dirigentes dos fundos tentaram uma renegociação dos contratos. “Discutíamos as mudanças com os representantes do Opportunity, mas quando íamos ler o novo contrato, descobríamos que ele tinha sido alterado”, relata um representante dos fundos. Para Dantas, não havia mesmo nada a ser discutido. “Se os que fizeram os acordos não leram as cláusulas antes de assinar, a culpa não é nossa”, afirma. “O que não podíamos aceitar é que, depois de tudo acertado, os novos diretores dos fundos quisessem rasgar os contratos.” A permanência de Dantas na gestão das empresas era garantida por uma cláusula que estabelecia que ele só poderia ser deposto se mais de 90% dos cotistas votassem contra ele. No entanto, um dos fundos de pensão, cotista com mais de 10% dos votos, era patrocinado por uma empresa controlada pelo Opportunity.
O desconforto era generalizado. Os sócios operadores (como os canadenses da TIW, com 49% das ações da Telemig e da Amazônia Celular) se ressentiam de não poder influir no destino das companhias. Antes do leilão, a empresa e o Opportunity assinaram uma carta de intenções, na qual ficara acertada a participação da operadora na gestão das companhias. O banco adiou o quanto pôde a assinatura do contrato definitivo, até que a carta expirou. A TIW, que havia investido 380 milhões de dólares na empresa, não tinha poderes para indicar sequer um funcionário. Ao cabo de cinco anos, os canadenses venderam sua participação para o Opportunity por 70 milhões de dólares.
Na Brasil Telecom, o embate era com a Telecom Italia. Os italianos queriam antecipar as metas de investimento estabelecidas pela Anatel, a Agência Nacional de Telecomunicações, para poder operar com telefonia celular e internet. O Opportunity atrasou os investimentos, impedindo o desenvolvimento das novas operações. Era um modo de forçar a Telecom Italia a vender sua participação. Os italianos resolveram enfrentar.
Dantas foi acusado de haver feito um leasing de três aviões sem autorização aos sócios. O consórcio, de nome Voa, custou 35 milhões de dólares às três empresas de telefonia. A administração dos aviões era feita pelo Opportunity que jamais prestou contas de seu uso. “Esse é o ponto mais vulnerável de Dantas em toda a história”, diz um ex-colaborador. “Os aviões não eram utilizados pelos executivos das empresas e sim por ele, sua família e por políticos que o apoiavam.” Os gastos com os aviões chegaram a 96 milhões de reais. “Daniel Dantas, como único administrador desse consórcio, terá que prestar contas desses gastos e indenizar as empresas que foram forçadas a arcar com essas despesas”, diz um advogado que acompanha o processo. Dantas contesta as acusações.
Segundo o banqueiro, as dificuldades começaram em fevereiro de 2000, quando a Brasil Telecom, por questões regulatórias, foi obrigada a comprar a CRT, companhia de telefonia fixa que pertencia à Telefónica. Segundo ele, os sócios da Brasil Telecom propuseram pagar 730 milhões de dólares pelo negócio. A Telecom Italia ofereceu 850 milhões. “Nós não aceitamos, porque a empresa não valia isso. Era claro que, por trás do acordo, alguém estava sendo beneficiado”, diz Dantas. O Opportunity, pressionado pela Anatel, acabou concordando em pagar 800 milhões de dólares. “Foi depois disso que começamos a ser atacados por todos os sócios”, alega ele.
Com receio de que a pancadaria e as suspeitas de corrupção afugentassem investidores estrangeiros, Fernando Henrique enviou um ministro para conversar com Dantas. O banqueiro disse ao emissário que havia montado uma estrutura societária juridicamente inatacável. O ministro o alertou: “Daniel, o seu negócio é fazer parcerias e não controlar empresas. Desse jeito, você vai inviabilizar o seu negócio, pois nunca mais conseguirá atrair nenhum parceiro”.
Dantas se meteu ainda numa outra peleja, dessa vez com um sócio de menor expressão dentro do próprio banco: Luís Roberto Demarco. Contratado em 1997, uma de suas funções seria supervisionar o investimento do Opportunity no Esporte Clube Bahia, em Salvador. O negócio não deu certo, Demarco se desentendeu com Dantas e acabou saindo do banco. Cobrou a fatura: uma participação de 3,5% no fundo CVC-Opportunity, nas Ilhas Cayman, que acertara com Dantas ao entrar para o banco. O banqueiro se recusou a pagar. No ano passado, o tribunal de Cayman deu ganho de causa a Demarco. Além de sofrer a derrota, Dantas acabou expondo uma irregularidade maior: o CVC-Opportunity não poderia ter recebido dinheiro de brasileiros, já que se tratava de um fundo exclusivo para investimentos estrangeiros. Agora, Dantas responde a processo na Comissão de Valores Mobiliários.
A fortaleza do dono do Opportunity começou a esboroar de vez com a chegada de Lula ao Planalto, em janeiro de 2003. Luiz Gushiken, ex-presidente do sindicato dos bancários de São Paulo, virou um dos homens fortes do governo. Ele havia tido negócios em sociedade com Demarco e era companheiro de longa data de Sérgio Rosa, também sindicalista em São Paulo. Gushiken indicou Rosa para a presidência da Previ. Além de mal visto por Gushiken e Rosa, Dantas até então só cultivara políticos do PFL e do PSDB. Resolveu procurar, no próprio governo, uma força maior na qual se apoiar. Aproximou-se de José Dirceu, chefe da Casa Civil, que disputava espaço com Gushiken no governo. Pouco depois da posse, o banqueiro reuniu-se com Dirceu em seu gabinete no Planalto.
Dantas conta que o ministro se interessou em saber detalhes da briga e elogiou o desempenho das empresas sob o controle do Opportunity. Dirceu, no entanto, criticou o fato de os fundos não participarem da administração das companhias. Dantas respondeu: “Ministro, as empresas vão bem porque os fundos estão fora da administração. Caso contrário, elas já estariam no buraco”. Dirceu sugeriu que ele procurasse o então presidente do Banco do Brasil, Cássio Casseb, que dava a última palavra na Previ. Dantas seguiu a orientação a contragosto: Casseb fora conselheiro na Brasil Telecom e tivera relações conflituosas com os representantes do Opportunity.
No começo de maio, Dantas se reuniu com Casseb na sede do Banco do Brasil, em Brasília. No dia 14 daquele mês, enviou um e-mail à representante do Citibank no fundo do Opportunity, Mary Lynn Putney, revelando o teor da conversa: “Prezada Mary Lynn: minha conversa com o Cássio se deu de maneira muito estranha. Ele gastou três minutos com delicadezas antes de entrar no assunto. Ele disse que queria desfazer o acordo de acionistas que temos com os fundos de pensão”. Algumas semanas mais tarde, Casseb convocou Arthur Carvalho para uma reunião. Carvalho resume o que ouviu do presidente do Banco do Brasil: caso o Opportunity não cedesse o controle para os fundos de pensão, o governo “ia passar por cima” de Dantas.
O primeiro golpe letal foi desferido pela Previ. Com um patrimônio de 106 bilhões de reais, o fundo proibiu as mais de cem empresas nas quais tem participação de fazerem negócios com o Opportunity. Entre elas estão algumas das maiores companhias brasileiras, como a Vale do Rio Doce e a Petrobras. A decisão da Previ foi seguida pelos outros fundos das estatais.
Em outubro de 2003, os fundos conseguiram destituir o Opportunity da condição de gestor de seus investimentos, substituindo-o por uma empresa nova no mercado, a Angra Partners. Foi um período difícil para o banqueiro: seu pai morreria dali a poucas semanas, por problemas cardíacos. No enterro, Dantas passou mal e foi internado às pressas num hospital de Salvador. Diagnosticou-se que 40% das artérias de seu coração estavam entupidas. Ao ter alta, tornou-se vegetariano.
Um ano depois, Dantas teve de fugir do país para não ser preso pela Polícia Federal, numa ação chamada de Operação Chacal. Armados e encapuzados, os agentes entraram no banco, no apartamento dele, no escritório da Kroll – multinacional especializada em investigação empresarial –, e na casa da ex-presidente da Brasil Telecom, Carla Cico, em Brasília. Levaram documentos e o disco rígido de um computador do Opportunity com informações sobre as operações dos clientes do banco. Dantas e Carla Cico foram acusados de contratar a Kroll para espionar autoridades brasileiras e a Telecom Italia.
A PF agira a partir de um CD, entregue pela Telecom Italia, com informações sobre empresários e pessoas do governo que estariam sendo espionadas pela Kroll. O processo está na Procuradoria de São Paulo, e corre em sigilo de Justiça. Dantas admite que a Brasil Telecom contratou a empresa para investigar a companhia italiana, mas alega que não mandou a Kroll espionar governantes. Segundo ele, tudo não passou de um ardil da Telecom Italia, que adulterou os arquivos da Kroll para incriminar o Opportunity.
No começo do ano passado, a procuradoria italiana começou a investigar uma vasta rede de espionagem montada por altos funcionários da Telecom Italia. A empresa grampeou telefones e e-mails de políticos, jornalistas e empresários da Itália. Trinta pessoas foram presas. No curso das investigações, os procuradores italianos descobriram que os mesmos executivos violaram também os arquivos da Kroll – nos Estados Unidos e no Brasil – que continham informações sobre a Brasil Telecom. Os envolvidos na espionagem confessaram que a Telecom Italia pagou gente no Brasil para subornar políticos, juízes, gente da Polícia Federal e do Executivo, com o intuito de arregimentá-los para uma ação contra o Opportunity. “Hoje, está claro que a Telecom Italia resolveu corromper o Brasil inteiro; não sou eu que estou dizendo, é a imprensa italiana”, afirma Dantas. Ele acredita que, quando a Procuradoria italiana divulgar o nome dos brasileiros subornados, a República tremerá.
A Polícia Federal afirma que, bem antes de a Telecom Italia aparecer com o CD seus agentes já investigavam o dono do Opportunity. A PF busca provar que a Kroll fez escutas telefônicas e teve acesso a e-mails de jornalistas e empresários. Entre os documentos recolhidos há mensagens trocadas entre Demarco e Gushiken (mas num período anterior à posse dele no ministério); teriam sido obtidos pela Kroll com a ex-mulher de Demarco.
A Operação Chacal paralisou o Opportunity. O caso ricocheteou no governo, que foi acusado de usar o aparelho do Estado para interferir numa disputa privada. Um deputado federal, do PT de Minas Gerais, Paulo Delgado (que não seria reeleito) subiu à tribuna e declarou na época: “A Polícia Federal atormenta a vida do pessoal do Opportunity com um viés penal, visivelmente favorecendo um dos lados”.
Dantas faz uma pequena pausa. Em tom de professor, explica a ação mais violenta do governo para tirá-lo do negócio: a pressão sobre o Citibank. “Por estar associado a mim, o Citi foi simplesmente impedido de operar com papéis de qualquer companhia na qual a Previ tivesse participação”, disse.
O banqueiro voltou a procurar figuras do governo que pudessem ajudá-lo. O responsável pelos contatos foi Carlos Rodemburg, seu ex-cunhado e amigo de infância. Falante e sorridente, Carlinhos, como é conhecido, é a face simpática do Opportunity. Ele contatou o publicitário Marcos Valério para intermediar uma aproximação com o governo. Outra tentativa de conseguir apoio à causa foi a contratação do advogado Antônio Carlos Almeida Castro, o Kakay, amigo de José Dirceu. Kakay recebeu 8 milhões de reais da Brasil Telecom para prestar-lhe consultoria.
Dantas contratou ainda um consultor especial, Roberto Amaral, que nos anos 80 e 90 fora diretor da Andrade Gutierrez em São Paulo e, nessa condição, fizera inúmeros negócios com Paulo Maluf e Orestes Quércia. “Eu precisava de alguém que me explicasse como funciona o Brasil do poder, e o Roberto era o homem ideal”, ele explica. Buscando melhorar a imagem do banqueiro, Roberto Amaral marcou uma reunião, no seu apartamento, de Dantas com o jornalista Mino Carta. “Foi uma conversa amena, na qual o Mino me pediu que botasse anúncios na sua revista”, recorda Dantas. O Opportunity publicou um anúncio na Carta Capital. Apesar disso, pelas contas do banqueiro, a revista o colocou 37 vezes na capa, sempre de maneira negativa. “A revista me trata como a pior pessoa do mundo, pior até que o Bush, que teve menos capas do que eu”, diz.
Todo o seu esforço de aproximação com o governo fracassou. “José Dirceu jamais me ajudou”, diz Dantas, “e Gushiken me perseguiu.” Descrevendo a ação do governo em relação ao Citibank, o banqueiro diz existirem dois documentos que comprovariam as pressões sobre o banco americano. O primeiro seria um comunicado no qual o BNDES faz saber ao Citi que, caso continuasse a manter negócios com o Opportunity, seria excluído de todas as operações com o banco estatal. O outro documento, bem mais grave, seria um relatório interno do Citi, no qual teria sido transcrita a súmula de uma reunião de Lula, em junho de 2004, com executivos da instituição. Nela, o presidente teria pressionado o banco americano a romper com o Opportunity. (Dantas afirma que não pode mostrar os documentos porque estão sob segredo de Justiça, em Nova York.)
Em 9 de março de 2005, o Citibank comunicou ao mercado o rompimento com Dantas, sem sequer avisá-lo previamente. O banqueiro, que costuma reagir com frieza aos baques, dessa vez balançou. “Ele ficava olhando para o teto, custando a acreditar no que havia acontecido”, conta um ex-executivo do banco. Em setembro, em razão das ligações com Marcos Valério, ele foi convocado a falar na CPI do mensalão. Num depoimento de doze horas, contou que, com Lula eleito, Delúbio Soares, o responsável pelas finanças do PT, o procurou pedindo ajuda para pagar as dívidas de campanha. “Eu perguntei de quanto se tratava, e ele, para meu espanto, disse que eram 50 milhões de dólares”, conta Dantas. O banqueiro disse que se negou a dar o dinheiro. Por isso, teria sido perseguido.
Dantas se acomoda na cadeira da sala de reuniões e mostra um ar contrafeito. Sua conclusão é de que brigar com ele foi lucrativo para muitos. Desde que rompeu com o Opportunity, o Citibank, por exemplo, dobrou sua rede no Brasil. Em um ano, pulou de sessenta para 109 agências. Em termos relativos, foi o banco que mais se expandiu no ano passado. “Parece que eles foram muito bem recompensados”, comenta Dantas. Perguntado se se sente solitário, ele admite: “Eu não tenho aliados. As pessoas que arregimentei para a briga estão ligadas a mim por interesse”.
Durante o tempo em que esteve à frente da Brasil Telecom, a empresa foi uma grande patrocinadora de filmes e peças de teatro. Não por que Dantas tivesse interesse maior em artes e espetáculos. Longe disso. Quando estava no Icatu, costumava perguntar a Kati Almeida Braga por que ela ia ao teatro, se nada do que acontecia no palco era verdade. “O que você sente?”, perguntava, com curiosidade de patologista. Ao contrário do que ocorreu quando a Varig soçobrou, nenhum artista veio a público defendê-lo. Ele não guarda mágoas. “A Fernanda Montenegro disse que estava disposta a me prestar solidariedade, publicamente, mas não havia por que ela fazer isso”, conta o banqueiro.
No final de maio, Dantas sofreu novo revés. Seus principais colaboradores – a irmã Verônica, o cunhado Arthur Carvalho e a diretora Amalia Coutrim – foram proibidos pela Comissão de Valores Mobiliários de participarem, por dois anos, do conselho de administração de qualquer empresa. Os três foram acusados de terem prejudicado a Telemig e a Amazônia Celular quando eram seus conselheiros. Por ordem dos três principais assessores de Dantas, as duas empresas desembolsaram 17 milhões de reais para pagar advogados que defenderam o Opportunity na briga societária.
Diante de um prato de legumes grelhados, durante um jantar, dias depois num restaurante em Ipanema, Dantas analisa os movimentos que vêm sendo feitos para fundir a Brasil Telecom com a Telemar, operação que a legislação vigente não permite: “O governo está com um discurso nacionalista, dizendo que é melhor fundir as duas empresas a deixar que uma delas seja comprada por algum grupo estrangeiro.” Na sua avaliação, contudo, a intenção dos petistas é fazer uma re-estatização do setor, ou uma “previtização”, trocadilho que criou para se referir ao espaço que a Previ passaria a ocupar. Hoje, os fundos de pensão estatais têm grande participação nas operadoras.
Caso a fusão venha a se concretizar, o Estado será o acionista majoritário, com 63% do capital da nova empresa. Porém, com uma vantagem em relação a uma estatal: os fundos de pensão não estão sujeitos à fiscalização do Tribunal de Contas da União. “Nesse caso, o governo vai poder fazer contratações e dispor do caixa dessas empresas, que somam 6 bilhões de reais, sem ter que dar nenhuma satisfação”, afirma.
Dantas se serve de um pouco de água mineral e continua a desenvolver a tese. Para ele, a fusão das companhias dará ao governo muito mais do que o simples controle do caixa. O que ele vislumbra é que as empresas serão um instrumento de controle de informação, pois, juntas, cobrem todo o país, com exceção de São Paulo.
Seja qual for o futuro das empresas, Dantas está numa posição confortável. Se as companhias se fundirem, o Opportunity deverá ficar com cerca de 10% do novo negócio, já que possui participação nas duas. Segundo conta, sua intenção é vender as ações e sair do negócio. “Eu sei que os meus desafetos vão dizer que estou blefando, mas é verdade”, afirma. Perguntado se vislumbraria uma reconciliação entre Carlos Jereissati e Daniel Dantas, Sergio Andrade não hesita. “É claro que sim”, diz. “Antes de tudo, eles são pragmáticos.”
Dantas conta que agora está se voltando para outros interesses: o etanol, que considera a energia do futuro. Tanto que já comprou 100 mil hectares de terra no Pará, para plantar cana-de-açúcar e desenvolver o combustível. Ele interrompe a conversa para atender o celular. Fala rapidamente. Ao desligar, faz um comentário misterioso. “Me ligaram para dizer que estão tramando alguma coisa contra mim.” Não fica preocupado? “Não. Já me acostumei a viver assim.” Mas, afinal, não existe nada de que tenha medo? Ele solta uma gargalhada e responde: “Da Polícia Federal”.