Em 1957, um garoto começou a se destacar no Santos. No ano seguinte, o garoto se chamava Pelé e jogava na seleção, e a seleção. num domingo infinito, era campeã do mundo FOTO: ARQUIVO AGÊNCIA ESTADO
São Vicente e o Santos de Pelé
Ter sido exposto à força e à beleza do futebol da Baixada Santista dos anos 50 e 60, como se ele fosse normal, pode ter provocado danos irreversíveis à minha personalidade
José Miguel Wisnik | Edição 20, Maio 2008
Nasci na Baixada Santista, no litoral paulista, em São Vicente, cidade que compartilha a ilha do mesmo nome com a sua vizinha, a tradicional cidade portuária de Santos, colada a ela como se fossem uma só cidade em duas. Vivi ali até os 18 anos, entre 1948 e 1966. Era um mundo fusional de cidade, praia e mangue, onde o futebol estava em toda parte. Nos terrenos vazios e ruas não pavimentadas, em terrenos alagadiços de lama escura, a molecada esperava a muito custo a digestão do almoço para começar um jogo que terminava sempre na boca da noite, e se estendia por todo o verão de férias. Muitas vezes voltei coberto da cabeça aos pés, sempre descalço e sem camisa, daquela lama – como um camisa dez. Mais tarde, as aulas de educação física do meu ginásio se faziam na praia, e consistiam num jogo de futebol sem trégua, desde as 7 horas até quase o final da manhã, por conivência de um professor interessado em outras atividades, que nos deixava sob as ordens do apito final de um salva-vidas.
Tudo isso tinha correspondência, é claro, com o que se via em volta, no mundo dos adultos. Como tantas cidades pelo Brasil, se não todas, São Vicente era pontuada de campos de futebol expostos à rua, às praças, às várzeas, rodeados de simples cercas baixas de madeira, onde se disputavam, a cada domingo, os campeonatos da “divisão principal” e da “primeira divisão”.
O campo gramado do Itararé (onde tantas batalhas houve) nascia quase diretamente da areia da praia, e o do Beira-Mar, que ficava curiosamente do lado oposto ao mar, era uma praça irregular em que se distinguiam no chão, além das áreas e círculo central apagadiços, trilhas de passantes diários que tinham no campo de futebol o seu caminho, e onde, em trechos mais concentrados de capim, algum cavalo pastava descuidado durante a semana, entre roupas postas a quarar. O Beija-Flor da Vila Margarida desentranhava seu gramado impecável das redondezas do mangue, em meio a um bairro pobre, arriscando-se já, a partir de um modesto esboço de arquibancada, à aventura de um ensaio de iluminação noturna. E o São Vicente Atlético Clube simulava um estádio real cercando o seu gramado, rente e duro, de muros altos e alambrado, além de uma fileira de arquibancadas toscas de madeira escura e crua, com cabeças de prego à mostra, mas ousadamente cobertas.
Some-se ainda o Vidrobrás (time da fábrica em que meu pai trabalhava como chefe do forno), o Corinthians da Vila Cascatinha e o Continental da Vila Melo (relembrado, com um amor e humor dignos de Amarcord, no livro Bombas de Alegria: Meio Século de História do Canhão da Vila, do ponta-esquerda Pepe, que viveu, anos antes que eu, esse universo vicentino, indo daí para o Santos Futebol Clube). Ao lado da pequena estação ferroviária da Santos-Juquiá, o campo baldio do rubro-negro SPR (São Paulo Railway), espremido num entorno mais urbanizado, denunciava ainda, já camuflada pelo tempo, a origem histórica de toda essa onda: a ferrovia inglesa, à margem da qual, num núcleo que incluiu também clubes, fábricas e várzeas, o futebol nasceu no Brasil.
Era o futebol, acima de tudo, que evidenciava São Vicente e Santos como duas cidades diferentes, embora grudadas num continuum urbano no qual o visitante não perceberia falhas, à primeira vista. O futebol vicentino era essencialmente local, com a modéstia e a proximidade animada que lhe correspondem, enquanto o de Santos tinha dimensão estadual, com três times da divisão principal: a Portuguesa Santista, o Jabaquara do torcedor Plínio Marcos, com seu inesquecível uniforme rubro-amarelo e sua incurável condição de time sem estádio, e o Santos Futebol Clube. Este iria ganhar, como todos sabem, exatamente ao longo desses anos, a sua fulgurante dimensão nacional, internacional, mundial e única. O que não diminuía em absolutamente nada, que fique claro, a vibração das tardes impecáveis, ou dos dias dramáticos de gramados lamacentos e empoçados, em que transcorriam turno e returno do campeonato vicentino.
Através do campeonato, os bairros mais remotos e desiguais da cidade se comunicavam, se entremostravam e dividiam campos comuns. Do Catiapoã à Vila Voturuá, da praia ao parque Bitaru, o fim de semana transfigurava o dia-a-dia numa festa de cores e convertia uma população de operários, empregados do comércio, biscateiros e funcionários em seres algo míticos, embora irrecusavelmente terrenos no choque dos corpos com o capotão, eclodindo na potência sonora dos chutes, em meio à lama preta, seu cheiro penetrante como o da grama – tudo a uma distância curtíssima, de tirar o fôlego.
O goleiro Alicate, o meia-esquerda Barbosa e um centroavante baixinho e inexcedível do Vidrobrás, cujo nome não me perdôo ter deixado escapar da memória (Nilson, Nélio, Neizinho?), jogam cada vez melhor na minha lembrança (como diz Chico Buarque sobre os craques do passado). Tudo fazia justiça à frase de Nelson Rodrigues: “A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana.”
Na praia, esse movimento todo de clubes, divisões e campeonatos se deixava derramar numa dimensão atemporal e utópica. As praias de Santos e São Vicente, assim como as que se estendem desde a Praia Grande a Itanhaém e Peruíbe, são planas e de areia dura, ao contrário das areias fofas e movediças do Rio de Janeiro. Quando a maré baixa, elas se oferecem como extasiantes e granuladas mesas de bilhar ao sol, prateadas ao crepúsculo, na beira líquida e firme do vai-e-vem do mar. Ali se jogou, durante tardes infinitas, um futebol sem fronteiras definidas, e onde, aí sim, não se distinguiam mais as duas cidades. Com dois “gols-caixote” de cerca de 1 metro, demarcados com pedaços de madeira ou chinelos, e participantes às vezes inumeráveis, juntados ao acaso, o jogo se estendia interminavelmente, e em geral semi-esquecido do placar, que importava menos do que a condução e a disputa da bola, o festival desperdiçante dos dribles, o descortino inusual dos passes, a brisa e a água do mar espirrando nas divididas pela beirada.
O modo de organização dessa cultura lúdica era simples: quem chegava à praia e se aproximava de um grupo já reunido em torno de uma bola, no momento da formação dos times, entrava no jogo a partir do par-ou-ímpar de dois representantes apontados para escolher os demais. Quem se apresentava para um jogo em andamento, de preferência em dupla, era admitido na forma do um-para-cada-lado, até o limite numérico do generosamente razoável. Esse regime de inclusão espontânea me parecia tão natural como a própria natureza, o mar e o morro.
Ao longo dos anos, sempre que voltava a São Vicente, eu buscava imediatamente o império das tardes na praia, entrando naqueles jogos onde se misturavam livremente classes sociais e faixas etárias, e reconhecendo neles um dos bens preciosos que é possível compartilhar, de modo informal e gratuito, no mundo.
Nos anos 90, se não me engano, fui sentindo uma mudança que a consciência demorou a registrar: tornava-se mais difícil entrar nos jogos. Eles escasseavam. Os grupos já chegavam equipados com camisetas básicas, mas pré-distribuídas, traves e redes instaladas, e um cordão de isolamento com que cercavam e cerceavam o espaço da disputa. Várias vezes zanzei de jogo em jogo pela faixa da praia, azulíssima e calmamente dourada, sob uma temperatura ideal na tarde declinante. (Surgiam agora, aqui e ali, jogos organizados de futebol feminino, disputados com uma fúria inédita por garotas pobres que pareciam reeditar na areia a várzea de outros tempos.)
O futebol de praia, junto com a escola pública e os campeonatos de várzea, formava um campo de contato democrático e informal que ia sendo desativado, demarcado e regulado pelos novos padrões de consumo e por uma reorganização da separação social onde não cabia a mesma permeabilidade. Como acontece na constituição de todas as formas míticas, aquela utopia lúdica me foi dada a ver, com toda a sua evidência, justamente quando ela se mostrava já transitória e passada. A entrada em cena dos padrões de consumo de massa, a relativa conversão de São Vicente em cidade-dormitório de empregados de Santos e Cubatão, seu crescimento demográfico, a especialização do entretenimento das populações pobres que melhoraram de vida nesse período, e sinais esparsos da violência urbana iam se fazendo sentir, indiretamente, naqueles sábados solitários. E a zona despovoada que se estendia do campo do Beira-Mar até os fundos da ilha, próximos dos mangues, braços de mar e a ponte dos Barreiros, tinha se transformado num aglomerado urbano cujo nome não era outro senão México 70.
Estudos sociológicos sobre futebol batem quase sempre na tecla dos conflitos sociais que fazem do jogo a sua maneira de expressão – como se o jogo fosse antes de mais nada um instrumento da necessidade de manifestar os choques sociais, quase que a sua alegoria. Esses conflitos certamente estão e estavam lá, naquela São Vicente. Mas eram menos esquemáticos em si e menos visíveis para um garoto de classe média como eu, imerso nas possibilidades dadas por uma ilha de fantasia que era, ao mesmo tempo, real. Ao sociologismo automático prefiro ainda o meu idealismo ginasiano – porque me foi dado ver ali o substrato autenticamente lúdico do jogo, e a margem de certa gratuidade irredutível que ele guardava. Essa margem vai ficando inverossímil num mundo ostensiva, extensiva e intensivamente capitalizado.
Em 1956, com 7 ou 8 anos de idade, me vi às voltas com a escolha do time a torcer. Para a criança já capturada pelo fascínio do futebol, talvez seja essa a primeira decisão pressentida como um ato que alterará a sua vida inteira. Um rito de passagem oficiado no recesso de um foro íntimo imenso e quase virgem. Às vezes, essa decisão pode vir pronta e dada pela tradição familiar, como numa sociedade tradicional que já filiasse o nativo a um clã. Mas o meu caso, como imagino ser o de muitos, supunha a indecisão entre as alternativas dadas pelos clubes de São Paulo e a eleição, em princípio arbitrária e cruelmente gratuita, de um objeto para “Ideal de Eu” – a conseqüente inclusão forçosa num campo de compartilhamento, no qual passamos a acreditar e ao qual passamos a pertencer como se essa identificação nunca tivesse sido objeto de uma escolha arbitrária.
Depois de um exame das alternativas, a minha dúvida se concentrou em duas possibilidades: o São Paulo Futebol Clube, que era o time do meu pai, e o Santos Futebol Clube, que tinha o atrativo de estar bafejado por uma aura de proximidade e de ter sido, depois de vinte anos sem títulos, campeão no ano de 1955. Era o velho e o novo (o símbolo do São Paulo era, exatamente, um velho de barbas brancas). A época era a da decisão do campeonato de 1956 que, não por acaso, envolvia os dois protagonistas do meu dilema, ritualmente confrontados. Acredito que podemos escolher por imitação direta de um modelo (o time do pai) ou escolher por contra-identificação, já dentro do espírito do jogo, onde a existência do outro “me nega e me afirma ao me negar”. No dia do jogo decisivo, escolhi o Santos Futebol Clube. Dormi ouvindo a partida pelo rádio, no intervalo do meio-tempo, quando o Santos perdia por 2 a 1, e acordei campeão, com uma goleada de 4 a 2, e a foto do meu time estampada numa página inteira de jornal.
Num dia qualquer de 1957, vi numa gazeta esportiva a foto de um garoto que vinha se destacando no Santos. No ano seguinte, esse garoto se chamava Pelé e fazia parte da seleção brasileira, e a seleção brasileira, num domingo infinito que parece a própria final dos tempos, era campeã do mundo. Quando Pelé voltou para a Vila Belmiro – o pequeno estádio do Santos –, já se podia ouvir pelo rádio, no momento em que a bola chegava a ele, um alarido diferente na platéia, um clamor excitado e ansioso, uma marca de sagração.
Um acontecimento dessa potência nunca se dá sozinho, não só porque um time de futebol tem onze jogadores, mas porque um poder de imantação parece arrastar, por acaso e necessidade, o que está à sua volta. Pelé estava ao lado de craques: do volante Zito, do centroavante Pagão, do ponta-esquerda vicentino Pepe (que se reivindica, com razão, o maior artilheiro da história do Santos, contando com o fato de que “Pelé não conta”). A eles se somaram o centroavante Coutinho (cujas tabelinhas com Pelé faziam dele um alter ego, uma soma e um plus, como se não bastasse, e deles uma dupla de heróis geminados, à maneira de certas narrativas míticas), Calvet, Dorval e Mengalvio, vindos do futebol gaúcho, e ainda o goleiro Gilmar, o central Mauro, além de Lima, o “coringa”. Garantiu-se uma sobrevida desse período de glórias com a vinda do lateral direito Carlos Alberto, com as substituições posteriores de Laércio por Gilmar e deste por Cejas, de Mauro por Ramos Delgado, de Calvet por Orlando, de Pepe por Edu, de Zito por Clodoaldo, de Coutinho por Toninho Guerreiro, de Dorval por Manoel Maria.
Como é sabido, o Santos ganhou – no período de 1956 a 1969, que coincide, na maior parte, com a minha “vida útil” de torcedor na Baixada Santista – os campeonatos paulista (58-60-61-62-64-65-67-68-69), brasileiro (61-62-63-64-65-66), Rio-São Paulo (59-63-64-66), sul-americano (62-63) e mundial (62-63), ao mesmo tempo que excursionava por todos os quadrantes. Eu e a torcida do Santos dessa fase somos uma espécie de avesso de Nick Hornby, o romancista inglês que escreveu, em Febre de Bola, a sua autobiografia de torcedor do Arsenal num período em que o time não ganhava de ninguém. A situação se invertia em toda linha: meu pai virou santista, como quase todos os são-paulinos nessa época de exceção, e nos associou ao clube, com direito a duas cadeiras cativas (o São Paulo construía o Estádio do Morumbi e enfraqueceu o time; o Santos era irresistível mesmo para as torcidas adversárias). A pequena Vila Belmiro, com sua calma e arejada atmosfera de província, que passei a freqüentar quase semanalmente, continha uma parte considerável da expressão máxima que o futebol já conheceu em qualquer tempo (como se pode dizer de maneira insuspeita, nesse caso raríssimo, sem medo de estar cometendo um ato de prepotência).
O que se passou ali tem pouco registro em vídeo. Pelé é um ser de transição entre o futebol do rádio e o da televisão, cujos teipes contribuíram para torná-lo o símbolo de alcance planetário que ele é. Mas, no que se tem para ver, falta a massa do dia-a-dia do futebol da Vila. Ali, aconteceu de tudo o que se pode e o que não se pode imaginar em matéria de criação futebolística. Como um fabuloso time que pôde jogar junto muito tempo, o que não acontece mais, a combinação dos talentos e da genialidade se decantou e quintessenciou fantasticamente. Um ou outro jogador mais limitado, como os laterais Dalmo ou Geraldino, resplandeciam como craques no corpo daquele time, induzidos por um ritmo de jogo que tanto podia arrebentar em onda branca quanto passear pelo campo como um tapete de espuma suave e implacável. A alvura do uniforme, por sinal, sem a poluição da logomarca do patrocinador, que não existia, em contraste com as peles negras de sua linha atacante (descontado Pepe, a ovelha branca), e só se deixando marcar pelo distintivo alvinegro no coração, era um ícone e um ideograma de alguma fórmula alquímica que tivesse sido alcançada ali.
Entre os gols dessa época que se perderam da memória coletiva, escolho um que não é de Pelé, mas de Coutinho, e não aconteceu na Vila Belmiro, mas no Maracanã, numa noite de 1962, na primeira partida da decisão do Mundial Interclubes, entre Santos e Benfica. A bola foi lançada pelo alto, vinda da intermediária pelo lado direito, caindo sobre o bico esquerdo da pequena área, onde estava Coutinho. Ele matou de efeito, sem deixá-la cair no chão, aproveitando tanto o impulso natural da bola quanto o seu desenho em curva para dar um chapéu de fora para dentro num primeiro zagueiro, e, em seguida, um outro chapéu simétrico num segundo zagueiro, antes de concluir, sem que a bola tocasse o chão.
Vi esse gol, de uma perfeição rara, uma única vez – é de antes da existência do replay. A televisão em preto-e-branco dobrava hipnoticamente o branco do uniforme alvinegro, redobrado ainda pelo contraponto visual da pele negra com a bola branca (que só se usava, então, para jogos noturnos). Tudo num flash – àquela época espocavam flashes, confundidos na luz da tela e na da memória com o próprio gol fulminante em tempo-espaço mínimo. Mais do que produzir o efeito de “uma pintura”, ele me lembra aquela técnica de desenho japonês em preto-e-branco, o sumiê, em que o artista arremata a obra com uma única pincelada. Não conheço ninguém mais que se lembre desse gol. Um colega de ginásio me disse na época que o tinha visto no cinema, mas nunca o reencontrei nas raras e extasiantes retrospectivas do Canal 100. O filme Pelé Eterno não o mostra, reduzindo-o literalmente a uma mutiladora fração de segundo. Li num jornal, dois dias depois do jogo, que, ao embarcar de volta para Portugal, um dirigente do Benfica declarou sobre o gol, numa autêntica chave de ouro camoniana, que valera a pena atravessar o oceano, só para sofrê-lo.
Ao mesmo tempo, o Santos era um time real que também perdia. Às vezes, Pelé jogava mal – embora pudesse reverter esse fato a qualquer momento. A equipe tinha épocas de crise. Mesmo num grande dia, podia se deparar com um adversário à altura, como o Palmeiras o foi tantas vezes nesse período. Os ataques eram mais francos, as defesas mais abertas. Podia ser goleado por um time pequeno, como aconteceu frente à Portuguesa Santista e ao Jabaquara. Esse é, de todo modo, um corretivo a fazer às insistentes idealizações de times mitificados e supostamente prontos e perfeitos desde sempre, contrapostos às equipes atuais, vistas como insatisfatórias desde o primeiro instante. O imaginário, e talvez em especial o brasileiro, tende a renegar a necessidade da contínua construção de um time por meio da invocação idealizante de um passado impecável (como se o futebol não fosse, entre todas as artes, aquela que exibe o rascunho de si mesma como o seu resultado final).
Nesse período, o time do Santos passou a transitar entre o bairro e o mundo, virando lenda transcontinental, com seus episódios inéditos e folclóricos conhecidos (guerras interrompidas na África para ver os jogos, juízes depostos pela torcida na Colômbia para que Pelé, expulso, voltasse a campo etc.). A memória, por outro lado, guarda restos de uma domesticidade provinciana: Pelé, já campeão do mundo, como sentinela no quartel do 2o Batalhão de Caçadores, em São Vicente, onde cumpria o serviço militar; contratado como gerente-propaganda da loja A. D. Moreira, perto da praça Barão do Rio Branco, no início da sua fama; deixando a irmã, de manhã cedo, na porta do colégio público onde eu estudava.
Ao voltar da Copa de 1970, ao lado do seu carro, num posto de gasolina, cercado de populares para os quais comentava um lance da Copa, Pelé foi abordado por meu amigo Wanderley Sanches. Ele teria aberto espaço entre os curiosos e lhe perguntado com naturalidade: “Pode me dizer onde fica a rua Djalma Dutra?” Além do efeito de desconcertante trivialidade, Wanderley, um gênio maliciosamente (ou deliciosamente) erradio de poeta-filó-sofo, que aplicava sua metafísica originalíssima ao exame das circunstâncias, queria conferir, segundo ele mesmo, se aquela cabeça vista por milhões ao fazer o primeiro gol da final contra a Itália continha uma certa “informação local”. Se a história é verídica ou inventada por ele, não importa, nem a resposta. Ela se basta como a cifra do que vivíamos ali, e como a antevisão de uma experiência nova que mal se prefigurava – o primeiro espasmo da localidade com a globalidade planetária.
Quanto a mim, fui condenado a não poder deixar de viver tudo aquilo senão como se fosse natural – insisto, como o morro e o mar. Um amigo dez anos mais novo, e também torcedor do Santos, ao ver filmes do auge da era Pelé, afirmou sem hesitar que o fato de eu ter sido exposto, em tenra idade, à força daqueles fatos, “como se isso fosse normal”, produziu danos irreversíveis à minha personalidade. Ele não foi mais explícito do que isso, mas a frase me atinge. Na melhor das hipóteses, ela se refere à minha incurável tendência a ver sentido em tudo.
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