ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2007
Quem ronca mais alto adormece primeiro
No caso de você não ser rã, saia do fundo desse poço
Maria Dolores | Edição 13, Outubro 2007
Os sócios e amigos Douglas, Renato, Binho e Ângelo acabam de chegar a um restaurante da capital paulistana, depois de encerrar a reunião quinzenal em que discutem os negócios. É um estabelecimento que participa da promoção de uma rede de cartões de crédito. O cliente paga a conta com o cartão e ganha um biscoito, dentro do qual poderá ter a sorte de encontrar a mensagem premiada. O quarteto se entusiasma, na expectativa de um deles ser o felizardo a levar para casa uma panela de cor azul ou laranja, a escolher. Chega a hora crucial: a sobremesa, acompanhada do biscoitinho. A sorte, infelizmente, não lhes sorri. O sonho de ampliar o arsenal de utensílios culinários fica para mais tarde.
Menos mau. Seria difícil convencer os organizadores de que esta não era uma promoção de biscoitos marcados. Afinal, são eles, os quatro amigos, os fabricantes da guloseima. “Quando é para uma campanha assim, as mensagens são auditadas e a distribuição é feita pelo cliente”, esclarece Sahib Tsuzaki, o Binho, a quem compete tocar o dia-a-dia da fábrica e supervisionar a produção mensal de 1 milhão e 200 mil biscoitinhos da sorte, distribuídos por todo o país. É a bem-aventurança indo ao encontro do povo.
Os sócios, todos de ascendência japonesa, começaram a produzir os biscoitinhos há onze anos, artesanalmente, para atender ao restaurante de telentrega China in Box, na época com três lojas. Em pouco tempo, a rede de comida chinesa disparou e se tornou impossível suprir a demanda à maneira antiga, biscoito a biscoito. Douglas, Renato, Binho e Ângelo compraram uma máquina nos Estados Unidos e montaram a fábrica, na rua Alvarenga Peixoto, na Lapa. Um tanto exoticamente, batizaram o empreendimento de Hakuna Matata, nome que pode soar vagamente japonês, mas vem do idioma suaíli, foi popularizado pelo desenho animado Rei Leão e significa “Nada de preocupações!”. Hoje com treze funcionários, são os maiores produtores de biscoitos da sorte no país.
A cada dia, as quatro máquinas têm capacidade de produzir 60 mil unidades, que abrigam, em seu interior, as tirinhas de papel de 7 centímetros de comprimento por 1,5 de largura, acomodadas em 5 gramas de massa doce. De um lado, o papelzinho anuncia a boa-nova; no outro, traz uma seqüência de seis números, de 1 a 60. É uma combinação randômica para serventia dos apostadores da Mega-Sena. “Nós paramos de imprimir as dezenas por um tempo, mas tivemos tanta reclamação que fomos obrigados a voltar atrás”, explica Binho. Vitória do consumidor. Ou, ao menos, a daquela parcela que se sentiu lesada na hora da fé. A maioria, porém, só se interessa pela frase auspiciosa. O que não é mau, porque, se todos levassem a sério sugestões numéricas em biscoitos da sorte, o concurso 529 da Mega-Sena teria tido mais 169 500 vencedores, número de pessoas que receberam, com a sobremesa, a tirinha com a seqüência 01, 13, 33, 38, 45 e 56, sorteada em 14 de janeiro de 2004.
Bastou as bolinhas saltarem dos globos para a Caixa Econômica Federal se ver diante do inesperado: quinze pessoas haviam acertado as seis dezenas. Todos os ganhadores moravam no Nordeste. Efetuada a investigação para detectar fraudes e possível formação de quadrilha, o inquérito concluiu, singelamente, que os quinze haviam apostado nos números de biscoitos da sorte fabricados por um senhor chamado Fong Yu, dono de uma cadeia de restaurantes chineses que se espalha pelo Nordeste. Sorte deles, e dos quatro sócios da Hakuna Matata. Embora os biscoitos premiados não tenham sido fabricados por eles, nunca se vendeu tanta mercadoria. Houve, inclusive, uma migração de pontos-de-venda: “As lotéricas passaram a dar de brinde para os clientes”, conta Douglas Kitagawa, nostálgico.
Uns buscam sua fortuna nos biscoitos, outros nem ligam. Segundo Renato Watanabe, os consumidores se dividem em três grupos: os que partem o biscoito, lêem a mensagem e comem o quitute; os que partem, comem e depois lêem; e os que apenas comem, com a mensagem e tudo. Esses literalmente engolem a própria sorte. Dos que lêem, há quem ache graça, discorde, ignore ou leve a frase mais a sério do que se aconselharia. Por isso, cada vez que uma frase dá problema, é expurgada da coleção.
No começo, as mensagens eram importadas dos Estados Unidas. Já vinham em português, impressas, mas a tradução literal do inglês gerava confusão. O pessoal abria o biscoito, não compreendia nada e reclamava. A campeã de críticas, rapidamente retirada de circulação, era esta: Em Deus nós confiamos, os outros pagam à vista. Todos os sorteados a encaravam como um espessíssimo enigma teológico. Provavelmente derivava do dístico da moeda americana, In God we trust, mas vá lá saber. Por via das dúvidas, os estrategistas da Hakuna Matata decidiram deixar o Altíssimo fora dos negócios. “Resolvemos eliminar qualquer frase com a palavra Deus”, explica Renato, “para evitar complicações.”
De modo geral, o mais sábio é apostar em sentenças como Aquele que ronca mais alto adormece primeiro, A tempestade arranca a árvore solitária, Esteja a cavalo quando for procurar um cavalo melhor, Não aja como uma rã sentada no fundo do poço –, que podem carecer de substância, mas atrapalhar, não atrapalham. Algumas têm até origem certificada: vêm diretamente do milenar repertório de imprecisões do I-Ching. Lê-se nelas o que bem se entende.
Mas mesmo exercendo máxima cautela, o que parece céu de brigadeiro pode virar tormenta. Frases inofensivas podem gerar um verdadeiro estardalhaço. Entram imediatamente para o index proibitorum dos dizeres da sorte. Foi o que aconteceu com Você vai receber uma herança. Quis o destino que ela fosse parar nas mãos de um menino de 13 anos, filho temporão. Como os pais já eram sexagenários, o moleque achou que ia ficar órfão ali mesmo e desatou numa crise de choro em pleno restaurante. Nem comeu o biscoito.
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