Baianos pré-colombianos
Em 205 lugares, as maravilhas de pinturas rupestres feitas antes que os Andes existissem
Marcos Sá Corrêa | Edição 14, Novembro 2007
A Bahia tem pintura rupestre até em paralelepípedos. Não faz muito tempo que o Ministério Público tirou do mercado as pedras de calçamento produzidas em Livramento de Nossa Senhora, a 700 quilômetros de Salvador, onde a mineradora Xangô explorava um sítio arqueológico com dinamite.
Dá para fazer um guia do sertão baiano exclusivamente com o roteiro da arte pré-colombiana. Figuras antropomórficas na Pedra Furada, em Oliveira dos Brejinhos. Animais policromáticos na Pedra do Boiadeiro, em Morro do Chapéu. Animais monocrômicos na Lapinha, em Cafarnaum. Desenhos geométricos na Toca do Urubu, em Ibitipá. Mãos gravadas em paredes de cavernas no Vale do Impossível, em Sincorá. E um mapa celeste na Gruta do Cosmos de Irecê, nos confins da Chapada Diamantina.
São segredos mal guardados no fundo de locas, na beira de penhascos ou em beiras de quintal. Achá-los nunca foi problema desde que os primeiros europeus puseram os pés no interior da Bahia. Difícil, para o arqueólogo Carlos Alberto Etchevarne, foi acertar a fórmula da subtração, para juntar tanta coisa, dispersa num vasto território. Ele catalogou 115 lugares, peneirados em mais de 300 registros de ocorrências. Desencavou sítios arqueológicos que só estavam fichados na memória da população local. Ouviu sertanejos que, roçando, topavam com os grafites. Encontrou prefeituras que sabiam de sua existência, mas não o que fazer com eles. Mobilizou escolas rurais para preservá-los. Recebeu muita informação por e-mail. Inclusive de um baiano que, vivendo em São Paulo, lembrou-se dos desenhos antigos que conhecera, ainda menino, nas terras da avó.
Não deu para ver tudo. Etchevarne visitou 205 jazidas arqueológicas, desde a Serra do Mulato, no norte, à Serra do Ramalho, no sul do estado. Palmilhou a margem direita do rio São Francisco. Convenceu-se de que precisaria de mais uma vida para estudar só o que existe na Chapada Diamantina, um labirinto de rochas tão velhas que a erosão já esculpia suas cavernas de arenito antes que os Andes surgissem do chão. Na região de Brotas de Macaúbas, onde acabou a fuga e a vida do capitão Carlos Lamarca, indicaram-se 46 ocorrências. O arqueólogo conferiu três. Não teve tempo para verificar o resto. Em outros lugares, encontrou várias amostras de rochas pintadas num raio de quilômetros. Somadas, elas foram parar em seu atlas como um sítio só.
“A quantidade de pinturas é, em si, impactante”, ele concluiu. Anda atrás delas há duas décadas, a princípio em fins de semana, consumindo um Fiat em viagens com seus alunos da Universidade Federal da Bahia. Acelerou a busca no ano passado, quando ganhou o prêmio Clarival do Prado Valladares com o projeto Homem e Natureza – Imagens da Arte Rupestre na Bahia. O prêmio deu-lhe a verba de 530 mil reais para publicar como livro de arte o que esboçara como pesquisa acadêmica. De quebra, a empreiteira que promoveu o certame cedeu-lhe uma camionete 4×4 para enfrentar caminhos que também parecem pré-colombianos. Incorporou à equipe o fotógrafo Cláudio Gonçalves, que registrou as imagens que antes Etchevarne fazia com câmeras de bolso. Na reta final, a artista gráfica Marcela Ruck veio de Barcelona para acompanhar, em campo, a ilustração do livro, que será lançado no fim do mês, em Salvador.
Ele vem com duzentas fotografias, aliviando o texto, escrito para arqueólogos e pesquisadores. Pode-se folheá-lo como se visita uma bienal de artes plásticas, sem muita obrigação de decifrar o conteúdo. O próprio Etchevarne não vai muito longe, quando se trata de explicar o que os grafiteiros pré-coloniais quiseram dizer, há 2 300 anos, pintando as rochas. Ele deixa para os guias turísticos a prerrogativa de interpretar livremente as pinturas como rituais de magia e invocações religiosas.
São traços que se sucederam, eventualmente por milênios, nos mesmos painéis naturais deixados provavelmente por “numerosos grupos, em diferentes épocas”. Misturam sinais superpostos, talvez registrando eventos, transmitindo experiências ou delimitando territórios em pontos de passagem, mais ou menos como fazem hoje as placas rodoviárias nos acostamentos. Quem as botou ali, segundo Etchevarne, dominava uma “gramática de imagens, cuja sintaxe ainda não descobrimos”. E os símbolos podem ter servido a mais de um uso, “como nós temos o mesmo alfabeto para escrever poesia ou relatório técnico”.
Ele não arrisca um palpite sobre a idade dos sítios, porque não há, nos locais, resíduos de matéria orgânica que permitam datá-los através de exames do isótopo carbono-14. Podem ser quase cinco vezes mais antigas que o Brasil, porque é essa a idade das gravuras até agora datadas com métodos científicos na Bahia. Ou ter onze mil anos, como os desenhos semelhantes, encontrados em São Raimundo Nonato, no Piauí, onde a Fundação do Homem Americano, da arqueóloga Niède Guidon, vela pelos sítios arqueológicos no Parque Nacional da Serra da Capivara.
Nas pinturas figurativas, sem qualquer apelo à imaginação, dá para reconhecer cocares, emas, capivaras, antas e cervos. Elas provam que seus autores conviveram com uma fauna hoje rara, senão extinta no sertão. O desmatamento do agreste e da caatinga conseguiu esmaecer, “numa geração”, pigmentos de hematita, carvão e argila branca, que à sombra de florestas mais densas duraram milênios, quase sem desbotar. O sol descora seus traços. O vento, bombardeando as rochas cada vez mais expostas à poeira do descampado, está recobrindo os desenhos com uma pátina em tons de terra.
Etchevarne encontrou pelo caminho desenhos pichados e pedras arrancadas, descompondo mosaicos. Em compensação, na Chapada Diamantina, pequenas prefeituras encararam seus cursos sobre a conservação dos sítios arqueológicos como cruzadas cívicas, em parte porque estão de olho em usá-los para atrair turistas. Por isso mesmo, ele fez questão de incluir no livro “quatro ou cinco linhas” sobre cada lugar que lhe recomendaram, mesmo os que não visitou. Valorizá- los é uma maneira de ensinar que eles merecem respeito. E o projeto abrirá ao público um banco de dados sobre arte rupestre no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal da Bahia.
Tudo obra de um argentino de Rosário que, depois de uma temporada como professor assistente na Universidade Católica de Salvador, voltou ao Brasil “meio por acaso”. Etchevarne desembarcou na Bahia, em 1986, vindo de Roma, onde trabalhava no Instituto San Michele di Restauro, porque foi convidado para preencher uma vaga num grupo da universidade que ia pesquisar os cafundós do São Francisco. “Saí de Roma e vim parar em Rodelas”, ele conta. “Dei muita sorte.”