ILUSTRAÇÃO_ ANDRÉS SANDOVAL_2008
O busólogo
Da arte de reconhecer um Volvo pelo ronco do motor
Emiliano Urbim | Edição 17, Fevereiro 2008
São duas horas da tarde de um sábado chuvoso e Adrianno Sakamoto está no terminal Santo André Oeste, na Grande São Paulo, esperando um ônibus. Mais especificamente, o número 290 da viação São Camilo, linha 070 Santo André/Fábrica Trol, chassi Volvo B58 e carroceria Ciferal Megabus – uma espécie rara que precisa ser registrada antes de extinta. Sakamoto, de 24 anos, é um busólogo, um aficionado por ônibus. Para ele, o transporte coletivo também é individual.
Busologia é uma versão brasileira do trainspotting, passatempo inglês que consiste em anotar modelos e horários de trens nas estações. É um hobby trabalhoso, que requer deslocamentos constantes, intimidade com mapas e paciência para tirar fotos, fazer vídeos, gravar som de motor, produzir desenhos e construir maquetes dos veículos.
O processo de “dar identidade” a um ônibus só se completa quando o material coletado é posto em irculação online, para sistemática análise da comunidade busóloga, que conta com mais de 15 mil integrantes no Brasil. Sakamoto é um de seus expoentes. “Quando eu era pequeno, ia cortar o cabelo e pedia para o barbeiro virar a cadeira na direção da rua, só para ver os ônibus passarem. Foi um alívio descobrir a busologia na internet, saber que isso tinha nome e pensar: ‘Tem mais gente que gosta, eu não sou maluco!'”
A espera pelo São Camilo 290, com câmera digital numa mão e guarda-chuva na outra, é o ponto final de uma jornada que teve início quando Sakamoto acordou, às cinco da manhã, a 30 quilômetros dali. Ele mora sozinho em Guarulhos, numa casa modesta sustentada à base da mesada familiar, e dos 350 reais mensais que ganha como técnico em computação. Ainda era noite quando adentrou em São Paulo, em direção ao Jaçanã. De lá, rumou para o Tucuruvi num ônibus da Sambaíba Transportes Urbanos e tomou um lotação do Consórcio Transcooper Fênix até Santana. Depois interceptou um miniônibus com ar-condicionado que o levou à estação da Luz. Dali para São Mateus, na Zona Leste, engatou mais uma hora num Scania K-270 com carroceria Marcopolo. “É um top de linha”, informou, contente.
Sob o sol do meio-dia, chegou à divisa com Mauá, onde tomou o elétrico de piso baixo rumo ao leste de Santo André. O percurso, em zigue zague, foi feito por amor à arte, para que Sakamoto pudesse fotografar mais ônibus. Seguiu-se uma caminhada sobre passarelas e sob viadutos até o terminal Santo André Oeste, onde agora ele abre um sorriso especial: “Olha o Volvo chegando”. Nenhum ônibus à vista. “Reconheço pelo ronco do motor”, declara. Logo surge um ônibus azul e cinza, com o símbolo da Volvo na dianteira.
Naquele sábado, 12 de janeiro, Sakamoto tirou 146 fotos de 94 ônibus diferentes. Em dias de semana o número costuma ser maior, pois há mais veículos na rua. Aproveitando dicas de motoristas, cobradores e amigos, ele monta o itinerário mais propício à descoberta de ônibus raros (de preferência “filhos únicos”, o último de tal modelo em circulação), novos (Sakamoto acompanha a compra e venda de frotas como um corretor acompanha a Bolsa) ou simplesmente curiosos (é um orgulho ter a foto do carro de prefixo 1-1111, por exemplo). Além da câmera digital trazida do Japão e do guarda-chuva, seu kit inclui uma pasta preta para notebook e guia de ruas atualizado.
O álbum de fotos, com 118 imagens que considera lendárias, é fundamental quando ele encontra outros busólogos pelo caminho. Exemplo: Sakamoto passou os dias 29, 30, 31 de dezembro e 2 de janeiro na principal rodoviária de São Paulo, o Terminal Tietê. Foi uma oportunidade única de fotografar
ônibus de empresas do Brasil inteiro, que, como aves migratórias, só aparecem em determinada época do ano. Ao chegar, topou com uma dúzia de caras de câmera na mão. “Todos tiveram a mesma idéia”, conta. Foi um fim de ano inesquecível. “Os funcionários vinham falar com a gente e os motoristas passavam por nós bem devagar, fazendo pose com os ônibus.”
A busologia experimentou um boom nos últimos anos, graças à disseminação das câmeras digitais e ao sistema de passagens que permite fazer várias viagens ao preço de uma só. Seus praticantes, em geral homens, concentram-se nas regiões metropolitanas de São Paulo, Rio e Belo Horizonte. Falam muito em ajoelhamento, eixo direcional e sanfona dupla, mas também em ruas que deixaram de existir, fazendas que se tornaram bairros, regiões inteiras que mudaram de cara. Aprende-se com eles que uma maria-fumaça parava dentro do presídio do Carandiru. Que dezenas de trólebus de Belo Horizonte, depois de anos parados, acabaram vendidos para a cidade argentina de Rosário. Que nos terrenos invadidos da periferia paulistana o primeiro serviço a se organizar é o transporte clandestino. Que tal ônibus foi atacado pelo Comando Vermelho ou pelo PCC. Que uma linha como a Fábrica Trol tem o nome de um lugar que não existe mais. Que nomes como Fontalis e Jova Rural, antes rabiscados a canetinha em cartolinas de perueiros, hoje são letreiros eletrônicos de veículos modernos que rasgam a zona norte paulistana.
Sakamoto gosta de dizer que “ver um corredor de ônibus é ver a história da cidade passar”. Ele consegue distinguir a ação de cada prefeito de São Paulo a partir dos ônibus em circulação. Ainda há bons exemplares na rua do tempo de Luiza Erundina. Quase não houve investimento na gestão Maluf-Pitta. Marta Suplicy fez chegar na periferia da periferia os ônibus oficiais. Quando modelos normalmente sujos de terra passam a circular limpinhos, é sinal de que o asfalto se estendeu ao fim da linha. Mato que vira terreno, que vira estacionamento, que vira posto de gasolina, que vira supermercado, que ganha condomínio, que a favela cerca – o busólogo já viu essa história dezenas de vezes, da janela do ônibus. É a cidade em trânsito.
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