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Nefertiti, Sarney, Suplicy e outras múmias
Tranqüilas, altaneiras, e quase sorridentes em seus imortais trajes de linho, as defumadas filhas do Nilo lograram transpor as barreiras do tempo, trazendo até nós uma mensagem de esperança e júblio
Marcelo O. Dantas | Edição 11, Agosto 2007
Sustentam alguns que a história das civilizações começou na distante e misteriosa Suméria. Dizem esses que a roda e a escrita, o arado e as técnicas de irrigação, o problema carcerário e o Bolsa-família – tudo o que realmente importa – se originaram num grupo de pequenas cidades espremidas entre o Tigre e o Eufrates. Abundam-me motivos para desconfiar de semelhante mistificação. Afinal, de Gengis Khan a Bushinho, incontáveis líderes do mundo livre realizaram suas incursões preventivas naquelas bandas, sem que tenham podido encontrar mais que uns cacos de barro cozido.
Basta de mitos! Chega de fraudes! Nem Babel, nem Atlântida – os primórdios da epopéia humana encontram-se em um único e mágico lugar: o Egito. Cautelosos, metódicos, visionários, os soberanos desse povo sobranceiro almejavam a solidez da eternidade e, para tanto, ergueram obras que durariam para sempre. Mais que isso, criaram toda uma civilização voltada para o futuro, que nos deixaria como legado não apenas seus hieróglifos, pirâmides e obeliscos, mas também, e sobretudo, os próprios habitantes do país.
Disso até mesmo os economistas sabem – nada representa melhor o Antigo Egito que a múmia. Toda a ciência e a poesia dessa civilização originária foram perpetuadas na elegante serenidade de seus cadáveres. Tranqüilas, altaneiras, e quase sorridentes em seus imortais trajes de linho, as defumadas filhas do Nilo lograram transpor as barreiras do tempo, trazendo até nós uma mensagem de esperança e júbilo.
Conta-nos Plutarco que Osíris, o primeiro faraó, foi morto e esquartejado por seu irmão, Set, o sem-terra. Com a ajuda de Thot, a divina Ísis escapou ao jugo do usurpador, e saiu à busca das catorze partes dispersas de seu esposo e irmão. Encontrando-as, pediu a Anúbis, o chacal, que as unisse e embalsamasse. Uma vez restaurado o corpo físico (khat) do faraó, as demais oito faces de sua divina essência puderam enfim reconhecê-lo, vindo a ele juntar-se. A partir de então, Osíris passou a reinar sobre o Duat, a morada dos mortos, onde presidirá o clímax da existência de todo egípcio: seu julgamento final.
Note-se que estamos longe do ideal cristão da vida eterna – essa utopia da ascensão da alma à esfera do puro tédio. Mais longe ainda estamos das noções orientais de dissolução de toda individualidade num aguado princípio universal. Para os egípcios, nenhuma verdadeira espiritualidade poderia haver que prescindisse por completo da realidade material. Do contrário, qual o sentido de virmos ao mundo? Esta vida, pensavam eles, é uma dádiva única e preciosa. Melhor do que estarmos aqui, só mesmo quando chegarmos à próxima parada – nós e tudo que somos, matéria e espírito. Como ensinam os versos de um antigo poema da soteriologia morena:
Deixa eu dançar, pro meu corpo ficar Odara
Embriagado com esses impenetráveis versos que aprendi no volume Egyptian Texts of the Early Period, from the Coffin of Amamu Kahetamu, um dia, ainda em minha juventude, fui tocado pelo sopro de Ra e tive uma revelação. Éramos todos solidários no mais abjeto crime do monstruoso século XX: o genocídio das múmias!
Todo o esforço de uma civilização destroçado, desmembrado, dissecado, disperso. Tantas tumbas saqueadas, tantas promessas de futuro desfeitas. Mães e filhos separados; kas e corpos apartados; khats ao catzo! Funestos crocodilos somos. Nada respeitamos. Não queremos saber se a pobre múmia gastou todas as suas economias para assegurar um sarcófago de pinho decente. Pouco nos importa quantos verões labutou nas pedreiras de Assuã para comprar umas faixas de linho antiácaros. Sequer por um instante, pensamos que a múmia está ali por um propósito, e que nossa curiosidade põe a perder, para todo o sempre, suas chances de fazer a grande travessia em direção à eternidade.
Que pervertido código moral nos autoriza fazer uso da morte alheia? Que lógica mambembe supomos justificar o despejo de tantos reis, a profanação de tantos memoriais? Como se sentiria, hoje, um cidadão brasileiro, se ladrões estrangeiros tomassem de assalto o sacrossanto Convento das Mercês e de lá retirassem o cadáver de nosso inesquecível José Sarney, interrompendo grosseiramente o seu sono eterno? A humilhação que seria para toda a nação brasileira ver os restos presidenciais expostos em um museu qualquer, visitados sem pudor por turbas escolares, fotografados ao infinito por hordas de turistas japoneses – malta feroz e ignara, que jamais saberá do grande estilista de Marimbondos de Fogo, do estadista por detrás da Arena e do Centrão!
Com isso em mente, lancei-me numa luta fervorosa em prol dos direitos humanos das múmias. Corria a década de 60, época de flores na mão e cassetetes na cabeça. Não foi fácil difundir entre nossos assustados conterrâneos a mensagem libertária do mummy-power, o Poder Múmia. Por um bom par de anos, clamei sozinho no deserto. Mas a verdade revelada tem o dom divino de sobrepor-se a todo desafio. Aos poucos, fui amealhando companheiros de luta. Resistimos, crescemos e, mesmo na clandestinidade, perseguidos à esquerda e à direita, prosperamos. Nosso momento enfim chegou: o verão de 68. Era o ano cabalístico de Osíris, tempo de sonhar e renascer. Eufóricos, fundamos a SPM – Sociedade Protetora das Múmias.
Tamanha foi a pororoca a que chegamos, tamanha a revolução que provocamos no debate internacional sobre os direitos civis, que, por algumas semanas, achei que em breve conseguiríamos salvar o Antigo Egito (e seus habitantes) de uma antes provável aniquilação. Súbito, essa civilização magnífica voltava a estar em voga. Partindo de um estudo aprofundado do Livro dos Mortos, Milton Nascimento escreveu seu hino iniciático Travessia, Hélio Oiticica lançou o conceito do sarcófago como instalação, José Celso Martinez tropicalizou em Macunaíma um Osíris nacional e, lá fora, o genial John Lennon, em desafio às convenções burguesas, não deixou por menos: casou-se com uma múmia!
Mas aquele ano glorioso acabou. Foi-se a luz, veio a repressão. Sofremos também com a impiedosa competição de instituições vizinhas e seitas rivais. Com o tempo, perdemos alguns de nossos mais fervorosos adeptos. Tim Maia descobriu o Universo em Desencanto; Raul engajou-se na Sociedade Alternativa; Gil aderiu ao credo polifônico de Jorge Mautner; Paulo Coelho entrou para o mercado financeiro; Baby e Pepeu foram barrados na Disneylândia.
Ida a turma festiva, foi-se o nosso coração. Restamos uns poucos idealistas a defender a nobre causa dos mortos-vivos: eu, o saudoso João Amazonas e mais três ou quatro embaixadores do quadro especial do Itamaraty. Durou pouco. Cansados de amargar a injusta decadência de nosso (plus que) Petit Trianon, e sem dinheiro sequer para renovar o estoque de naftalina, decretamos em sessão solene o fechamento provisório da imortal Sociedade Protetora das Múmias.
Parti então para meu exílio em Paris, onde passei quase duas décadas a perguntar-me onde erramos. Veio a anistia, e pouco para mim mudou. Continuei em meu studio na Rive Gauche, fazendo visitas diárias à coleção egípcia do Louvre, tentando encontrar no silêncio das múmias ali expostas alguma explicação sensata.
Depois de muito refletir, concluí que, em lugar de mudar a realidade da múmia, seria preciso antes entendê-la. Urgia ver a múmia tal como é. Ou mesmo, antes disso até, cabia jogar por terra todo preconceito metafísico e formular, de peito aberto, a pergunta ontológica fundamental:
Será que ela é? Será que ela é?
Difícil saber. Existe um ser da múmia? Uma essência mumiesca, um arquétipo múmico? Haverá em alguma parte um diálogo perdido em que Sócrates busque recordar aos mancebos atenienses a Idéia da múmia? Será possível traduzir em palavras todos os aspectos inefáveis de sua complexa-idade? Perguntas, muitas perguntas.
Trouxe abaixo as bibliotecas da Sorbonne. Persegui incontáveis professores-doutores por corredores, cafés, alcovas, bordéis… Sempre a fustigá-los com minhas indagações. A essência da múmia precede a sua existência, ou devemos supor, ao contrário, que a sua presença no sarcófago, o seu estar ali, é na verdade quem vai construindo aos poucos a sua identidade? A múmia é a soma de seus atos, ou ela redefine a si mesma, em total liberdade, a cada novo instante?
Passavam as estações, sucediam-se os filósofos de outono, os pensadores de primavera, e minhas dúvidas permaneciam. Pois, se o Egito Antigo deixou de ser, cabe perguntar: existe ainda a múmia, aquela mesma múmia, ou tornou-se ela outra múmia, inserida em um novo contexto social, no qual já não é pessoa morta, mas objeto vivo? Seria a múmia, porventura, apenas o reflexo elusivo de sua permanente mutação através da História? Existe uma múmia fora do nosso discurso sobre a múmia? Pequeno demais era meu intelecto diante da imensidão da múmia em si.
Decidi então voltar ao Brasil. Desembarquei no Galeão um homem bastante diferente daquele jovem idealista que, dezoito anos atrás, daqui partira. E foi só aqui, em território nacional, que o óbvio ululou para mim. Que tolo fui eu. Décadas a estudar a gnose egípcia, e sequer por um instante suspeitei que aquele momento de crise não passava de mais um estágio em meu atribulado trajeto iniciatório.
Toda minha análise estivera, sempre, irredutivelmente equivocada. Meu erro era olhar para a múmia como se ela fosse outro, alheio a mim, um ser distinto e distante. E não é esse, absolutamente, o método correto para desvelar os mistérios do Egito. A múmia não está ali inerte, sendo observada por nós, tendo o seu eu conferido por nossa benevolência.
Uma tarde, passando cabisbaixo pelas ruas do Centro, massacrado por meus pensamentos imperfeitos e minha vasta culpa, eis que cruzo por uma loja de televisores. Súbito, sou fulminado pela mais esplendorosa epifania. Na tela, diante de meus olhos incrédulos, a imagem inconfundível da grande rainha, com seu rosto inconfundível, esculpido pelo próprio Ptah – sim, era ela, Nefertiti, ali, diante de mim. Dançando, girando, deslizando pelo palco. Que coisa mais linda, mais cheia de graça. Minha princesa selenita. Ela estava viva, moon walking. A múmia pop!
Corri aos jornais para anunciar a boa nova. Convoquei uma entrevista coletiva e proclamei: ela está viva!
Não adiantou eu tentar explicar à imprensa ignara que os egípcios jamais acreditaram em metempsicose, uma invenção indiana, difundida pelo eclético Pitágoras. Ao contrário do que sustentam nove entre cada dez peruas de sociedade, a rainha Nefertiti jamais reencarnou. Semelhante idéia é um insulto à sua sagrada memória. Nefertiti sempre foi, e sempre será – como qualquer outro egípcio, aliás – uma alma zero quilômetro. Se ela fez-se mumificar, foi precisamente para renascer, não como outra pessoa, mas como si mesma. E conseguiu.
Não me venham dizer que essa múmia vista por aí, cantando e dançando, é a mesma pessoa que o simpático garotinho do Jackson Five. O menino que cantava I’ll be there deve estar dando risadas em algum rancho nas Montanhas Rochosas. Ou apertando seu baseado na comunidade rastafari em que decidiu viver. O certo é que deixou a ribalta, pediu as contas, se aposentou. Quem agora está lá é Nefertiti.
Sim, isso mesmo. É o que venho documentando faz mais de uma década. Antes, reconheço, era cedo demais para que me pudessem entender. Mas tenho a certeza de que, agora, o público estará maduro para absorver a revelação. A grande rainha foi a primeira. Apenas a primeira. Outras múmias estão igualmente a ressuscitar.
Que alegria me invadiu ao chegar a essa simples conclusão. Claro, nunca houve o genocídio das múmias, nunca houve profanação de seus túmulos sagrados. Nossa infantil curiosidade, nossa incomensurável ganância, nossa brutalidade – tudo isso havia sido milênios atrás previsto pelos magos egípcios. Grandes matemáticos que eram, traçaram uma estratégia calculada em seus mínimos detalhes. Nós pensávamos usar o Egito, mas foi o Egito que nos fez seu instrumento.
Múmias em Londres, múmias em Berlim, múmias no Vaticano, múmias até na Quinta da Boa Vista! Nós as espalhamos, as nutrimos, as trouxemos de volta à luz. E a profecia se cumpriu. É necessário pousar um olhar atento sobre a realidade que nos cerca. A realidade por detrás da realidade. A linguagem cifrada da imensa matrix. Milhares de pistas secretas, deixadas a cada canto. Elas estão entre nós. Múmias, com seus narizes delicados e crânios vazios, desfilando por nossos salões, ocupando cargos altíssimos, estrelando filmes, escrevendo livros, sendo eleitas. É o reality show da ressurreição! E suspeito, sobretudo, que seu epicentro esteja aqui, em nossas terras ensolaradas. O Brasil, país do futuro, é a nova Atlântida.
Os sinais são evidentes. Comandados pelo P.A.I. – sumo-sacerdote da mais secreta das sociedades –, os mestres embalsamadores de Anúbis executam seu plano à luz do dia, já sem medo de se mostrarem aos olhos do bom conhecedor. Eis, fiel leitor, a verdade por detrás do Código da Múmia:
Ptah = o deus criador, “aquele que dá forma”; artista e artesão do mundo, sopro do Logos; representado freqüentemente por uma múmia com o bastão sagrado em suas mãos;
Ankh = a cruz com a alça, símbolo da eternidade da vida e do vínculo divino entre o céu e a terra; imagem que acompanha as cerimônias rituais, talismãs e objetos funerários do Egito, muitas vezes adornando a indumentária do próprio Osíris;
Ihy = o filho negro e nu da divindade feminina primordial Hathor; manifestação do poder criador da deusa-mãe de toda vida.
O Ptah-Ankh-Ihy, cuja pronúncia egípcia “Ptaankhy” pode mais corretamente transcrever-se para o português moderno como Pitanguy, é o detentor último dos conhecimentos herméticos da era dos faraós, o representante de Anúbis nesta esfera primária da existência. Pasmem: ele vive no Rio de Janeiro!
Esse prelado não está entre nós por acaso. Ele, obviamente, tem uma agenda: recriar no Brasil o Antigo Egito. Mas existem problemas. Nosso país ainda está mal aparelhado para receber esse influxo avassalador de múmias. Felizmente, nossas principais lideranças estão atentas. O senador Eduardo Suplicy, que costuma se expressar na tribuna do Senado em um dialeto copta próximo ao egípcio clássico, garantiu-me na semana passada que irá propor, em breve, a criação de uma Secretaria Especial, ligada à Presidência da República, para tratar exclusivamente do tema dos sem-sarcófago.
O debate é acalorado, e não são poucos aqueles que assinalam os problemas trazidos pela presença já majoritária de múmias no corpo docente das nossas escolas superiores. Durante a última greve universitária, cheguei a receber, das mãos de alunos descontentes, abaixo-assinado contendo inúmeras denúncias, entre elas a de que a grande maioria das múmias-titulares jamais havia entrado em sala de aula. Dirigi cópia do manifesto ao procurador-geral da República, que a engavetou, alegando não acreditar na existência de múmias. Deve ter seus motivos.
Os avanços são, no entanto, palpáveis. Ritos coletivos de exorcismo múmico já são organizados abertamente pelo Congresso Nacional. Essas benfazejas sessões de descarrego têm logrado a absolvição em massa de multidões de congressistas mortos que – Osíris seja louvado! – adquirem assim salvo-conduto para ir à cadeia nacional posar de muito-vivos e bradar: “Eu não sou uma múmia, eu estou uma múmia!”.
Vivemos tempos abençoados. Uma nova era de ouro, com novos valores, novos métodos, nova consciência. Mais que nunca, somos todos irmãos. Viva o Brasil, viva o Egito, viva as múmias! Quem não estiver satisfeito que se mude! Aos neofalangistas e outros tantos inimigos das verdadeiras lideranças populares, invoco, num derradeiro sortilégio, as palavras da incomparável Marilena Chauí, que conseguiu, enfim, mumificar a Ética de Espinosa:
Ó pátria amada, embalsamada
Salve, salve!