FOTOMONTAGEM: LUIZ DACOSTA. IMAGENS: HULTON ARCHIVE_STRINGER_GETTY IMAGES/HO NEW_REUTERS
O padre dos balões caiu na rede
Guiado pela "vontade de Deus", o pároco Adelir de Carli desapareceu no céu, mas vive nas piadas da internet
Marcos Sá Corrêa | Edição 21, Junho 2008
Morto, de corpo presente, ninguém podia jurar que o padre Adelir Antônio de Carli estivesse. Mas vivo, pronto a reassumir a igreja de São Cristóvão no porto de Paranaguá, isso também ele não estava. E assim, em meados de maio, seus paroquianos deram sinal de que se cansaram de esperar por ele. Lá se iam três semanas desde que eles o viram pela última vez, num domingo chuvoso, levado ao céu por 1 mil balões de festa. Em minutos, a existência terrena de Adelir diluiu-se nas nuvens baixas, desbotando até se apagarem os globos coloridos da nave de hélio engarrafado. Oito horas depois, sua voz desceu do céu numa ligação de telefone celular, furando a barreira do mau tempo para dizer à equipe de resgate: “O pessoal está vindo ou não está vindo?” Dito isso, o padre desapareceu.
Ele subira com seus balões, no dia 20 de abril, rumo ao oeste do Paraná, procurando atingir Dourados, em Mato Grosso do Sul, com parada em Ponta Grossa. Ia pronto para bater mais um recorde de imprudência nos anais dos transportes temerários. Desceu provavelmente em alto-mar, ao largo de Santa Catarina, desviando-se de seu destino por mais ou menos 180 graus – um marco da navegação aleatória. Guiava-se pela “vontade de Deus”, como ele mesmo esclareceu certa vez ao instrutor Márcio André Lichtnow, que criticava seu desinteresse pelas aulas teóricas na escola de vôo livre Vento Norte, em Campo Largo, nos arredores de Curitiba. Pelo método que o padre usou, dificilmente poderiam encontrá-lo as operações de salvamento que põem fé no GPS.
Mesmo avivadas de longe por treze vigílias de oração em Paranaguá, as equipes de salvamento foram, uma a uma, jogando a toalha, como se Adelir de Carli, de 41 anos, morresse aos poucos de um desastre aéreo. No fim da primeira semana de sumiço, a Marinha e a Aeronáutica desistiram de procurá-lo nos 240 quilômetros do litoral catarinense, onde supunham que tivesse caído. Bombeiros voluntários de Penha perseveraram na busca por quase um mês, vasculhando em terra e no mar. E nada do padre. Sem notícias de seu paradeiro, a não ser por uma penca de balões furados que as ondas devolveram à praia, o padre Francisco Pereira da Costa assumiu interinamente a paróquia e o bispo dom João Alves dos Santos fechou o balanço da temporada balonística na igreja de São Cristóvão. O bispo lamentou a “decisão bastante pessoal” do pároco, e garantiu que o desfecho não prejudicaria a construção do Centro de Atendimento aos Caminhoneiros, “um trabalho muito bonito” que ele deixou inconcluso em Paranaguá.
Pároco desde 2004, quando chegou à cidade recém-ordenado, Adelir de Carli voava para chamar a atenção de patrocinadores em potencial, talvez dispostos a bancar sua obra pastoral de apoio aos motoristas. Os caminhoneiros arriscam a vida na BR-277, transportando carga serra abaixo, serra acima, entre o planalto curitibano e o porto – e o padre arriscava a vida por eles. Já tinha reputação firmada na cidade, por andar de sapatos furados e dormir em enxerga. E conseguira alguma celebridade nacional em 13 de janeiro, viajando em cerca de cinco horas do Paraná à Argentina, a bordo de 500 balões. Como a fama instantânea não lhe trouxe o dinheiro esperado para a Pastoral Rodoviária, ele dobrou a dose da aventura em abril. Acabou conhecido no mundo inteiro. Mas não como pretendia.
Seu desaparecimento abriu no YouTube uma série incansável de piadas audiovisuais, geradas por manipulação de imagens em vídeos de produção caseira. Narradas em várias línguas, sob assinaturas do gênero “obuxixo”, “cargaviva” e “yerdzayr”, elas se mantiveram no ar mesmo depois de encerradas as buscas. Mostram o padre ultrapassando, com seus balões, a bicicleta do ET contra uma desmesurada lua cheia, sobrevoando a Torre Eiffel, a Grande Muralha da China ou as Pirâmides de Gizé, contornando o King Kong no topo do Empire State, cruzando os céus na proa do Titanic e invadindo o espaço intergaláctico de Guerra nas Estrelas.
Insepulto, Adelir de Carli parecia condenado a não ter descanso tão cedo na internet. Virou candidato ao Darwin Awards, um concurso de gafes fatais, promovido por Wendy Northcutt e Christopher Kelly para premiar pessoas que não medem esforços para se destruir por motivos tolos ou fúteis. Em princípio, o Darwin reconhece anualmente o sacrifício de quem mais contribui para o progresso da espécie, subtraindo-lhe sua carga pessoal de genes suicidas. Daí o Darwin de seu nome. Parece – e é – brincadeira, mas rendeu quatro livros de sucesso internacional, em parte por conta dos laureados. É o caso do terrorista que despachou uma bomba pelo correio, recebeu de volta a correspondência por erro de destinatário e abriu o envelope para conferir o conteúdo. No mês passado, o padre Adelir de Carli apareceu na lista do Darwin Awards, apoiado por internautas brasileiros que pediam votos mais ou menos nos termos da campanha que elegeu o Cristo do Corcovado entre as sete maravilhas do mundo.
“Não é justo que ele inscreva seu nome na história como o Padre Voador”, lamentou Paulo Sérgio Silva, seu ex-colega de seminário. Esse perigo, pelo menos, Adelir de Carli não corre. O título de Padre Voador pertence desde o século XVIII a outro brasileiro, o jesuíta Bartolomeu de Gusmão, que nasceu em Santos, estudou em Coimbra numa época em que a universidade abria as portas ao estudo científico e embasbacou Portugal com um vôo pioneiro – e, prudentemente, não tripulado. Gusmão teve, sobre Adelir de Carli, o privilégio de viver em plena febre das experiências aerostáticas, em que padres como “o reverendíssimo” João Faustino, “congregado do Oratório de Goa” e membro da Real Academia das Ciências de Lisboa, pôde decolar dos jardins do Palácio da Ajuda com “uma máquina de papel pintado”, “atravessar uma nuvem” e “descer lentamente” em Cassilhas.
Era uma época em que até os jornalistas viam essas coisas com outros olhos, o que não impediu o redator Félix António Castrioto, da Gazeta de Lisboa, de prever, em 1784, que “os aeróstatos não serão de grande préstimo enquanto se não acharem os meios de dirigir seu rumo”. O aviso de Castrioto não chegou a Paranaguá a tempo de salvar o padre Adelir de Carli, que 224 anos depois ainda voava para onde os ventos quisessem levá-lo e, desaparecido, não teve missa de sétimo dia. Despediu-se dos paroquianos e das semanas de fama, no dia 15 de maio, em missa de ação de graças, rezada em sua igreja de São Cristóvão pela ocasião do encerramento da 12ª Expossafra, uma festa de caminhoneiros. Era, nas circunstâncias, o máximo que os paroquianos podiam fazer em matéria de homenagem póstuma.
Leia Mais