O crucial na qualidade das novelas de Paulo Emílio é o estado de euforia que rompe o senso comum FOTO DO ACERVO PESSOAL DE LYGIA FAGUNDES TELLES, IN TRÊS MULHERES DE TRÊS PPPÊS, COSACNAIFY, 2007
Forma excêntrica de luta de classes
Em Três mulheres de três PPPês, Paulo Emilio mostra como a inconformidade com a ordem burguesa se faz sentir também no campo burguês
Roberto Schwarz | Edição 10, Julho 2007
Os trinta anos que passaram fizeram bem ao livro de Paulo Emilio Salles Gomes, cuja qualidade e modernidade se impuseram, embora continuem difíceis de precisar. Como entender o seu recurso sardônico a formas, assuntos e personagens com validade vencida? Em 1977, a opção formal irônica e retrô desconcertava mesmo os admiradores. Seria um recuo, uma falta de sintonia com o presente? Depois de um resumo para os que não leram, vou tentar uma explicação.
O livro se compõe de três novelas, contadas por uma figura que não precisa mas pode ser a mesma em três estações de sua vida. O narrador se chama Polydoro, pertence à burguesia abastada de São Paulo e se engana redondamente sobre as mulheres com que se envolve.
As novelas têm um esquema em comum, indicado nos seus títulos: “Duas vezes com Helena”, “Ermengarda com H” e “Duas vezes com Ela”. Trata-se sempre da revisão de um episódio amoroso à nova luz, a qual vira de cabeça para baixo as certezas anteriores do narrador.
Em “Duas vezes com Helena”, um Polydoro ainda jovem é seduzido pela mulher de seu querido e respeitadíssimo professor. O sentimento de culpa é imenso, até que trinta anos mais tarde o ex-jovem fica sabendo que Helena o seduzira a pedido ou a mando do próprio marido. Este era estéril, amava a mulher e resolvera aceder à paternidade por meio de seu discípulo. O culpado da vida inteira descobria-se a vítima de um plano libertino. Uma viravolta e tanto.
Em “Ermengarda com H”, um Polydoro quarentão está enfronhado até o pescoço em sua guerra conjugal. Sem perder o cavalheirismo, trata de infernizar a vida da insuportável Ermengarda, na esperança de levá-la ao abandono do lar, com as conseqüências legais do caso. As medidas tomadas incluem desertar o quarto do casal, cortar os gastos da casa e da comida, contratar o espião que Ermengarda contratara para espioná-lo, empurrar a mulher para outros braços etc. Isso até o momento em que Polydoro topa com o diário roxo que ela, em visita à família em Jundiaí, havia esquecido sobre a mesa da toalete. Muito emocionado, o marido fica sabendo que a mulher o ama e respeita e está se desdobrando para refazer o casamento dos dois. Antes que ele possa consentir e se render, nova viravolta: Ermengarda toma uma dose excessiva de sedativos e morre. Desdobramento seguinte, enquanto arruma as coisas da mulher, Polydoro descobre um novo caderno, este azul e trancado a sete chaves, que é o diário do outro diário: aqui Ermengarda registra, além das infidelidades, a trabalheira que lhe dava a confecção do diário roxo, aquele que se destinava à leitura do marido indiscreto e idiota que era preciso reconquistar. Na entrada final ela anota que os soníferos não lhe fazem nada e que ia tomar alguns para simular uma tragédia e dar um golpe definitivo nas resistências de Polydoro. Noutras palavras, não se tratara de um suicídio, mas de um erro na dosagem.
Estudando o caderno azul com atenção palpitante, a que nada se compara, Polydoro tem um período feliz de sua vida. Ainda assim não dá colher de chá e proíbe os parentes de Ermengarda de enterrá-la com o nome dele, já que eram casados no Paraguai e o casamento não valia. Passado mais um tempo, ele se dá conta de que a mulher havia morrido, e o universo vira pó.
Em Duas vezes Ela, já setentão, Polydoro registra num carnet a sua completa satisfação conjugal. Contra a opinião de parentes e sócios ele casara com uma secretária, Ela, que podia ser a sua neta, que se adaptara a ele nos mínimos detalhes e além de tudo era virgem. Anos depois começa a redação de um segundo carnet, para entender as mudanças da mesma Ela, que agora quer o desquite. Conforme a discussão entre os dois pega fogo, Polydoro fica sabendo que, apesar de educado, ele é um velho chato e risível, que a virgindade era uma sutura de dois pontos feita em consultório e que desde sempre Ela havia toureado três cavalheiros ao mesmo tempo. Visualizando a situação complicada e populosa ele estoura numa gargalhada incontrolável, que não poupa nenhum dos dois, ou melhor, nenhum dos quatro. Ela, enfurecida, responde com dois palavrões, que mostram ao marido deslumbrado a mocinha desbocada da Quarta Parada, que ela tinha sempre disfarçado e que ele, se não fosse tarde demais, teria amado.
A eficácia cômica e dramática do procedimento, que faz com que um mesmo episódio seja revisto do ângulo contrário, é infalível – em particular no terreno conjugal. Mas é evidente também uma certa facilidade, que a surpresa e o brilho das viravoltas não anulam. Se o principal estivesse aqui, “Três mulheres de três PPPês” seria um divertimento de muita categoria, mas não mais que isso. Digamos que a comicidade das situações não dá conta do alcance do livro.
Outra dimensão apimentada das novelas é a sátira à São Paulo abastada e cheia de si. A começar pela figura do narrador, metade inteligentíssimo e espirituoso, metade um bobalhão. A sua prosa hiperfluente e civilizada, um pouco empertigada e muito paulistana, estava nos antípodas da naturalidade buscada pelos modernos, para não falar nos experimentos de linguagem dos vanguardistas. Pior, ela vinha amarrada aos talentos de um tipo social em baixa histórica – o paulista quatrocentão –, de cujas presunções culturais ou políticas e de cuja loquacidade ela se alimentava. Era exatamente a dicção de classe alta que a geração mais jovem, política e esteticamente radicalizada, tinha expulsado do diálogo teatral e de cinema, a bem de outra mais coloquial e popular, que fazia figura de progresso nacional.
Em linha com Machado de Assis, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos, Paulo Emilio lança mão de um narrador em primeira pessoa fictícia, que cortou o cordão umbilical com o autor e a sinceridade confessional, servindo a fins de auto-exposição de classe, no caso, satíricos. Até onde vejo, a fusão de elegância pessoal e palermice acentuada é um procedimento literário audacioso, todo deliberado, que encena discretamente o afundamento da classe social do próprio narrador, naufrágio para o qual o autor deseja colaborar. Uma forma excêntrica de luta de classes.
Faz parte da auto-exposição satírica a mobilização de uma tralha ideológica entre ridícula e macabra, escolhida a dedo por um consumado especialista em bobagens, à la Flaubert. Assim, o narrador se exercita num gênero literário indigente, o “Louvor à dama paulista”, ligado aos ressentimentos da Revolução de 1932; o grande professor da primeira novela baseia os seus planos de paternidade no conhecimento que tem de seu discípulo, mas também em especulações numerológicas abstrusas, sobre o 2, o 3 e o 5, que pateticamente lhe servem mais adiante para explicar a morte do filho aos 25 anos nas mãos da polícia política; e Polydoro desenvolve uma rebuscada metodologia científica para decifrar as abreviações que dificultam a compreensão do caderno azul de Ermengarda etc; etc. Tomados no conjunto, são resquícios do amadorismo intelectual intenso a que a universidade moderna já deveria ter posto um fim.
Noutro plano, há as autodenúncias involuntárias, em que de passagem o narrador instrui o seu próprio processo, deixando escapar as suas simpatias pelo nazismo, o seu horror à construção de hospitais, que a seu ver assinalam a decadência da saúde pública em São Paulo, o seu desacordo com a legislação protetora da concubina, “uma das iniciativas imorais de Getúlio Vargas”, e, sobretudo, o seu conhecimento dos procedimentos policiais da ditadura nos anos 70, que a burguesia paulista – mas não só paulista – afirmava desconhecer.
Vista no conjunto, por magistral e aguda que seja, essa dimensão satírica tampouco dá conta da altura do livro. Até onde vejo, o elemento crucial da qualidade das novelas, ao qual estas devem a ressonância superior, é outro. As viravoltas da intriga, com o seu suspense e revelações descabeladas – bem como a sátira – só são geniais porque vêm acompanhadas de certo estado de atenção intensificada, propriamente eufórico, paranormal, que rompe as comportas do senso comum, ou seja, da ordem burguesa. Com exemplos, isso ficará mais claro.
Na primeira novela, quando passados trinta anos, Helena se dispõe a contar “tudo-tudo” a Polydoro, há uma mudança de estado nos dois. “Todos os meus sentimentos anteriores tinham sido substituídos por tal curiosidade em estado puro que apagou momentaneamente a própria identidade de Helena. Penso que o mesmo sucedeu com ela: logo depois de ter começado a falar, minha personalidade se dissipou apesar de seus olhos não se despegarem de meu rosto” (Cosacnaify, 2007, pág. 20).
O relato inesperado que vem em seguida, em que nada é como o narrador supunha, banha nesta atmosfera. Contudo, o prazer maldoso e aliás convencional de notar quanto um rapaz se pode enganar sobre o seu mestre ou sobre uma mulher não é o principal. Não se trata apenas da passagem à perspectiva complementar, ou da troca de uma parcialidade por outra, mas de fixar-se no conjunto, apagando as identidades própria e alheia, com o seu séqüito de mesquinharias, de direitos e dívidas individuais a cobrar.
Na novela de Ermengarda a curiosidade exaltante chega com a descoberta do caderno azul. Ela leva o narrador a desinteressar-se de sua imobiliária, a ficar em casa como um monge e a desenvolver um método científico especial para conhecer com deleite suprapessoal e fora de hora as maquinações de que era objeto. Os cuidados particulares de marido e proprietário recuam diante do interesse de contemplar com imparcialidade a sua guerra, a qual além de lamentável era também tudo o que tinha, de modo que com a morte da mulher o mundo vira pó.
Na terceira novela, finalmente, o septuagenário fica “prodigiosamente interessado” pelos motivos que levam a mulher a pedir desquite. Também aqui as conveniências de patrão, proprietário e marido cedem o passo ao gosto de sentir o jogo da realidade ríspida, as diferenças de idade, de fortuna, de cultura, ou mesmo do bairro de origem, essas vulgaridades todas, sufocadas pelas regras da boa educação. A gargalhada final não se refere aos outros, mas à comédia da vida proprietária no conjunto, incluído aí o papel que cabe ao próprio Polydoro.
Recapitulando, são estados de consciência especiais, que transcendem as unilateralidades burguesas e provincianas, além de desacatá-las, sem entretanto alcançarem outro universo, e aliás recaindo imediatamente no anterior. Adaptando a fórmula célebre de Walter Benjamin, sobre uma possível função política da imaginação surrealista, seriam “iluminações profanas” da São Paulo abonada. A sua encenação, na primeira pessoa de um senhor algo fora de moda, expressa um sentimento da vida contemporânea notavelmente justo à sua maneira – a combinação de superioridade civilizada, ruptura de limites e insuficiência grotesca –, suficiente para erguer essas novelas ao patamar da grande literatura. Ainda mais agora, quando as formas canônicas de subversão e superação parecem estar em recesso. A inconformidade com a ordem burguesa se faz sentir também no campo burguês.
No bom posfácio que escreveu para a nova edição de Três mulheres de três PPPês, Carlos Augusto Calil prestou ao leitor o serviço de transcrever dois trechos que Paulo Emilio suprimiu da versão final do texto. O segundo em particular dá uma idéia do entrelaçamento de crises históricas que o escritor vislumbrava nestes estados meio visionários, induzidos pela maluquice provinciana e pelos atolamentos conjugais, desde que perseguidos até o limite. A afinidade dos desejos de revolução tem extraordinário interesse.
Vimos que a novela de Ermengarda termina com o mundo reduzido a pó. Não era este o ponto final da versão anterior, que comportava algumas guinadas a mais:
O universo virara pó. Eu não tinha padre ou analista com quem falar. Meu sócio nunca entendera nada, a secretária era moça para compreender e meus irmãos me ouviriam como sempre, em silêncio. Mas eu leria nos olhos baixos a objeção que estariam levantando, a traição, e minha fúria estouraria. Que traição? Só mesmo os imbecis encontrariam traição no ato de uma mulher desesperada, cujo desespero é precisamente comprovado nos atos que os imbecis acoimam de traição. (…) Retomarei (…) a nossa guerra antiga na qual, de acordo com o que então escrevi em pleno jogo, o meu objetivo era escorraçá-la pela fome ou pela ignomínia e o seu, o de me reduzir a uma coisa de sua propriedade. É a partir desses termos de cadernos azuis que encontro a mais alta justificativa para Ermengarda e para mim.” (idem, págs. 189-190).
Depois de voltar-se contra a estreiteza da família e dos sócios – os seus aliados –, que não percebem os altos motivos de Ermengarda e, por tabela, dele mesmo e da guerra particular dos dois, o narrador se atira a um delírio estapafúrdio sobre os motivos das guerras do século XX. Como a sua própria, são guerras movidas por questões de propriedade, o que lhe permite insultar de igual para igual os estúpidos que as conduziram e acenar inclusive uma barretada admirativa a Trotski, o falecido “único sismógrafo” do tempo. A tirada prolonga-se, mas paro por aqui, pois espero já ter indicado a textura universal-amalucada que Paulo Emilio quis criar.