No mundo desconfiado e brutal das obsessões patriarcais, a humanidade não é composta senão, com perdão da palavra, de filhos-da-puta.
Casmurro abre o jogo
Em apenas um capítulo, o cavalheiro tolerante e refinado sutilmente se transforma em patriarca suspeitoso e primitivo
Roberto Schwarz | Edição 27, Dezembro 2008
Como esta é uma homenagem a Machado de Assis, vou falar da qualidade do trabalho artístico dele, que é verdadeiramente excepcional e não é fácil de notar. Os capítulos de abertura dos seus romances são obras-primas, um melhor que o outro. A sua sutileza é tão grande que freqüentemente passa despercebida. Eles requerem uma espécie de atenção absoluta que não estamos acostumados a dar à prosa. Dizendo de outro modo, eles pertencem à tradição nova – começada com Flaubert – do romance escrito com os cuidados até então reservados à poesia. Vamos ler a primeira página de Dom Casmurro e vocês vão ver do que estou falando:
Do Título
Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei num trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que, como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso.
– Continue, disse eu acordando.
– Já acabei, murmurou ele.
– São muito bonitos.
Vi-lhe fazer um gesto para tirá-los outra vez do bolso, mas não passou do gesto; estava amuado. No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro. Os vizinhos, que não gostam dos meus hábitos reclusos e calados, deram curso à alcunha, que afinal pegou. Nem por isso me zanguei. Contei a anedota aos amigos da cidade, e eles, por graça, chamam-me assim, alguns em bilhetes: “Dom Casmurro, domingo vou jantar com você.” – “Vou para Petrópolis, Dom Casmurro; a casa é a mesma da Renania; vê se deixas essa caverna do Engenho Novo, e vai lá passar uns quinze dias comigo.” – “Meu caro Dom Casmurro, não cuide que o dispenso do teatro amanhã; venha e dormirá aqui na cidade; dou-lhe camarote, dou-lhe chá, dou-lhe cama; só não lhe dou moça.”
Não consultes dicionários. Casmurro não está aqui no sentido que eles lhe dão, mas no que lhe pôs o vulgo de homem calado e metido consigo. Dom veio por ironia, para atribuir-me fumos de fidalgo. Tudo por estar cochilando! Também não achei melhor título para a minha narração; se não tiver outro daqui até ao fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor. E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua. Há livros que apenas terão isso dos seus autores; alguns nem tanto.
Não vamos esquecer que essa passagem é uma explicação do título do livro, oferecida pelo próprio autor, ou pseudo-autor. De início assistimos à tensão ligeiramente cômica entre dois cavalheiros num vagão de trem, uma espécie de guerrilha de esnobismo.
Um, o mais velho, que é o narrador, quer que o deixem tranqüilo. Outro, mais jovem, quer entabular conversação. O mais velho é reservado e distinto, e preza a privacidade a que as pessoas civilizadas têm direito num trem. Ele se defende dos passageiros metidos.
O mais moço é um morador do bairro e se comporta com a familiaridade normal entre vizinhos, familiaridade à brasileira, que não incomoda senão os pretensiosos. Mas sem-cerimônia não é inferioridade, e também ele aspira à distinção, à condição superior, de gentleman: a conversa sobre a lua e os ministros e a declamação de versos – tudo chavões acanastrados, que indicam a gente distinta – são a prova disso.
Noutras palavras, a distância que o primeiro cavalheiro quer impor ao segundo é uma arrogância descabida. Ele fez por merecer o apelido de Casmurro.
O apelido tem sorte e pega. Os demais vizinhos do bairro, que nutrem o mesmo ressentimento contra o cavalheiro que não quer conversa, adotam o nome com prazer, para marcar a irritação com a pretensão aristocrática.
Pois bem, o viajante mais velho não se zanga e conta a história de suas desventuras de bairro aos amigos elegantes que vivem no centro. As futricas da periferia são assunto de conversação para a gente superior. Por sua vez, os amigos elegantes também se divertem com o apelido e passam a usá-lo.
Em conseqüência o próprio Dom Casmurro o acha simpático e decide adotá-lo como título das memórias que começa a escrever.
Recapitulando, o apelido a) se deve ao encontro casual entre dois passageiros; b) ele se firma devido a uma antipatia social, que opõe um bairro a um cavalheiro calado ou pretensioso; c) o apelido viaja a outro bairro mais fino, levado pela tolerância elegante desse mesmo cavalheiro, que gosta de contar a história; d) o apelido firma-se também no bairro mais fino, graças ao humorismo da roda dos amigos bem-postos; e) nessa altura a vítima do apelido acha graça nele, perdoa a intenção insultuosa e o adota em espírito de conciliação com o companheiro do trem.
Assim, o processo através do qual nasceu o título do livro é uma ostensiva lição de tolerância: ele envolve a superação da animosidade entre duas pessoas, uma animosidade que tem conotação de classe; envolve também a superação da birra entre bairro e centro da cidade; e mostra enfim que há gosto e charme em superar essas pequenas tensões.
Noutras palavras, o título do livro é o resultado de um processo em várias etapas, com acento na conciliação e na conservação: o apelido retém e combina algo dos diferentes instantes, das diferentes pessoas, das diferentes classes, dos diferentes bairros que o fizeram existir. Sem que as oposições se apaguem, nada se perde, tudo se conserva vivo e contribui à sua maneira, o que mal ou bem é um exemplo de harmonia.
Note-se também a parte importante do acaso nesse processo. Os passos que levaram à escolha não são guiados por nenhuma intenção marcada, nem por uma finalidade que os unifique. Eles vão acontecendo, mais ou menos à deriva. Essa é uma concepção realista do curso das coisas, sem as ilusões de uma providência superior, e sem pretensões de guiar o mundo. Aliás, a capacidade do narrador de adaptar-se às contingências da vida parece ser uma sabedoria, uma forma de elegância, de saber viver.
Note-se igualmente que o roteiro faz parecer irreais as fronteiras entre o “teu” e o “meu”, entre o que é de um e o que é de outro, e que essa suspensão tem uma beleza muito própria. De fato, o título de livro acolheu e acomodou razões de proveniência variada e oposta, sem corresponder a nenhuma com exclusividade. Repisando, ele foi se fixando através do choque casual entre intenções individuais, entre grupos sociais, entre bairros, sem ser devido a nenhum desses elementos em separado, e dando alguma satisfação a todos.
Ou melhor, ele é um resultado da vida da cidade ela mesma, com suas divisões – um resultado que veio a ser, sem ter sido buscado, e que é poético e generoso por isso mesmo.
Também aqui há uma espécie de sabedoria moderna, que consiste em viver mais com a cidade como um todo que com uma contabilidade estrita do que é devido a cada indivíduo em separado.
Até agora, o nosso comentário dessa tolerância do narrador, com o seu cavalheirismo particular, se deteve a três linhas do final do capítulo, quando o tom do argumento muda sensivelmente.
Na linha anterior à mudança, completando o processo de conciliação, o autor dizia: “Também não achei melhor título para a minha narração; senão tiver outro daqui até o fim do livro, vai este mesmo. O meu poeta do trem ficará sabendo que não lhe guardo rancor.” Ou seja, o poeta do trem incomodou o cavalheiro reservado, mas este aproveitou para título o apelido implicante que o primeiro lhe tinha posto, e ficam elas por elas.
Em seguida, contudo, entra a nota diferente, de escárnio: “E com pequeno esforço, sendo o título seu, poderá cuidar que a obra é sua.” A ironia sugere que é bem possível que o poeta do trem seja displicente, seja folgado em questões de propriedade, e isso naturalmente seria algo como uma apropriação, para não dizer um roubo. O narrador que não viu problema em tomar emprestado um título, logo em seguida imagina que lhe possam roubar a obra.
Em seguida, a última frase do capítulo: “Há livros que apenas terão isso de seus autores; alguns nem tanto.” A tolerância que não via mal na dimensão coletiva ou sem cerca da imaginação, e que até se comprazia nela, se transformou em seu contrário. As coordenadas da propriedade passaram para o primeiro plano: além do título (mas quem tomou emprestado o título?), o próprio corpo do livro pode não ser de quem parece. Há livros andando por aí que não têm de seus autores presumidos nem o título nem a substância. Ou ainda, inversamente, há autores andando por aí cujos livros não são seus.
A que corresponde esse tom escandalizado e amargo? Há uma vaga sugestão de caos, de vida desqualificada, atrás da idéia de uma vida fora das pautas da propriedade. A esta altura o autor está denunciando a ladroeira generalizada, a um passo de chamar a polícia.
A mudança de tom é abrupta, mas ainda assim é inocente: em fim de contas trata-se apenas das vaidades e dos pesadelos da autoria. Pois bem, se recordarmos que a obsessão de Dom Casmurro é a paternidade duvidosa, o argumento adquire conotações novas. Com efeito, essas ambivalências em relação à autoria são o primeiro anúncio, em surdina, do tema da paternidade incerta. Se substituirmos a palavra “livro” pela palavra “filho”, a temperatura sobe violentamente: “Há filhos que apenas terão isso (o nome) de seus autores (pais); alguns nem tanto.”
Aí estamos, no mundo desconfiado e brutal das obsessões patriarcais, em que a humanidade não é composta senão, com perdão da palavra, de filhos-da-puta.
A transformação súbita do cavalheiro tolerante e refinado em patriarca suspeitoso e primitivo é um movimento central de Dom Casmurro e da visão que Machado construiu da elite brasileira.