Presente em quase todos os grandes empreendimentos imobiliários de São Paulo nas últimas três décadas, Julio Neves não tem defensores entre os críticos FOTO: CHRIS VON AMELN/FOLHA IMAGEM
Neopassadista neoclássico
Depende das eleições da prefeitura e do Masp o futuro de Julio Neves, o Niemeyer de Paulo Maluf, que marcou São Paulo com grandes projetos imobiliários e preside o museu há catorze anos
Fernando Serapião | Edição 23, Agosto 2008
Em uma manhã de julho, o jardineiro lapidava o paredão de jibóias que protege dos olhares curiosos uma casa construída no final da década de 70, no alto da Cidade Jardim, um dos bairros mais ricos de São Paulo. A estrutura de concreto aparente e as janelas de treliças dão um ar de vanguarda à construção. As telhas de barro e o desenho interno, contudo, reduzem os elementos vanguardistas à condição de adorno. Pouco antes das nove e meia da manhã, o portão abriu e saiu uma BMW preta, série 7, blindada, com alguns anos de uso. No banco de trás estava o arquiteto Julio Neves. Vestia terno preto, camisa e gravata azuis e sapatos pretos de cromo alemão. No volante, Ulisses, o motorista uniformizado.
Dois túneis, 5 quilômetros e vinte minutos depois, chegaram ao escritório do arquiteto. No caminho percorrido, três prédios se destacam pela monumentalidade e pelo traço neopassadista, com ênfase no neoclássico: o prédio da Eletropaulo, a Daslu e o complexo de luxo Parque Cidade Jardim. Os três saíram da prancheta do Escritório Técnico Julio Neves.
Além de projetar grandes empreendimentos imobiliários, Neves ocupa há quase catorze anos a presidência do Museu de Arte de São Paulo, o Masp. Uma semana antes, no dia 25 de junho, ele fora convocado à sede do Ministério Público, que investiga sua gestão do museu. Chegou lá pouco depois do almoço, acompanhado do advogado do Masp e dos advogados de outros dois conselheiros, o empreiteiro José Ermírio de Moraes Neto e o marqueteiro João Dória Jr.
Participaram da reunião a promotora Mariza Tucunduva e representantes das secretarias de Cultura das três esferas governamentais. O objetivo era apresentar o parecer jurídico-contábil da procuradoria, que esmiuça a debilidade financeira do museu. A promotora propôs que os diretores convocassem uma assembléia extraordinária com todos os associados para discutir a participação do estado na gestão do Masp. Após mais de seis horas de conversa, e vários momentos de tensão, não houve acordo. Neves pediu e obteve trinta dias para analisar a documentação.
Se concretizada a proposta da procuradora, configurará um caso raro: a estatização de uma instituição privada. O Masp é uma sociedade civil sem fins lucrativos, com regras definidas no seu estatuto. O prédio é do município, que é dono do terreno, pagou a construção do prédio e contribui com 1,2 milhão de reais por ano para a sua manutenção.
O que a instituição possui de valioso é o acervo: uma coleção avaliada em mais de 1 bilhão de dólares. A pinacoteca mais importante do hemisfério sul foi reunida graças à truculência de Assis Chateaubriand e ao oportunismo de Pietro Maria Bardi. O papel do primeiro foi arrumar dinheiro achacando fortunas brasileiras: quem não contribuísse com o museu era atacado pelos Diários Associados, a cadeia de jornais da qual era dono. O do segundo foi encontrar obras a preço de banana de europeus arruinados com a II Guerra Mundial.
Também entrou dinheiro público na formação do acervo. O governo de Juscelino Kubitschek emprestou 2 milhões de dólares para que Chateaubriand pagasse um empréstimo em Nova York. Para entregar a soma, uma das condições do governo foi a criação de sociedade independente para gerir o Masp. Essa ação deu caráter público à coleção e salvou-a da falência dos Associados.
Os diretores do museu, no entanto, insistem na condição de “entidade privada”. O que faz com que o Masp funcione quase como uma sociedade secreta. Os funcionários sabem que os sócios se reúnem só quando vêem dezenas de carros estacionados no vão livre do prédio projetado por Lina Bo Bardi. Dependendo do número de presentes, a reunião pode ser no pequeno auditório ou na sala de reunião do primeiro piso. Se o assunto a ser discutido é espinhoso, há uma ronda da segurança para certificar que não há bisbilhoteiros da imprensa em volta.
Sequer os nomes dos associados são divulgados. Eles formam um clube fechado, no qual só entram convidados. Para isso, não é necessário ser especialista, milionário ou generoso: é só ter amigos entre os sócios. O estatuto diz que podem se tornar associados “pessoas físicas ou jurídicas que, pelo tempo de dedicação ao Masp, assim como por serviços prestados ou doações efetuadas, tenham alcançado essa condição especial”. O clube tem hoje 62 associados. Entre eles, há poucas pessoas ligadas às artes como a escritora Lygia Fagundes Telles, e alguns milionários, caso do empresário Emílio Odebrecht. A maioria não é uma coisa nem outra. Nessa categoria estão dois dos quatro filhos de Julio Neves, Paulo e Roberto, empossados durante a gestão do pai.
Julio Neves tem 76 anos e é rico desde o nascimento. Seu pai, que passou o prenome ao filho, era dono de uma indústria de alfinetes na baixada do Glicério e de dezenas de imóveis de aluguel, a maioria junto à fábrica. A casa enorme na qual os Neves viviam ficava na avenida Brigadeiro Luiz Antônio, a uma quadra da Paulista. Julinho, como era chamado, começou os estudos no jardim-de-infância do Externato Elvira Brandão, onde conheceu o seu melhor amigo, Paulinho. Continuaram colegas no ginásio e no científico do Colégio São Luiz, o viveiro da burguesia paulistana de então. “O Julinho e eu íamos juntos de bonde até o colégio, pois morávamos a uma quadra e meia de distância”, relembrou Paulinho. Até os telefones eram parecidos: o de Neves era 71-200, e o do amigo, 71-280.
Na escola dos jesuítas a dupla passou a trio com a entrada de Silvano. Ainda no colégio, os três fizeram o primeiro negócio juntos: dividiram Clotilde, o apelido que deram ao Austin 1935, azul-marinho, que compraram em sociedade. Para adquiri-lo, contaram com o auxílio providencial da mãe de Paulinho, dona Maria, que considerou o automóvel “só um brinquedinho”. Reza o romance familiar dos Neves que, para comprar o Austin, Julinho se desfez da coleção de selos que herdou do avô. A trinca aprendeu a dirigir dentro da casa de Paulinho, que tinha um vasto jardim. A gasolina, algumas vezes, era surrupiada do carro do pai de Silvano, que reclamava que o seu carro “estava bebendo demais”.
A trinca inseparável deixou de se encontrar diariamente quando fizeram a opção profissional. Julinho entrou na arquitetura do Mackenzie, Paulinho na engenharia civil e Silvano na medicina, ambos na Universidade de São Paulo. Continuaram se freqüentando, seja como amigos, seja para fazer negócios, e adquiriram proeminência: Silvano Raia fez o primeiro transplante de fígado no Brasil, Paulo Maluf fez carreira na política e Julio Neves virou arquiteto de renome.
Neves é lembrado pelos colegas de faculdade mais pela aparência de janota do que pelas idéias arquitetônicas. Usou gravata e fixador de cabelos desde sempre. Entre os 250 da arquitetura do Mackenzie, ele era um dos cinco que tinham carro. Dava preferência aos conversíveis, comprados nos Estados Unidos. No final do curso, guiava um Oldsmobile, cinza azulado, modelo 1954. O ápice da vida do carro foi desfilar no recém-inaugurado Ibirapuera tendo uma Miss Universo a bordo. Além do orgulhoso motorista — ainda solteiro —, estavam no automóvel a mãe da miss, uma americana, e Silvano Raia. “Ela era branca, loura e lindíssima, mas não nos deu nenhuma bola”, relembra o médico, saudoso.
Na lembrança de colegas, Neves seguiu o curso com facilidade porque tinha excelente memória e acompanhou à distância a efervescência intelectual e política dos anos 50. Havia no Mackenzie um grupo de alunos que, com outros da Faculdade de Arquitetura da Universidade de São Paulo, deu vida à “escola paulista”, movimento arquitetônico marcado pelo uso do concreto armado à vista, grandes vãos e pelo engajamento de esquerda. Julio Neves foi contemporâneo no Mackenzie de Paulo Mendes da Rocha, que veio a ser um dos líderes dessa escola.
Ele se formou na turma de 1955 e começou a trabalhar em escritório próprio, dividindo despesas com três colegas. Seus primeiros projetos foram casas para vender financiadas com capital de familiares. Casou-se com Maria Thereza, filha do milionário Francis Souza Dantas Forbes, que tinha grande circulação entre o empresariado paulista e o apresentou a futuros clientes.
Como era usual, participou de concursos de arquitetura. Fez uma proposta para o Plano Piloto de Brasília que não foi classificada. Em 1958, concorreu na disputa pelo Estádio Municipal de Santo André. Certa noite, entrou com uma pizza no quarto 9085 do Hospital das Clínicas, onde Silvano Raia fazia residência, e anunciou, orgulhoso, referindo-se ao estádio: “Ganhei o primeiro concurso de minha vida.” Foi o primeiro e único. Mas, com menos de cinco anos de formado, desenvolveu seu primeiro projeto de médio porte, o Conjunto Zarvos, na avenida São Luiz.
Ulisses parou a BMW no recuo lateral do escritório. Neves saltou do carro, passou pela recepção, cumprimentou quatro secretárias e seguiu para sua sala. O local, ocupado por ele há 35 anos, é uma antiga casa térrea, construída nos anos de 1940 numa zona residencial próxima ao Parque do Ibirapuera. Além da casa, ocupa outros dois imóveis, vizinhos de fundo do Hotel Unique. A construção principal passou por reforma nos anos 70. A divisão interna, de origem doméstica, foi transformada para atender a hierarquia. O inox é o elemento que identifica a mudança. Há certo ar decadente, com ecos da arquitetura do “Brasil Grande”. O cinza predomina e ajuda a criar um clima austero. Neves ocupa as duas salas voltadas para a rua, que são protegidas da vista do transeunte por persianas horizontais. Na primeira, está sua mesa. Coberta por documentos, ela não tem os instrumentos básicos de um arquiteto, a prancheta e o computador. A outra sala é uma pequena biblioteca, usada para reuniões. Um dos quatro copeiros uniformizados logo serve o primeiro dos três cafés do dia.
No trabalho, todos o chamam de Doutor Julio. Para todas as operações, há protocolo. Raramente ele é visto nas salas do estafe. Como nunca desenhou bem, para ser entendido rabisca com caneta Pilot preta em papel-manteiga sobre desenhos dos outros. Quando a porta de sua sala está fechada, chama as secretárias por meio de uma campainha com controle remoto. O local parece mais um escritório tout court, com pouco de arquitetura.
Boa parte dos dias ele almoça no escritório. A secretária pede um lanche na Aldeia, uma lanchonete com cara de padaria. Quando a refeição chega, sempre acompanhada por um refrigerante diet, é servida pelo copeiro. Se recebe algum familiar, almoça num dos restaurantes do fim da rua, quase no Itaim Bibi. Com clientes, em bairros mais distantes. Após a refeição, é servido o segundo café do dia. Extra-oficialmente também funciona em seu escritório a presidência do Masp. Ele raramente vai ao museu; os funcionários é que vêm ao seu encontro. Naquele dia, contudo, Julio Neves seguiu com Ulisses para o Masp.
Pouco antes do golpe militar de 1964, pela primeira vez na história do departamento paulista do Instituto dos Arquitetos do Brasil, uma chapa de direita e uma de esquerda disputaram a sua direção. O embate teve início quando o brigadeiro José Vicente de Faria Lima se preparava para concorrer à prefeitura de São Paulo e buscou apoio dos arquitetos. Ele queria implantar um grande plano urbanístico e havia resistência da direção do Instituto, controlada pela esquerda. Para articular os arquitetos de direita, Faria Lima se valeu de Arnaldo Paoliello, que montou uma chapa e venceu a esquerda, como ele diz, “por 700 a 300”. Julio Neves integrou a chapa vencedora e se tornou diretor. No mandato seguinte, Neves foi cabeça-de-chapa e se tornou presidente do Instituto, ao mesmo tempo que Paoliello virava seu sócio no escritório de arquitetura.
Foi quando Faria Lima, já prefeito, o procurou e o encarregou de acompanhar a construção do Masp — financiado pela prefeitura —, pois achava que Lina Bo Bardi estava gastando muito e que Neves poderia diminuir os custos. Finda a tarefa, foi convidado a ser sócio do museu.
Mas as associações de classe eram pouco para a sua capacidade de trabalho. Em 1969, o então prefeito Paulo Maluf indicou o amigo arquiteto para ocupar a presidência da Companhia Metropolitana de Habitação, a Cohab. A companhia construiu em Itaquera dois conjuntos habitacionais que são considerados desastres arquitetônicos e urbanísticos. No ano seguinte, Neves foi nomeado presidente da Caixa Econômica Estadual. Enquanto ocupava os cargos públicos, seu escritório, comandado por Paoliello, estava a todo vapor. De um lado, eles abriram uma empresa de incorporações; do outro, a proximidade com o poder garantia boas encomendas. O principal projeto do escritório, que durou até o início da década de 70, foi um grande plano metropolitano contratado na gestão do governador Abreu Sodré. Nessa época, o escritório chegou a ter 200 funcionários.
Dos quatro filhos de Julio Neves — Carlos, Paulo, Roberto e Cecília —, somente o primeiro trabalha próximo ao pai: é ele quem administra os bens da família, num escritório localizado ao lado do do pai. Entre outras coisas, e alguns negócios em sociedade com os herdeiros de Mário Pimenta Camargo, Carlos cuida da Nova Rede de Centros Comerciais. Não é raro que Neves participe, como proprietário, dos empreendimentos que desenha. Foi assim, por exemplo, no Shopping Metrópole e alguns prédios da Paulista.
Paulo é dono de uma lanchonete no Itaim. Roberto — que demorou dezoito anos para se formar em arquitetura — aparece no escritório para assinar documentos. Seu trabalho de finalização de curso era um hotel na Vila Buarque. De tão pragmático, parecia uma encomenda real. O orientador lhe disse: “Tinha esperança que você saísse da sombra de seu pai.” Cecília abriu uma loja de bijuterias. Os quatro filhos moram a poucas quadras da casa do pai e se reúnem aos domingos em torno da mesa paterna, servidos por empregados uniformizados.
Raramente a família freqüenta a fazenda que possui em Porto Feliz, a 120 quilômetros da capital. Neves não liga para feriados. Seu descanso é o trabalho. Se a entrega de algum projeto faz com que sua equipe trabalhe nos finais de semana, ele também comparece. Às vezes, de terno, e noutras de camisa social sem gravata, ou com um foulard de seda no pescoço. Férias são raras. Com a saúde de Thereza debilitada, as freqüentes viagens ao exterior são coisa do passado. Ficaram na saudade as temporadas parisienses no Hôtel de Crillon. Na última década, foi só aos Estados Unidos, para o casamento de uma sobrinha, e ao Vaticano, para participar de um seminário de museus, ocasião em que conheceu o papa Bento XVI. As noitadas movidas a uísque nos bares do centro, como A Baiúca e o Clubinho dos Artistas, ficaram na década de 60. Nunca é visto bebendo no escritório — apesar do bar camuflado atrás do retrato de Thereza, na sala de reuniões. Freqüenta jantares fechados e restaurantes caros. Todo mês de dezembro tem compromisso agendado há trinta anos: para relembrar o passado e a Clotilde, jantar com Raia e Maluf. A conta é dividida entre o arquiteto e o médico; o engenheiro fica responsável pelo vinho.
A gestão Neves no Museu de Arte de São Paulo começou no ocaso de Pietro Maria Bardi, que nunca foi presidente, e sim curador. Os presidentes sempre estiveram a sua sombra. Para o bem ou para o mal, Bardi era a alma da instituição. Além da pinacoteca, o Masp tinha escola de arte, de moda e de publicidade e organizava uma mostra de cinema. Em seus últimos anos no cargo, o curador abriu espaço para Fábio Magalhães, que iniciou a profissionalização da gestão do museu. Magalhães chamou, por exemplo, Paulo Mendes da Rocha para criar um Plano Diretor de reforma no museu, e formou uma equipe técnica de nível, contratando e demitindo funcionários.
Fábio Magalhães foi mantido curador quando o empresário e bibliófilo José Mindlin assumiu a presidência. A curta gestão de Mindlin foi contestada por um grupo de oposição liderado por dois amigos de Julio Neves: Abreu Sodré e o advogado Mário Pimenta Camargo. O primeiro enviou carta a todos os associados atacando a gestão de Mindlin. E o segundo (sócio de Neves em empreendimentos imobiliários) entrou com uma ação para anular a eleição do bibliófilo, que permaneceu no cargo com um mandado de segurança e convocou novo pleito. Na imprensa, a disputa ganhou contornos ideológicos: do lado de Mindlin, estava o PSDB; a oposição contava com o apoio do prefeito Paulo Maluf.
Em uma tarde de outono, quando Neves trabalhava em uma proposta de reurbanização da favela de Paraisópolis, Abreu Sodré apareceu em seu escritório. Estavam na calçada quando o ex-governador fez o convite: “Gostaria que você fosse nosso candidato a presidente do museu.” Anunciada a assembléia de eleição, Sodré declarou nos jornais: “Vai ser uma guerra.” Mindlin, em viagem ao exterior no dia da votação, foi derrotado por 22 a 21 votos. Nunca mais pisou no Masp, e não foi por falta de convite de Neves. “Evito falar no assunto”, disse-me ele. Outros sócios ligados a Mindlin também debandaram. Neves disse, na ocasião, que sua expectativa era presidir o museu durante apenas um mandato, com uma gestão “pacificadora”. Pouco tempo depois, morreram Pimenta Camargo e Abreu Sodré. E Neves se eternizou no cargo.
Nas últimas três décadas, é difícil pensar em algum empreendimento de vulto em São Paulo — principalmente quando articulado entre poder público e iniciativa privada — que não tenha, de alguma maneira, a participação de Julio Neves. Para ele, não há política nem ideologia, nem arquitetura, nem urbanismo em jogo. Trabalhou sem constrangimento para o PT, seja na gestão de Luiza Erundina, seja na de Marta Suplicy. Mas o amigo de infância é o grande parceiro: se Paulo Maluf fosse JK, Julio Neves seria seu Niemeyer. Na década de 80, quando foi governador biônico, Maluf imaginou mudar a capital para o interior do estado. Convocado, Neves formou uma equipe para estudar o assunto (integrada, entre outros, por Paulo Mendes da Rocha).
Na década seguinte, quando Maluf era prefeito eleito da capital, fizeram juntos a avenida Nova Faria Lima, um projeto bastante atacado por arquitetos e urbanistas. A fim de contornar as críticas, Neves organizou um encontro na Sala São Luiz para explicar seu projeto “à comunidade técnica”, conforme afirmou. Compareceu de jaquetão, seu uniforme dos anos 90, e não se abalou com as palavras de ordem vindas da rua: “Maluf é ditador, Julio Neves é trator!” O projeto seguiu adiante e a avenida é uma realidade. Além do traçado da via, Neves projetou vários dos seus prédios. “O que posso lhe afirmar com segurança”, disse Maluf , “é que o Julinho é um sujeito honesto, correto e bom caráter.”
Nos projetos arquitetônicos, Neves é obsessivo em encontrar a melhor equação monetária para o cliente. Julio Neves não move uma ruga em direção a questões sociais ou ambientais, e muito menos à crítica especializada. Do ponto de vista dessa última, Neves está na sua pior fase, iniciada quando passou a aceitar encomendas neoclássicas. Os expoentes da tendência — o Banco Santos, a Daslu e o Parque Cidade Jardim — não têm defensores no plano estético e arquitetônico.
“Não tenho medo de crítico de arquitetura”, gosta de dizer Neves (que, procurado durante quatro meses, não quis ser entrevistado para essa reportagem). Ele não participa de bienais, não permite pesquisas acadêmicas sobre sua obra, não tem interesse por revistas especializadas e acompanha à distância a arquitetura contemporânea. Em 1997, quando Jean Nouvel veio ao Brasil, o criador do Instituto do Mundo Árabe, em Paris, teve um encontro com Neves no Masp. Ao sair apressado do escritório para recebê-lo, o brasileiro disse ao interlocutor: “Tenho que ir: um francês está me esperando.”
Em compensação, é conhecido por aprovar propostas difíceis, quase impossíveis, como os shoppings. Contam a favor seus contatos no governo e sua persistência — “ele é incansável”, “uma máquina de trabalho”, opinam seus colegas. Um exemplo recente é seu projeto para a Fundação Armando Alvares Penteado. Ao longo de mais de dez anos ele fez um sem-número de propostas tentando aprovar a ampliação do prédio, que fica num bairro tombado pelo Patrimônio Histórico, o Pacaembu. Em junho, Neves e seus clientes obtiveram uma grande vitória: o governo de José Serra cedeu à pressão e permitiu a junção dos lotes, abrindo uma brecha para aprovar a proposta. Os moradores do bairro conseguiram uma liminar impedindo a modificação.
Nos primeiros anos à frente do museu, o arquiteto seguiu o que estava programado por Fábio Magalhães. Os problemas começaram quando, ainda na primeira gestão, ele iniciou uma reforma geral no edifício, só finalizada no quarto mandato. Ao custo de 20 milhões de reais, arrecadados com renúncia fiscal junto à iniciativa privada, o resultado da obra pode ser dividido em duas partes. De um lado, está a manutenção estrutural do prédio. Do outro, mudanças de materiais e da imagem física do museu.
A respeito do primeiro ponto, até os críticos classificam a ação de Neves como positiva. “Tenho que ser honesto: a revisão estrutural era indispensável”, disse Marcelo Ferraz, arquiteto e ex-colaborador de Lina Bo Bardi. Na reforma, foram exterminados os cupins, estancaram-se as infiltrações, trocou-se o ar-condicionado, fez-se mais um elevador e cavou-se um 3° subsolo, destinado à reserva técnica.
Antes de iniciar a segunda parte, Neves chamou Marcelo Ferraz para conversar. “Mas ele não me escutou”, disse Ferraz. “A troca do piso de pedra mineira por granito polido é imperdoável. Não é um detalhe.” Algumas reclamações surtiram efeito: foi retirado o brilho do granito e a sala VIP — decorada por Jorge Elias, no mais eloqüente estilo Casa Cor — foi desmontada.
Outras modificações permanecem. O exemplo mais citado, e atacado, é a retirada dos cavaletes criados por Lina Bo Bardi para a exposição permanente, no segundo piso. A nova maneira de apresentar as obras, desenhada por Neves, teve como inspiração museus tradicionais. A idéia partiu do então curador Luiz Marques, que era contra a disposição original. Hoje, Marques é um dos maiores opositores de Neves: foi ele quem organizou um estridente abaixo-assinado pedindo intervenção governamental.
Do ponto de vista da curadoria, após a saída de Luiz Marques o museu ficou quase dez anos sem um responsável artístico. O ápice da falta de rumo ocorreu quando o problema financeiro respingou no papel cultural da instituição e Neves declarou: “O artista deve pagar para expor.” Para apaziguar os ânimos, há dois anos o arquiteto chamou o ensaísta Teixeira Coelho. Mas é evidente que é o presidente quem dá a linha em todos os aspectos da vida do Masp.
A crise financeira explodiu com o fim da reforma. Tornaram-se públicas as dívidas trabalhistas, o atraso no pagamento do salário dos funcionários e o corte da energia elétrica. Para captar dinheiro, Neves tentou diversas ações, de jantares dançantes a leilões beneficentes. Todas tiveram resultados inexpressivos. Neves, que sempre repete que não ganha salário do museu, botou dinheiro do próprio bolso para fechar alguns rombos. Mas o que ajudou, mesmo, foram as vultosas e freqüentes doações de grandes empresas. Apesar delas, as contas do museu ainda estão no vermelho. As dívidas trabalhistas estão quase ajustadas e o pagamento dos salários foi normalizado. Ainda assim, há um grande desânimo entre os que trabalham na instituição. A opinião corrente é que “falta liderança”.
Ulisses parou a BMW na garagem do Edifício Dumont-Adams, um prédio de apartamentos desocupado vizinho ao Masp. Ele foi adquirido pelo museu, em 2005, com o auxílio da empresa telefônica Vivo, que fez um repasse de 12 milhões de reais. No plano de Julio Neves, uma grande reforma transformaria o Dumont-Adams em anexo do museu, para onde seriam transferidos a área administrativa, salas para cursos e depósitos. No topo do anexo haveria uma torre com antena, observatório e restaurante. Nos dias claros, dali se poderia “ver o mar”, proclamou Neves. A Vivo, além de auxiliar na compra e na reforma, faria contribuições mensais, associando sua marca a um dos maiores patrimônios culturais brasileiros. Para Neves, o projeto, batizado de Mirante do Masp, garantiria a sustentabilidade financeira do museu.
O projeto começou de maneira curiosa. O leiloeiro Roberto Magalhães Gouvêa — sócio do Masp — contou a Neves uma idéia de Pietro Maria Bardi, que mantinha negócios paralelos ao museu, como revistas e galerias de arte. Uma das publicações dirigidas por Bardi chamava-se Mirante das Artes. Foi uma aventura editorial curta, da década de 60, mas deixou um projeto não realizado: Lina Bo, a pedido do marido, criou o projeto da sede da publicação. Inspirada pelo nome do periódico, a edificação era uma torre, a ser financiada por meio de uma operação imobiliária. No alto, haveria uma galeria em forma de observatório. Julio Neves partiu desse relato para imaginar o anexo do museu.
Anexos de museus, no entanto, não costumam ser realizados como empreendimentos comerciais independentes. A relevância cultural de um museu se expressa, entre outros elementos, por meio da sua arquitetura. Por isso, um anexo não pode ter como coração o patrocínio e, pior, que seu projeto reflita esse constrangimento.
A idéia de Neves reflete em sua arquitetura anseios comerciais de uma torre de telefonia. Nada contra mirantes em museus — atraem público e criam interesse. Que o diga o magnífico de Young Museum, em São Francisco, dos suíços Herzog & de Meuron. Mas ampliações de museus costumam ser feitas com cuidado e depois de muita discussão. Em geral, os projetos são entregues a arquitetos que tenham sensibilidade para dialogar com a manifestação original, o edifício-sede.
Rafael Moneo, por exemplo, passou mais de uma década desenvolvendo a ampliação do Prado, em Madri. Isso também ocorreu com I. M. Pei no Louvre e com Yoshio Taniguchi no Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA. A lista é interminável. O fato é que nenhum administrador de museu sério faz uma ampliação sem uma ampla discussão prévia e sem dispor do melhor corpo técnico possível. E o anexo do museu da avenida Paulista, com um Mirante das Artes transformado em restaurante do Masp, possui desenho do Escritório Técnico Julio Neves — que não cobrou honorários, mas entre as centenas de edifícios que projetou, não há nenhum museu.
No dia em que Neves esteve no Masp pouco mais de 300 pessoas almoçaram no restaurante do museu, que oferece um bufê a 24 reais. Às 14h45, enquanto 53 pessoas visitavam as exposições, observadas por doze seguranças, Neves estava no subsolo, em frente à lojinha, conversando com Teixeira Coelho, que vestia calça e casaco pretos, e dois senhores de gravata. Os interlocutores, em silêncio, ouviram o presidente por mais de dez minutos. Ele tinha em mãos o relatório da promotoria. Com o auxílio dos óculos de leitura, lia alguns trechos para os três, e de quando em quando os olhava por cima da armação. Pouco depois, seguiu apressado para o subsolo do Dumont-Adams e foi embora com Ulisses.
Depois de serem aprovados pelos órgãos do Patrimônio Histórico estadual e federal, o anexo e a torre foram barrados pela instância municipal. Para isso, foi fundamental o texto da relatora Mônica Junqueira de Camargo, que colocou em xeque a relevância do projeto do anexo. Com a negativa, o Masp apresentou um parecer jurídico questionando a legalidade da decisão do Conselho Municipal de Preservação do Pa-trimônio, o Conpresp. Nada adiantou: em 25 de outubro de 2005, o desenho foi barrado novamente.
Neves disse então que o Conselho poderia fazer o projeto do anexo. Para José Eduardo Lefrèvre, presidente do órgão, a idéia era absurda: “O Conselho não é escritório de arquitetura.” Dois anos depois, um projeto foi finalmente aprovado. Mas a torre, em vez da altura inicial de 125 metros, poderá ter no máximo 70,55. Ou seja, passou de torre a toco. E não poderá ter elementos vermelhos nem vidro espelhado. “Na minha interpretação, o mirante mais baixo é até pior, pois se aproxima mais ainda do volume do museu”, diz a relatora, que não participou da votação final. Segundo a assessoria de imprensa da Vivo, que chegou a pedir de volta o dinheiro investido, ainda existem “negociações com a direção do Masp”.
Neves voltou ao escritório pouco depois das 19 horas. Havia perdido o último café do dia, servido às 16h30. Fez ligações e acompanhou detalhes de projetos em andamento. Não havia quase ninguém no prédio. Ali, trata todos com cordialidade. Seu humor só azeda quando não consegue o que quer. Nesses momentos, fica mais evidente seu tique nervoso, que o faz parecer um galo de briga: empina o queixo e, no alto, mexe nervosamente a cabeça para os lados. Ao sentir-se prejudicado, costuma recorrer à Justiça. Há quem diga no seu escritório que ele se reúne mais com advogados do que com clientes e colaboradores.
Apesar do porte elegante e esguio, nunca foi de esportes. O motivo, parece, seria mais psicológico do que físico: “O Julinho não disputa nem palitinho para não correr o risco de perder, de ser derrotado”, explica um amigo. O sentimento de derrota ficou-lhe estampado no rosto no dia seguinte ao furto de telas de Picasso e de Portinari do Masp, em dezembro passado. Três meses depois, sofreu um drama familiar horrível. Um desastre de automóvel tirou a vida de um neto, filho de Cecília, aos 18 anos. Passou semanas abalado.
Mas voltou ao vigor. “Ele se impõe metas e as cumpre”, lembrou Raia. Não deixa passar nada sem que olhe e quer participar de tudo no museu. Chegou até a revisar um texto do Luiz Marques sobre o tríptico doado por Aloysio de Andrade Faria: “Pega o dicionário aí, pois essa palavra está estranha”, gritou para uma das secretárias (o que não impede que o nome de Mindlin esteja grafado errado no site do museu).
“O Julinho não escuta ninguém”, completou Raia, “mas é como um déspota esclarecido: no fundo, ele faz a coisa certa.” Que o digam seus funcionários: ele paga em dia e todos possuem carteira assinada, uma raridade entre os escritórios de arquitetura.
No mesmo grau que o Masp perdeu público (em 1997 foram 850 mil visitantes, contra 226 mil em 2004), seu escritório perdeu projetistas nos últimos anos. Se no final da década de 90, no “maior escritório de São Paulo”, havia cerca de 40 arquitetos, hoje sua equipe tem cerca de seis profissionais. Por outro lado, recentemente morreram seus dois principais arquitetos: um criava e outro aprovava. Para seus colaboradores, é lugar-comum a máxima: “Com o Masp, o escritório ficou em segundo plano.”
O relógio marcava quase 21 horas quando Ulisses abriu a porta da BMW. Como de costume, o arquiteto levou algo para avaliar com calma no escritório de casa. Entre os encargos que estão em sua mesa, o mais polêmico é a cobertura de parte dos rios Pinheiros e Tietê, principal proposta eleitoral do amigo Paulinho, mais uma vez candidato à prefeitura. Maluf e seu arquiteto pretendem resolver a questão do trânsito apostando no automóvel e, de quebra, dificultando ainda mais a relação da cidade com seus rios. É esperar o horário eleitoral para saber dos detalhes da idéia. Por falar em eleição, Neves anda espalhando que não será mais candidato à presidência do Masp, na assembléia que deverá ocorrer entre setembro e outubro. Dependendo do resultado dos dois pleitos, seu escritório novamente poderá alcançar seu antigo esplendor.