Um elenco de presos que vira o cárcere pelo avesso e festivais de alta cozinha servidos no verão por seus internos tornaram a casa de reclusão de Volterra o que há de mais italiano em matéria de segurança máxima numa penitenciária medieval FOTO: STEFANO VAJA_2002
Xilindró alla Volterrana
A vida e a obra de um condenado à prisão perpétua numa cidade medieval do século XV
Marcos Sá Corrêa | Edição 14, Novembro 2007
Às nove e meia, hora do café da manhã do Hotel Nazionale em que apita sem parar a máquina de espresso, no outro lado da rua, o maître Gianni Tatti abre a Enoteca Del Duca para o almoço. Os clientes só começarão a chegar depois do meio-dia. Mas o maître leva tempo para arrumar as mesas com toalhas adamascadas, porcelana Richard Ginori, taças de cristal e estatuetas de bronze. Ele trabalha sob os arcos medievais de um edifício em panchino, a pedra amarelada que dá uma aparência uniforme aos prédios de Volterra, juntando pela cor o que a arquitetura tentou separar através dos séculos. A fachada renascentista funde o restaurante ao Inghirami, um palácio que já dava sinais de fartura na época em que os volterranos chamavam a elite de popolo grasso, o povo gordo. Lá se vão mais de 500 anos desde que o comerciante Paolo d’Antonio Inghirami foi lançado de uma janela, por ganhar demais com a concessão das minas de alume – minério que era usado na tintura de tecidos –, ao pé da cidade. Mas, como nesse lado da Itália o passado nunca é literalmente aquilo que passou, uma placa no palácio informa que ele está em reforma, sob a supervisão do arquiteto e proprietário Piero Inghirami.
Promovido no ano passado à nota mais alta da Guida dei ristoranti d’Italia na província de Pisa, o Del Duca exige que Gianni Tatti se desdobre entre as mesas do salão, que era a cavalariça, a adega, que fica no estábulo, atualmente decorado com “indispensáveis teiazinhas de aranha”, e o bar, onde ele improvisa lugares para quem aparece à última hora, sem avisar. No verão, contando as mesas ao ar livre no jardim dos fundos, o restaurante oferece sessenta lugares.
Sobre solas de borracha, Tatti desliza nesse labirinto como se estivesse em todos os cantos ao mesmo tempo. Anota as reservas. Recolhe os pedidos dos fregueses que perdem o pé na lista das 600 opções de vinhos italianos. Chama à terra os cinghiali, colombaci, chianina e outros bichos quase mitológicos do cardápio toscano, tratando-os por diminutivos, como se os “javalizinhos”, “pombinhos” e “boizinhos do Chiana” povoassem os pratos como bichos de estimação.
Seu dia é longo. Às quatro da tarde, quando ele fecha a última conta do almoço, está na hora de tomar as providências para o jantar, que vai das sete e meia, pelo fuso dos turistas americanos, até depois da meia-noite, quando dá o expediente por encerrado. Mas o maître do Del Duca se sente “em uma forma soberba”. Trabalha de jeans pretos e camisa branca como se trajasse smoking. Aposta que, se pintasse os cabelos grisalhos, ninguém lhe daria seus 50 anos.
Passa da uma da madrugada quando Tatti volta a pé para casa, atravessando de um lado a outro a cidade vazia. A Enoteca Del Duca está na rua do Castelo, número 2. Ele mora na outra ponta, pelo caminho que costeia a metrópole etrusca, no parque onde as fundações de Volterra afundam em 2 300 anos de história, e marcam presença as muralhas da Fortezza Medicea, obra de Lorenzo, o Magnífico, que em 1472 pôs os volterranos, de uma vez por todas, à sombra de Florença. As ameias e os merlões criaram vínculos tão sólidos que, sessenta anos depois, quando Florença baniu os Medici, Volterra continuou leal à família.
No fim da rua, Gianni atravessa a cinta murada, que conserva a cidade de 12 mil habitantes no molde de um burgo medieval, toca a campainha de um portão de ferro indevassável e retoma, cerimoniosamente, sua rotina de presidiário. Quinze anos atrás, ele foi condenado, em Milão, à prisão perpétua, acusado de cinco homicídios, tráfico de drogas e contrabando de automóveis roubados.
Prisão perpétua, em italiano, soa pelo sotaque etimológico à masmorra e a trabalhos forçados. Chama-se ergastolo (esgástulo, em português). Na prática, significa no mínimo 26 anos de reclusão, antes da liberdade condicional. Em compensação, o lugar onde estão os ergastoli de Volterra consta dos guias turísticos com o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, que a Unesco deu à cidade. A Fortezza Medicea está em melhor estado do que o prédio do Ministério da Educação, no Rio de Janeiro, de Le Corbusier, o francês que inaugurou, em 1936, o modernismo arquitetônico brasileiro. A Fortaleza dos Medici é um monumento histórico que hospeda 160 homicidas e chefes da Máfia, em suas encarnações regionais – da Camorra à ‘Ndragheta e à Sacra Coroa Unida – varridos pela febre purgativa da Operação Mãos Limpas, que sacudiu a Itália no fim dos anos 80.
De longe, espremidos numa crista com 550 metros de altura sobre as mansas colinas da Toscana, Volterra e a sua fortaleza-cárcere parecem uma coisa só, misturando os baluartes militares com o campanário da catedral de Santa Maria Assunta e as torres civis da praça dos Priores, cujo conselho municipal se reúne na mesma sala há mais de 700 anos. De perto, elas se separam por um fosso estreito ao longo da rua do Castelo, com placas no gramado avisando aos transeuntes que aquilo é uma prisão. Cartazes no gramado anunciam a presença de guardas armados, proíbem fotografias e demarcam a state prison, para que os turistas não se façam de desentendidos.
A Fortaleza também é a sede das Cene Galeotte, jantares beneficentes que os presos – ou “galés” – preparam na cozinha industrial do presídio e servem numa capela desconsagrada no interior das muralhas. Não se brinca com comida numa cidade em cujo pedestal mais alto repousa um javali de pedra conhecido como Il Porcellino – O Porquinho.
Este ano, de março a junho, houve quatro jantares na cadeia. Ao todo, passaram pelos portões 400 comensais. Eles tiveram de reservar os lugares com antecedência mínima de dez dias, pelo telefone 055.234-2777. Deixaram com o ministério da Justiça – que, por sinal, na Itália se chama ministério da Graça e Justiça – uma cópia de seus passaportes ou carteiras de identidade. Passaram, no ingresso, por detectores de metais. Entregaram os telefones celulares na portaria. Entre guardas armados, comeram com talheres de plástico em pratos descartáveis.
Foram banquetes para poucos. Mas, na noite de 22 de junho passado, no gran finale da temporada, com 120 lugares iluminados por tochas no pátio da torre, puseram-se à mesa repórteres com apetite aguçado, vinculados à Stampa Estera, a organização dos correspondentes estrangeiros de Roma. E a fama das Cene Galeotte correu mundo. O jornal inglês Daily Telegraph publicou que “os fregueses acorrem em bando ao que talvez se possa chamar o mais exclusivo restaurante na Itália”, porque “os cozinheiros e os garçons são mafiosos, ladrões e assassinos”.
No noticiário internacional da rádio BBC, uma reportagem de Christian Fraser sobre o “insólito restaurante” pôs no ar, entre o tilintar das panelas e a música de um piano dedilhado pelo ergastolo Bruno, uma entrevista com o garçom Gaetano La Rosa, declarando que era sua “noite de liberdade”. Nos Estados Unidos, a rede ABC News mostrou a festa aos 5,4 milhões de espectadores do programa Good Morning, America. Na Alemanha, quatro emissoras de televisão e a revista Der Spiegel inspiraram o cárcere de Kaisheim, que funciona numa abadia do século XII, a imitar na Bavária a receita italiana.
Depois de tamanha publicidade, a jurista Maria Grazia Giampiccolo não pára de explicar que as Cene Geleotte não foram bem assim, ao mesmo tempo que promete para o ano que vem levar à Fortezza Medicea os melhores cozinheiros da Itália. Ela dirige a Casa de Reclusão de Volterra de cabelo solto, vestido vermelho e xale preto, num gabinete cuja porta deixa aberta. Toma café, durante o expediente, em copos de plástico. Pede licença antes de acender o cigarro. Os assessores entram na sala sem pedir licença.
Maria Grazia Giampiccolo insiste, para começo de conversa, que os mafiosos não puseram a mão na massa. Continuam isolados, para não recair na teia do crime organizado. Os 120 internos que participaram da temporada deste ano são criminosos comuns, mesmo tendo cometido delitos graves. Todos têm bom comportamento. Cumpriram dez anos da pena antes de chegar ao regime semi-aberto. Os jornalistas os trataram como mafiosos, segundo Maria Grazia, “porque devem achar os chefões mais interessantes”. Ela não se ilude: “As pessoas vieram aqui para viver uma experiência”. Mas garante que a comida, em si, valeu a pena.
Antes que ela abrisse as grades para os jantares, seus cozinheiros e garçons tiveram de aprender o bê-á-bá do ofício. Tomaram aulas de “gastronomia e degustação”. Napolitanos, sardos e calabreses conheceram, durante o curso, sabores tradicionais de Nápoles, da Sardenha ou da Calábria que ignoravam ou tinham esquecido. Enólogos da Federação dos Sommeliers ensinaram-lhes a provar vinhos, antes de entender os truques de combiná-los com os pratos. Professores da Fundação Slow Food para a Biodiversidade deram-lhes lições de cozinha, conforme seus preceitos “gastronômicos e ecológicos” de resistência “à vaca louca, aos aromas sintéticos, aos colorantes artificiais e aos agrotóxicos”. Há 196 “presídios Slow Food” na Itália, fazendo, com a calma de quem tem muito tempo a perder, produtos artesanais ameaçados pela industrialização do campo, como o queijo do tipo robiola di Roccaverano e o pão preto de Castelvetrano.
Disposta a “abrir cada vez mais à cidade a Fortezza Medicea“, a diretora investiu no programa de treinamento, apostando que “a haute cuisine é um atalho para a ressocialização”. Mas garante que a idéia não foi sua. É “uma determinação legal, explicitamente recomendada pelo Ordenamento Carcerário”, uma lei de 1975, que define o trabalho como “instrumento fundamental” de recuperação dos detentos. Seus 91 artigos estabelecem mais direitos do que normas disciplinares. A lei tem dispositivos que não teriam sido muito diferentes, caso fossem escritos por uma comissão de presidiários. Obriga os carcereiros a tratá-los “pelos próprios nomes”. Seus cabelos só podem ser cortados compulsoriamente “por motivos excepcionais”, de higiene ou saúde. Garante o acesso dos detentos a “atividades culturais”. Reserva-lhes três quintos do que ganharem com trabalhos voluntários. Assegura-lhes o diploma de ensino médio. Torna o lazer obrigatório nas penitenciárias. E, a partir dos dez anos de reclusão, faculta o “trabalho externo” aos condenados.
O presídio de Volterra, diz a diretora, não precisou desafiar o regulamento para ser “um terreno de experimentação, em constante movimento”. Só vai mais depressa porque funciona “num lugar belíssimo”. Ela não poupa o superlativo. A alfaiataria da Fortezza Medicea é “belíssima”. Seus cursos de geometria para técnicos em construção civil, “belíssimos”. Pode falar isso com todas as letras por não ser da cidade, nem da Toscana. A juíza chegou a Volterra há quatro anos. É de Aosta, no norte da Itália, onde dirigiu uma casa de reclusão num vale no sopé do Monte Branco. E assumiu, nas novas funções, uma penitenciária com espaço de sobra nas celas individuais e 22 anos de convivência pacífica com o napolitano Armando Punzo, que criou o Laboratório Teatral do Cárcere de Volterra.
Armando Punzo comanda uma rebelião anual no presídio, com “realismo cru” e “surrealismo furioso”. Já encenou no pavilhão interno Marat-Sade, de Peter Weiss, Os Negros, de Jean Genet, The Brig [A Prisão], de Kenneth Brown, Insultos ao Público, do austríaco Peter Handke, e outros grossos calibres do teatro de vanguarda. Em sua versão para a Ópera dos Três Vinténs, de Bertolt Brecht, um preso, no papel de prostituta, ameaçava a platéia por cinco minutos com uma pistola na mão. Em Pinocchio, Lo Spettacolo della Ragione Prima [Pinóquio, o Espetáculo da Razão], que estreou no festival deste ano, é o boneco falante que se transforma em toco de madeira. Não mede argumentos para fazer o espectador “confrontar-se com seu próprio lado escuro e superar a negação da diversidade”. Em outras palavras, perder a noção de quem está do lado de lá das barras.
O laboratório de dramaturgia pegou. Há sete anos, deu origem ao Centro Nacional Teatro e Cárcere, no ministério da Graça e Justiça. Desde o verão de 2005, sua trupe de presidiários se apresenta na praça de Volterra, excursiona por cidades da Itália e viaja entre as capitais européias. Sem defecções. Punzo alega que os atores se ligam tanto ao elenco que não querem deixá-lo mesmo depois de cumprir a sentença.
No escritório de turismo da cidade, onde a equipe ainda não tem muito o que dizer sobre as Cene Galeotte, o guia Lorenzo di Luccido se declara um fã do teatro de Punzo. “No começo, as pessoas ficam impressionadas com o fato de estarem numa prisão, passarem pela revista, sentarem entre guardas. Mas, na hora em que a peça começa, isso tudo fica em segundo plano.” E, como resume a diretora, “o fato é que, durante os festivais de teatro, a belíssima Fortezza se abre ao público, e mil pessoas passam por seus portões”.
Seus jantares pegaram a trilha aberta pelo teatrólogo. No ano passado, ela organizou oito noites “temáticas” na capela, sob arcos de 18 metros de altura. A 25 euros por pessoa, com o vinho incluído, ofereceu aos clientes cinco pratos de receitas napolitanas, sardas, sicilianas ou árabes, escolhidas para harmonizar a comida com os dezoito detentos napolitanos, sardos, sicilianos e imigrantes do norte da África que as serviram. A maioria vinha da trupe de Punzo, como o cozinheiro Massimo Izzo e o maître Gianni Tatti.
Este ano, a procura aumentou. Vieram reservas de longe, sobretudo de alemães. A série começou em março, com um menu só de carne de caça. E terminou, em 22 de junho, com uma noite de carnes. A Unicoop de Florença, centenária cooperativa de supermercados, além de fornecer os ingredientes, conectou as Cene Galeotte à sua campanha de adoção à distância. O programa se chama Il Cuore Si Scioglie – ou seja, o coração se desmancha – e deu aos presos uma chance “extraordinária” de debutar como doadores, em vez de só receberem assistência social. A adoção de uma criança, filha dos presidiários, em países como Índia, Filipinas, República dos Camarões, Peru ou Brasil, custa 31 euros ao mês.
Com a conversão dos jantares à benemerência, numa das mesas da fortaleza, foi parar o padre Ferdinando Caprini, um italiano de Verona que vive há 22 anos no Brasil. Ele dirige, em Salvador, o Capdever Mutumbá Motumbaxé, Centro Afro de Promoção e Defesa da Vida, que cuida de 230 crianças. Estava em Florença levantando recursos para o Projeto Ágata Esmeralda, a organização não-governamental que sustenta a creche. Mas, uma greve de trens tirou da lista em Volterra, em cima da hora, uma convidada que cuida de filhos de presidiários na Bahia. Caprini, que estava mais perto, compareceu no lugar dela.
Era a noite de encerramento. O padre Caprini chegou a tempo de se espantar com a “correria frenética” dos presos, pondo as mesas de toalhas vermelhas. Pareceu-lhe evidente que os garçons “estavam dando tudo para mostrar que aquilo não era uma brincadeira”. Considerou a refeição “altamente qualificada”. Impressionou-se quando, “no meio do jantar, um vento frio desceu da torre e um guarda tirou o dólmã e emprestou-o a um preso, que tiritava debaixo do avental”.
Caprini distribuiu fitas do Senhor do Bonfim e “todos pediram mais de uma, dizendo que era para os filhos, para a mulher ou para a namorada, sinal de que os presos conservam seus vínculos afetivos”. Integrante da Pastoral Carcerária, o padre conhece por dentro o sistema penitenciário brasileiro. Sabe que, na Itália, pelo menos no papel, a situação é melhor. Mas concluiu que “Volterra é prova definitiva de que tratar detento como gente dá resultado”.
Toda essa operação, a diretora Maria Grazia controla de uma sala escura. Com persianas fechadas, janelas estreitas e paredes grossas, a manhã ensolarada de outono mal consegue iluminar a auréola dourada de uma Madona do século XV, à sua frente. Custa-se a reconhecer a pilha de bolas de pedra que municiavam os canhões e agora decoram um canto do gabinete. Mas, brilha na penumbra, a tela do computador, onde flutuam ilhas tropicais no azul do cristal líquido.
“Ainda tem tempo? Se tiver, vou convidá-lo a um passeio belíssimo”, ela propõe, no fim da conversa. Serve então de guia a um passeio pelo caminho de ronda, no alto das muralhas. Das seteiras, em dias claros, avista-se desde os terraços com gerânios, colados nos paredões externos da fortaleza, até a Córsega, no mar Tirreno. Ela refaz os 800 metros de percurso panorâmico, no palanque de pedra, sempre que lhe aparece um pretexto. “É que ainda não me cansei desta paisagem”, admite.
Não fossem as guaritas de vidro à prova de bala, os portões cinzentos acionados por controle remoto e as tubulações hidráulicas cravadas na parede como imensos grampos de ferro, Lorenzo de Medici certamente reconheceria a sua fortaleza. Ela sempre serviu de prisão. Passou quase incólume por sete séculos de uso militar. E Volterra é perita em desviar os golpes baixos que a história lhe desfere. Sua porta do Arco, nos muros medievais, ainda é a mesma deixada pelos etruscos, com as três carrancas que os ventos do Tirreno, soprando do mar, arredondaram como seixos de rio, apagando-lhes as feições. Estão ali porque, em junho de 1944, quando os alemães em retirada ameaçaram dinamitá-la, os volterranos fizeram um acordo com o comando nazista e, em 24 horas, entupiram a passagem com o calçamento da rua. Nove dias depois, entraram os americanos. O comitê de cidadãos recepcionou-os com a festa da liberação.
Tirando o carabiniere que escolta a caminhada com a metralhadora a tiracolo, nada no passeio lembra uma prisão. Ao pé da torre principal, dez vira-latas tomam banho de sol. Maria Grazia recolheu-os da rua. Tufos de margaridas brotam do solo esburacado. Ela esclarece que, cinco anos atrás, uma reforma desencavou por acaso ruínas etruscas e uma parte da prisão é sítio arqueológico.
Como a anfitriã não pára de apontar em todas as direções, é preciso olhar o tempo todo para os lados. Para fora, mostra as casas rurais no alto das colinas, assinaladas por ciprestes que parecem pontos de exclamação. No horizonte, a floresta de Berignone, reduto de javalis e trufas negras. Abaixo, a fumaça que brota do chão em Lardarello, com o bafo vulcânico das minas de bórax movendo usinas termelétricas. Na parede de dentro, centenas de nomes, riscados a ponta de pedra como memorial dos detentos que passaram por lá através dos séculos. Os grafites, delimitados pelos retângulos dos tijolos maciços, formam um mosaico da história carcerária que a diretora, como não poderia deixar de ser, considera “belíssimo”.
“Está vendo por que a Fortezza Medicea não isola?”, ela pergunta, no fim do percurso. Volterra tem teatro romano, um centro urbano onde os carros seguem os passos dos pedestres nas ruas de pedras enceradas pelo tempo. Em outro lugar, valeriam a viagem a Anunciação de Luca Signorelli, na Pinacoteca e Museu Cívico do Palácio Minucci Solaini, e Sombra da Tarde, o adolescente de bronze do Museu Etrusco. Mas continua recatada dentro de seus muros. À sua volta, num raio de 50 quilômetros, ficam Siena, Pisa, Lucca, San Giminiano, Montalcino, nomes que vêm primeiro à cabeça quando o resto do mundo pensa naquele lado da Toscana.
Volterra está num desvio do turismo internacional. Seu Museo della Tortura exibe, defronte aos restaurantes da praça XX de Setembro, uma ampla coleção das máquinas que a engenharia penitenciária inventou para punir, arrancar confissões, esmagar dedos, desconjuntar esqueletos, decepar cabeças e extrair vísceras. Em seus restaurantes, os menus nem sempre têm versões em outras línguas. A livraria Lorien, a dois passos da praça dos Priores, só vende guias da cidade em italiano. “Eu não leio bem inglês”, explica a proprietária. “Os volterranos”, como diz Maria Grazia Giampiccolo, “resolveram não morar em Turistópolis.”
Mas seu pecorino é a prova de que, por baixo das tradições, também há mudanças. Trata-se de um queijo, originalmente sardo, feito com leite de ovelha, na consistência do parmesão. Tornou-se toscano em Volterra. Há quem o credite às famílias de presos, que vieram da Sardenha para perto da Fortezza Medicea. Na loja Sapori di Toscana, a vendedora confirma que não há mistério: “Basta andar por aí para ver que, em torno da cidade, as colinas estão cheias de sardos”.
“Realmente, as famílias acabam se mudando para cá por causa dos parentes”, admite a diretora do presídio. “Mas nunca ouvi essa história de que o pecorino existe por nossa causa.” Três de seus internos trabalham, há quatro anos, na Fattoria Lischetto, a 20 quilômetros da prisão. “Um napolitano, um siciliano e um calabrês”, diz Giovanni Canna, filho do fundador da Lischetto. “Sardo aqui sou eu.” E sua irmã Rositta completa: “Tem muito sardo aqui simplesmente porque a Sardenha fica perto. Desembarcando da balsa, em Livorno, são 30 quilômetros de viagem”.
Dez anos atrás, Giovanni Canna remodelou a Fattoria Lischetto, aderindo à agricultura orgânica, ao movimento Slow Food e ao agroturismo. Os hóspedes estacionam os carros junto a um galpão abarrotado de feno, sobem beirando a cerca do chiqueiro em que os porcos andam soltos e são recepcionados, do outro lado, pelo casarão com piscina, sobre os campos onde pastam 900 ovelhas. Além dos queijos, a fazenda faz salames, mel e até sabonetes de verbena, tudo sob o lema “orgânico por amor”. Os turistas vêm em grupos, de ônibus, para almoçar.
Para justificar a contratação de deten-tos, Giovanni Canna apanha na estante Equal. Ingresso al Lavoro, de Enrico Genovesi. O livro é uma amostra das histórias de presos, drogados, imigrantes ilegais, prostitutas e deficientes físicos que pegaram com atraso o último vagão da prosperidade européia. A capa é uma fotografia, em branco e preto, de um homem com brinco de argola na orelha e a fisionomia desfocada por um véu de plástico. “Este é Franco, passando pela cortina da nossa fábrica de laticínios”, diz Canna. Franco é napolitano, condenado por homicídio. “Demos a ele a chance de ver que existe outra vida, em que talvez tenha menos lucros, mas pelo menos pode ficar um pouco mais tranqüilo.” Os fiscais passam pela Fattoria Lischetto, de vez em quando, para controlar a presença dos presidiários no local de trabalho. “Mas o responsável pela disciplina aqui sou eu mesmo”, arremata Canna.
No ano passado, depois de encerrada a primeira temporada das Cene Geleotte, dois presos se empregaram em restaurantes de Volterra. “Mimmo, por ser napolitano, virou pizzaiolo“, informa a diretora da penitenciária. Ele trabalha sete dias por semana até dez e meia da noite, no Bar Inghirami, que, apesar do nome ilustre, é um endereço modesto da rua Riciarelli. Ele faz pizzas com um boné vermelho na cabeça, conversando por cima do balcão, em dialeto, com a freguesia napolitana, enquanto controla o forno a lenha.
O outro contratado foi Gianni Tatti. No ano passado, ele aproveitou três dias de licença, acumulados com a participação nos programas de trabalho voluntário, para fazer quatro entrevistas de emprego. Optou pelo Del Duca. “Mas não adianta procurá-lo hoje no restaurante”, Maria Grazia adverte. Por questões disciplinares? “Não, hoje é terça-feira, o restaurante fecha.” Na quarta-feira, Tatti se espanta ao saber que fora recomendado pela dottoressa Giampiccolo. Em seguida, relaxa: “Ah! A Maria Grazia!” Com a correria do almoço, parece que esquecera do assunto. Mas, ao trazer a conta, retoma a conversa: “Por que não volta amanhã? Assim a dottoressa Giampiccolo vai ter certeza de que comeu bem”. No dia seguinte, Tatti estava mais falante. Tirou na prisão suas dúvidas. “Não dou um passo sem consultar a Maria Grazia”, ele avisa. Promete reservar “uma meia horinha” para contar sua história, porque anda muito ocupado: “Parece que, ultimamente, todo mundo se apaixonou por mim”. E conversa pela tarde adentro.
Gianni Tatti era dono de quinze restaurantes, em Milão, quando Baykal Kenan, um correio do narcotráfico, inaugurou na Itália, com um depoimento ao procurador Alberto Nobili, a era dos pentiti – os “arrependidos” –, que fizeram a festa do Ministério Público, contando o que sabiam sobre o crime organizado. Em três anos, trinta investigações arrebanharam 1 800 acusados nas franjas da Máfia siciliana, da Camorra napolitana, da ‘Ndrangheta calabresa e da Sacra Coroa Unida, de Bari. Os promotores aprenderam a batizar suas investigações com verve de marqueteiros, ajudando os jornalistas a distinguir, no emaranhado de escândalos cruzados, a Operação Piña Colada da Operação Wall Street. Só a confissão de Saverio Morabito, tido como o príncipe dos pentiti, encheu 1 200 páginas. E só o procurador Giuseppe Nicolosi pediu penas que totalizavam 700 anos.
Milão estava no auge das Mãos Limpas, quando morreu, em 1992, o pizzaiolo Virgilio Famularo, do restaurante Calafuria. Os promotores suspeitaram de queima de arquivo, por ordem da Sacra Coroa Unida, que estava sob intensa devassa. E o sócio do Calafuria era, justamente, Gianni Tatti. “Passei dez dias nas primeiras páginas dos jornais”, ele lembra. E perdeu os restaurantes que empregavam oitenta funcionários e eram freqüentados pela “gente bonita de Milão” – o costureiro Valentino, a estrela de circo Moira Orfei e o político Alcide De Gasperi. “Vim parar na prisão sem fazer nada, porque meu sucesso dava inveja a muita gente”, ele repete até hoje, com a mesma voz animada com que pronuncia um et voilà! cada vez que bota um prato fumegante diante do freguês.
Testar a honestidade de Gianni Tatti é perda de tempo. A carta de vinhos do Del Duca oferece chiantis de 380 euros a garrafa. Se a escolha fica por sua conta, Tatti traz um Isole e Olena, safra 2005, de 28 euros. Num restaurante cujos donos se apresentam como Genuino Del Duca e Ivana Delli Compagni, ele dita o nome completo como se soletrasse um telegrama: “Giovanni Tatti – Torino, Ancona, Torino, Torino, Imola”. Na parede do salão há um retrato em bico de pena, com uma pesada moldura dourada. De quem? “O patrão diz que é o avô, mas é ele mesmo”, responde.
Em maio de 2003, Gianni obteve a transferência para Volterra, “vinte dias depois da Maria Grazia chegar”. Para chegar à fortaleza, ele gramou mais de dez anos “no inferno” da penitenciária de San Vittore, um depósito de dois mil presidiários, onde os guardas não trocavam uma palavra com os internos e os magistrados não davam conta dos 450 internos que, pelo artigo 21 do Ordenamento Carcerário, tinham passado do tempo para obter o regime semi-aberto. “Lá dentro, vi muita droga, muito jogo, os agentes bebiam em serviço”, ele recorda, como se falasse de uma notícia lida nos jornais.
“Sempre punham na minha cela os presos famosos”, ele conta. Conheceu assim o empresário Gabriele Cagliari, ex-presidente da ENI, a estatal do petróleo italiano, que se matou no cárcere com um saco de plástico na cabeça. Mas, como estava “determinado a viver”, mesmo em San Vittore “consegui me dar bem”. Ao sair, mandava à família, todos os meses, 1 200 euros, todo o dinheiro que ganhava trabalhando na cooperativa dos presidiários. Foi o primeiro preso da Itália a produzir um boletim para a RAI, a empresa estatal de rádio e televisão.
Assim que cumpriu os dez anos de pena, não parou de “mandar cartas à magistratura”, pedindo para sair de Milão. Passou um mês no presídio da ilha de Elba, “um verdadeiro hospício”. Agüentou um mês na penitenciária de Massa Marítima, “outro manicômio”. De Volterra não tem queixas. Em seu primeiro Natal na Fortezza Medicea, descobriu que a diretora visitava as celas antes da ceia. Os agentes carcerários “dão bom-dia e boa-noite”. Os carabinieri não bebem. E “Maria Grazia é uma santa, que pune e perdoa”. Em suma, ele diz, “o cárcere nem parece cárcere”.
Há cerca de sete mil presos na Itália, em semiliberdade. Todos supostamente empregados. Os contratos para trabalhar dependem do empregador, que, com os presos, tem abatimentos de até 80% nos gastos previdenciários, e do diretor da penitenciária, que aprova a contratação. O preso retira, toda manhã, 10 euros para cobrir seus gastos pessoais. E devolve, no fim do dia, o que sobrou. O valor é orçado pelo que a prisão gastaria para mantê-lo durante o dia. O preso-empregado só deve usar transportes públicos. Está proibido de freqüentar bares ou cafés – nos casos de Tatti e Mimmo, é impraticável -, além de portar cheque e cartões de crédito e débito.
No Del Duca, Gianni Tatti tem a impressão de que o restaurante é meio seu. Genuino e Ivana, os patrões, o tratam como “velho amigo”. Passando a maior parte do tempo trancados na cozinha, eles aparecem menos do que o maître. Há clientes que, antes de sair, tiram fotos ao lado do empregado. Em janeiro, os donos do Del Duca o levaram para espremer azeite em sua fazendola de Marcampo, na costa da Maremma. “Estou em casa”, ele afirma. “Ou melhor, em família.” Na calmaria que precede o jantar, Ivana passa rapidamente pela sala. Tatti corre para abraçá-la. “Estamos fazendo as pazes porque brigamos na hora do almoço”, ele ri, encabulando a patroa.
Tatti foi o primeiro aluno de matemática no liceu onde fez o secundário, na Sardenha. Tirou o diploma de geômetra na Fortezza Medicea, com média 8,56. Fez turnês com a Ópera dos Três Vinténs. E só largou a trupe de Armando Punzo porque não pode deixar o restaurante sem maître.
Como não fuma, gasta pouco com roupas e come no emprego, ou na cadeia, a família de Tatti está prosperando. A mulher – “Giovanna como eu” – toca uma trattoria em Milão com o cunhado. O filho Dario cuida de um bar. A filha Lella é repórter de televisão. A sogra lhe telefona “pelo menos uma vez por dia”. E Giovanna, “que merece uma estátua”, liga durante a entrevista para anunciar que acabara de sair a primeira licença para o marido passar o Natal em Milão.
O luxo de Tatti, quando não está na Fortezza Medicea, são os dois telefones celulares. Nunca decorou os seus números. E, ao fornecê-los “para contato”, na hora da despedida, vai buscar às pressas um papel dobrado, onde as duas fileiras de dez algarismos estão anotadas sobre o texto em xerox. Dá para levar a folha? “Isso não”, ele responde. Tenho que andar sempre com ela no bolso. É meu salvo-conduto. E só então, olhando bem, percebe-se no cabeçalho o timbre, meio amarrotado, do ministério da Graça e da Justiça.