ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Agradeça aos nossos patrocinadores
A nova vida de um ex-candidato a tudo que corre o risco de não poder mais se candidatar a nada
Roberto Kaz | Edição 11, Agosto 2007
Eram 9 horas da manhã de uma sexta-feira, 6 de julho. Na sala de gravação da Manchete AM, no Rio de Janeiro, um homem de camisa azul de manga curta, calça social e sapatos pretos de couro esperava a hora de entrar no ar. O comercial chegou ao fim, dando vez à assinatura sonora do programa de rádio que ele comanda. Ajeitou os fones de ouvido, limpou a garganta e disparou numa voz suave, ainda que levemente rouca: “Bom dia, minha querida amiga dona-de-casa, bom dia, meu irmão trabalhador. Bom dia pra você, meu amigo taxista. Lembre-se: taxista ligado é taxista premiado. O carro da Manchete está hoje na rua Frei Caneca, em frente ao Hemo-Rio. O primeiro taxista com final de placa 17 que chegar lá vai ganhar 100 reais em dinheiro vivinho”. Em seguida, anunciou a Caravana da Saudade, que oferece aos ganhadores uma passagem de ônibus para qualquer lugar do Brasil. Por fim, lançou a enquete do dia, a ser respondida pelos ouvintes: “Quem é mais fofoqueiro, o homem ou a mulher?”
Assim tem início o programa de rádio do ex-prefeito de Campos, ex-governador do Rio e ex-candidato a presidente Anthony Garotinho, no ar de segunda à sexta, das 9 ao meio-dia.
As saudações continuam: “Bom dia, meu amigo porteiro de edifício. Esse é o único programa do Brasil que tem uma promoção só pra você. Todo dia sorteamos um radiorrelógio digital com despertador”. À vontade no estúdio de gravação, ambiente que domina como poucos, Garotinho apresenta seus colaboradores: titia Teresa, a fofoqueira; vovó Adelaide, a representante da terceira idade; dr. Eumar, o advogado do povo; e Paulo Rio Amorim, uma paródia do jornalista Paulo Henrique Amorim. Ao longo das três horas de programação, os quatro serão chamados a dar sua opinião sobre os temas em debate. Para os desavisados, o ex-governador lembra que o programa vale “uma batedeira, um liquidificador e um aparelho de DVD, tudo da Britânia, produtos de qualidade”.
O jingle de abertura morre nas águas melodiosas de um piano etéreo e espiritual. Do fundo, brota uma voz grave que traz notícias proféticas: “Vai dar tudo certo!” Garotinho põe os óculos e lê um textinho: “Minha amiga, se você está sentindo uma dor difícil de suportar, busque a solução em Deus. Diga para si mesma: ‘O mal que lhe fizerem hoje vai se transformar em bem na sua vida. Vai dar tudo certo'”. Suas palavras são sublinhadas pela voz grave e persuasiva que sai das caixas de som em ritmo gospel: “Vai dar tudo certo! Vai dar tudo certo! Se a gente botar a nossa fé em ação, vai dar tudo certo!”
A sala de gravação tem uns 30 metros quadrados. Nela cabem a mesa do apresentador, a ilha de edição e uma platéia de onze lugares, vazia durante boa parte do tempo. Garotinho divide o espaço com a produtora do programa, o operador de áudio e duas telefonistas. Sua mesa tem quatro microfones e um relógio do tamanho de um prato, útil para quem anuncia as horas de minuto em minuto. Desenvolto, ele ri e graceja com os ouvintes. Recebe o telefonema de uma ouvinte, Carolina. Não hesita: “Carolina, os seus olhos fundos/ guardam tanta dor,/ a dor de todo esse mundo…”, canta o ex-governador, com voz maviosa. Há política no meio, claro: críticas à Polícia Federal, que acabava de indiciá-lo por crime eleitoral cometido na campanha de 2006, ou menções desabonadoras a José Dirceu e ao governador Sérgio Cabral (“Cada vez mais eu me envergonho de ter apoiado um político, não vou dizer de duas caras, mas de 50 caras”). Mas a política não é a substância do programa. Brasília ou o Palácio Laranjeiras são assuntos marginais. O prato principal de Fala, Garotinho são os temas ligados à vida dos artistas, às agruras sentimentais dos ouvintes, às promoções, ao trânsito da cidade, aos fatos policiais da metrópole. Segundo o ex-governador, desde a estréia do programa, em março, a audiência só cresce e já bate a casa dos 10 mil ouvintes por minuto.
Às 9h40, Garotinho anuncia o sorteio do rádio de pilha. É a promoção O nome do meu radinho é Garotinho. Na esteira das premiações, entram no estúdio três senhoras aquinhoadas com brindes diversos no programa da véspera. São três mulheres modestas. Dona Íris carrega um Grill Light, da Britânia; dona Wanda, um aspirador de pó, também da Britânia. Ambas ouviram o telefone tocar em casa e, em vez de responder com o proverbial “Alô”, disseram: “Fala, Garotinho”. A terceira, mais jovem, tem 23 anos, está grávida de oito meses e desempregada. Chama-se Glauciane. Foi ao programa atrás de um enxoval de bebê. Será a atração de encerramento.
Às 11 em ponto, entra no ar a Patrulha do Rádio. Inconfundível. O estúdio é invadido pelo som rascante de rajadas de metralhadora, acompanhado do jingle “Vacilou, vacilou, vacilou, dançou”. O caso do dia é o assassinato de um suposto delator, o pedreiro Flávio da Silva Mendes, de 40 anos. A cena é dramatizada. Ouve-se o seguinte diálogo:
BANDIDO 1: Agora o bicho vai pegar.
BANDIDO 2: Vamos passar o rodo. Aí, quem é alemão vai tomar tiro.
BANDIDO 1: Aí, otário, chegou a tua hora.
VÍTIMA: Por favor, não entreguei ninguém, não sou x-9, cara!
Para infortúnio da VÍTIMA, o BANDIDO 1 não parece estar convencido. Repete que o rapaz é safado. Diz mesmo: “Vacilão!” Sem mais delongas, informa o que fará: “Encher a tua boca de bala”. O BANDIDO 2 concorda com a linha de ação: “Morre, alemão safado. É bom pra todo mundo saber que quem não firmar com a gente, vamo passar o cerol”. O drama se encerra com o grito de triunfo: “Nós somos do Comando Vermelho, na moral!”
Pausa dramática, silêncio respeitoso. E então o ex-governador retoma: “Olha, eu quero lembrar a você, minha amiga dona-de-casa, que quando chegar no mercado procure alimentos Rica. Alimentos gostosos e saudáveis. O bacalhau Rica é uma beleza. Não dá a você aquele trabalho de botar de molho de um dia pro outro. Porque o bacalhau Rica já vem com sal ao ponto. Portanto, quando chegar no supermercado, exija a marca Rica, produtos feitos para a sua família”. Garotinho também anuncia material de construção (“Argamassa Cimentcola Quartzolit, saco 20 quilos, 6,58 reais), um guaraná dito natural (“Seja um revendedor ou uma revendedora do Guaracamp. Dá mais de 100 por cento de lucro”) e produtos de higiene íntima (“Esse mês nós vamos sortear uma linda máquina de lavar roupa, um oferecimento da Confiance, o absorvente da mulher moderna”).
Chega o Momento da Solidariedade. Cachoeiras de notas musicais são despejadas sobre o estúdio. É a vez de Glauciane, a moça sem enxoval. Com um leve tremor na voz, Garotinho conta que ela não tem condições de vestir seu futuro bebê. Pergunta, com dor: “Glauciane, se você não conseguir esse enxoval, vai fazer como? Seu marido só ganha 450 reais por mês e ainda paga uma pensão alimentícia pra dois filhos de outro casamento”. A moça olha para o chão, desalentada, dando-se conta da situação desesperadora. O ex-governador implora: “Glauciane, faça um apelo para quem estiver te ouvindo. Pode ser que alguém queira te ajudar. Você tem fé, Glauciane?” Ela tem. Ele repete, enfático: “Tem muita fé? Você crê em Deus, Glauciane? Quer que Deus abra as portas pra você? Então olha para aquela porta ali…”
A música agora é apoteótica. Sonoplastia de palmas. Em benefício dos que estão em casa, Garotinho relata o que se passa no estúdio: “Está entrando pela porta a nossa secretária, com um enxoval completo pro neném”. A moça cai em prantos. Íntimo, com voz de quem acolhe os que passaram por um trauma ou os doentes em remissão, o ex-governador pergunta: “Por que você está chorando, Glauciane? Você não esperava que o programa fosse arranjar isso tudo pra você?” Ela faz que não. Garotinho profere a sentença final: “Então agradeça aos nossos patrocinadores. Agradeça a Deus, primeiro. E depois, aos nossos patrocinadores”.