IMAGEM: BETO NEJME
O imperador de São Paulo
A história de Nicolau I, pela graça de Deus Rei do Paraguai, Imperador dos Mamelucos, Senhor do Rio Janeiro e do Uruguai, socorro dos seus Vassalos e terror dos seus Inimigos.
Fernanda Verissimo | Edição 29, Fevereiro 2009
Memórias recentemente chegadas do Novo Mundo permitem-nos apresentar ao Público o famoso Nicolau I, Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos. Acreditamos que sua história será ainda mais interessante ao descobrirmos, assombrados, um homem ambicioso, nascido numa choupana, conceber os mais vastos projetos, seguir um plano bem traçado, que seria o orgulho dos mais experientes Políticos, prever os inúmeros inconvenientes que se oporiam às suas intenções, analisar o coração dos homens, fazendo por meios escusos com que sirvam a sua grandeza, & assim alçar-se do estado mais abjeto ao poder supremo.
Esta obra servirá também para provar a verdade desta máxima: Que os grandes celerados são quase sempre homens geniais, & que aquele que morre sobre o cadafalso talvez fosse incluído no Templo da Imortalidade ao lado de Heróis amigos da humanidade e da Pátria, se a virtude tivesse exercido sobre seu coração o poder que sobre ele exerceu o crime. Que General de Exército, que Ministro, que Cromwell!, se não fosse ele um fanático, & se sua mão, em vez de acariciar a hidra da rebelião, tivesse combatido pela boa causa. Tantos outros audaciosos, cujos nomes fazem hoje tremer o bom cidadão, seriam modelos de coragem & de fidelidade se inspirados pelo patriotismo, & se não houvessem ultrapassado os limites do rigoroso dever.
Com esta introdução, e depois de um aviso ao leitor que garantia a veracidade de tudo o que se ia contar, começa a Histoire de Nicolas I, Roy du Paraguay et Empereur des Mamelus, uma fantástica aventura em terras americanas que se tornou best-seller na Europa do século XVIII, registrado em gazetas, publicado em pelo menos quatro idiomas e comentado por Voltaire. O livreto, cuja primeira edição é de 1756, é anônimo e mal escrito, mas traz nele algumas das grandes questões da época, num cenário que já era parte da imaginação coletiva européia: a América dos jesuítas e dos conflitos entre portugueses e espanhóis. Conta a história de um pequeno trapaceiro espanhol que chega ao rio da Prata como missionário e acaba rei dos guaranis e imperador dos paulistas.
É uma entre as muitas novelas picarescas que circulavam na época, contando as peripécias de aventureiros audaciosos que percorriam o mundo. Afinal, ser aventureiro na Europa do século XVIII era quase uma profissão, um talento do qual Casanova não é o menor exemplo. Entre personagens reais e fictícios há reis da Córsega, condes da Albânia e uma série de impostores que batem as estradas do Velho e do Novo Mundo. Histórias contadas com a preocupação de parecerem autênticas, com datas e nomes completos, recheadas de informações históricas que lembravam eventos reais.
À história de Nicolau corresponde a época da “guerra guaranítica”, em que as notícias chegadas das Reduções jesuítas davam conta da revolta dos índios com o tratado de limites entre portugueses e espanhóis. E para muitos leitores, Nicolau I era de fato real. Na biblioteca de Guita e José Mindlin, o manuscrito de um padre com notícias sobre o Paraguai fala de um capitão de navio que chega a Montevidéu e não quer desembarcar por medo de Nicolau, e de marinheiros surpresos quando descobrem que o Rei do Paraguai não passa de invenção. Diverte-se também ao contar que em Roma, no ano de 1758, foi perguntado “muy seriamente en que estado quedavan en la America las cosas del Rey Nicolau“. Voltaire faz referência ao suposto rei em duas cartas de 1756, e finalmente nega a sua existência noutra carta, alguns meses depois. A narrativa era suficientemente difundida como fato para que Robert Southey, autor da primeira história do Brasil (publicada em Londres no início do século XIX), achasse necessário falar dela e declará-la falsa. Como fato ou ficção, o relato fez tal sucesso que mereceu continuação em suas edições italianas, com mais um capítulo sobre o Império paulistano de Nicolau.
A saga de Nicolau começa como a trajetória de um típico bandido de folhetim e vai ganhando contornos épicos. Depois de roubar pai e mãe, viver do jogo, frequentar a Igreja para seduzir viúvas beatas, assaltar nas estradas, entrar na Companhia de Jesus para fugir da polícia e ter vida dupla como padre e marido de uma jovem inocente, ele se vê obrigado a deixar a Espanha para evitar a cadeia ou o cadafalso. Junto com missionários jesuítas, parte para Buenos Aires. Na Colônia de Sacramento, lidera alguns índios amotinados e expulsa os europeus da cidade. Vai tomando gosto pelo papel de déspota e vê seu exército aumentar com todo o tipo de selvagem, entre guaranis e europeus, presentes na região. Com a reputação de monstro consolidada por mais alguns massacres, chama a atenção dos brasileiros de Piratininga, que o convidam para Imperador. Nada mais apropriado: afinal, os mamelucos de São Paulo eram as figuras mais odientas das cartas e relatos enviados pelos jesuítas. Com o mau hábito de caçar seus escravos entre os índios da Companhia de Jesus, nossos bandeirantes eram para os padres “gente atrevida, belicosa e sem lei, que só tem de Cristãos o batismo, e mais carniceiros que os Infiéis”, “nem os Mouros, Judeus ou hereges se portam com tanta insolência, desumanidade e tirania”, dizem os missionários. Assim, não é surpresa que a “detestável Colônia Brasileira de São Paulo”, como a descreve Ludovico Muratori em seu Cristianesimo Felice de 1752, encontre no Infame um monarca a sua altura. A seguir, trechos das aventuras de Nicolau I:
Nicolau se faz proclamar Rei do Paraguai
Nicolau, orgulhoso de um sucesso tão fulgurante, ousou atribuir-se o nome de Rei do Paraguai. Os Índios, que acreditaram estar liberados para sempre da dominação dos Europeus, o saudaram com fortes gritos & vivas demonstrações de alegria. Foram mesmo cunhadas nesta ocasião várias Medalhas, vistas com indignação na Europa. A primeira destas Medalhas mostra de um lado Júpiter fulminando os Gigantes, & do outro se vê o busto de Nicolau I com estas palavras: Nicolau I. Rei do Paraguai. A segunda Medalha mostra um combate sangrento, com os atributos que caracterizam a fúria & a vingança. Na epígrafe se lê estas palavras: A vingança pertence a Deus, & àqueles que ele envia.
Conquistas de Nicolau I
Encorajado por esta primeira Vitória, & ainda mais pela atração do butim, Nicolau sonhava com novas Conquistas. Muito teria desejado tomar Buenos Aires: mas acreditando-se muito fraco para tal empreitada, virou suas armas em direção às Reduções. É assim que se chamam os estabelecimentos que os Padres Jesuítas formaram no meio destes países bárbaros. Foi para a Província do Uruguai que lançaram pela primeira vez os olhos para a grande obra que planejavam. Seu desejo era o de conquistar para J.C. tantos vastos territórios, onde o verdadeiro Deus não tinha sequer um adorador. Nada tão grande, tão heróico quanto este projeto; era digno do zelo o mais apostólico, deste zelo, de fato, que só a Religião pode inspirar & sustentar em meio aos maiores perigos.
A Província do Uruguai situada a leste do Paraguai é cercada por uma cadeia de montanhas ao pé das quais se vê uma fértil e aprazível campanha, que um rio cujo nome foi dado a este país banha num espaço de quase 250 léguas. É nas encantadoras margens deste rio que os Missionários estabeleceram as primeiras Reduções. Contam-se hoje mais de trinta, compostas cada uma de mais de 700 ou 800 habitantes. É com sofrimentos inacreditáveis que os Missionários conseguiram civilizar estes miseráveis Índios & ensiná-los a cultivar a terra. Tiveram finalmente êxito com tempo, zelo & paciência; e há Redução que supere muitas cidades da Europa pela admirável Ordem ali observada, pela força de seus habitantes, pela abundância das coisas necessárias à vida, & mesmo pelas riquezas. É verdade que são alguns particulares que têm o supérfluo, enquanto a outros cidadãos faltam as coisas mais necessárias à vida.
Foi para aquele lado que Nicolau dirigiu sua marcha. Quando saiu da Ilha San Gabriel, tinha às suas ordens cerca de 5 mil homens, todos gente determinada & pronta aos maiores crimes. Mas fizera apenas 50 léguas terra adentro quando uma inacreditável turba de bandoleiros de todas as Nações, Europeus e Índios, veio oferecer seus serviços a um Chefe tão digno. Nicolau os recebeu com distinção, proporcional à audácia & intrepidez deles. No entanto, como se via à frente de quase 18 mil homens, acreditou ser melhor dividir este Exército em dois Corpos, & ladear em duas Colunas o rio do Uruguai.
Um tal Mario, que havia conhecido na Espanha, pareceu-lhe capaz de ter sob seu comando 5 mil homens que separou do grosso do Exército. Este Mario tinha servido algum tempo em seu país na qualidade de Sargento, & partira porque, tendo desertado várias vezes, merecia a morte de acordo com as Leis da disciplina militar.
Deve-se admitir que foi uma felicidade para Nicolau ter encontrado tal homem em meio aos desertos do Paraguai, pois como ignorava totalmente a arte da guerra, seus Índios, por não entenderem as evoluções militares, marchavam e combatiam em desordem. Foi o que levou Nicolau a parar próximo a São Dominique, Redução vultosa que arruinou inteiramente, a fim de que Mario pudesse disciplinar aqueles Bárbaros, dividi-los em Companhias, ensiná-los a se unir em combate, a marchar avante, a reconhecer seus Oficiais, & a darem atenção às diferentes ordens que recebiam, a fim de executá-las fielmente.
Nicolau, entretanto, que ainda não era mais do que um Rei confundido na multidão, decidiu adotar ornamentos apropriados a sua nova dignidade. Cobriu os ombros com um manto escarlate cujos botões eram de couro dourado. Tinha um largo cinturão de seda verde, decorado com vários pedacinhos de vidro; o que é um grande ornamento neste país. Em seu flanco tinha suspensa uma grande faca que só fora manchada com o sangue dos seus, pois quando se o ofende, ele sabe fazer justiça da maneira mais terrível. Contam-se até 160 Índios mortos pela sua própria mão por não terem, na ausência de inteligência, bem executado suas ordens. Ele escolheu igualmente Guardas que o escoltavam com um fausto ridículo no meio dos desertos do Novo Mundo. Ele exigia ainda ser carregado por Escravos, & era uma honra ser escolhido para tão nobre emprego. Um Europeu precedia este cortejo pomposo, com a espada alta & ameaçando de morte a quem não obedecesse ao Rei seu mestre.
Combate entre Nicolau I & quatro Reduções que o perigo reuniu
A marcha deste Rei fantasma lançou a consternação no seio das Reduções. Os Missionários sabiam o que tinham a temer de uma tropa de furiosos que não respiravam mais que o sangue e a carnificina. Com a tempestade prestes a descer sobre eles, reúnem-se e deliberam sobre o que deveriam fazer para conjurá-la. Foi resolvido que iriam ao encontro de Nicolau para tentar obter que não atacasse os pobres Índios que nunca o haviam ofendido, & que de nenhum modo se opunham a sua passagem.
Escolheu-se para este efeito oito Missionários que se fizeram seguir de 100 robustos Índios carregados de refrescos, & de tudo aquilo que havia de mais precioso nas Reduções. Assim que chegaram próximo do campo de Nicolau, dois Missionários avançaram com confiança e pediram para falar com o Chefe.
Estes Missionários foram conduzidos à tenda do Capitão da Guarda. Era um inglês que havia atravessado o mar para manter certa distância entre ele e o cadafalso. Depois de fazer esperar longamente os Deputados, apareceu enfim, & recebeu os Padres com um desdém insultante. É o que bem lhes convém, disse-lhes em espanhol, ousar resistir ao maior Rei do Mundo. Se ele acreditar em mim, os exterminará a todos. Tendo um dos Padres tentado responder que jamais pretenderam se opor a Nicolau, que vinham suplicar-lhe para não serem tratados como Escravos, o Capitão o interrompeu brutalmente, ordenando que o seguissem.
Havia uma barricada tripla em torno da tenda de Nicolau. Eram grandes trincheiras de uma profundidade surpreendente. Trezentos Índios acantonavam-se no fundo de cada fossa. No centro desta circunvalação estava uma tenda, ou edifício móvel. Só podia ser alcançada por três saídas opostas entre elas. Este bandido acreditou ter que tomar estas precauções para a segurança de sua pessoa, & para inspirar naqueles que o criaram o respeito por sua própria obra.
Os Missionários, enfim introduzidos no local onde Nicolau dava audiências, foram por ele recebidos com aquele ridículo aparato de grandeza que um vil Chefe de Ladrões acreditava possuir, imitando mal o cerimonial da Corte de Espanha, onde ele nunca conhecera mais do que escudeiros.
Os Jesuítas, buscando conformar-se aos costumes do lugar onde estavam, e dobrar um Bárbaro que adicionava ao orgulho Espanhol a ferocidade de um Selvagem, aproximaram-se dele respeitosamente e fizeram este discurso:
Ilustre Chefe de um Povo livre, os Índios que são vossos Irmãos e que temem vossa cólera nos mandaram para dizer-vos: o Deus que adoramos protege aqueles que não cometem injustiças. Quereis reduzir à escravidão os infelizes que não possuem outras riquezas que aquelas que arrancam da terra avara? Nós vos enviamos frutos que nossas mãos laboriosas colheram em lugares onde anteriormente só havia espinhos e serpentes. Possam estes presentes campestres vos ser agradáveis, & desviar por sobre nossas cabeças as flechas de vossos assustadores Guerreiros. Os Hábitos Negros [os jesuítas] nos garantem que sois nosso irmão em J.C. & que não quereis nos perder.
Nicolau respondeu em poucas palavras: “Que as Reduções não se oponham a minha passagem, ou respondereis por isso. Deus abandona este país àqueles que sabem combater e vencer.”
O rumor das vitórias de Nicolau tendo chegado até os Mamelucos, estas gentes deputaram-lhe uma célebre Embaixada & o convidaram a ir a São Paulo, para lá estabelecer a sede de seu Império.
A Cidade de São Paulo, que chamam igualmente Piratininga, situa-se para além do Rio de Janeiro, & em direção ao Cabo de São Vicente, na extremidade do Brasil. Foram os Portugueses que construíram esta cidade; mas mal se haviam instalado, aconteceu com eles o que acontecera aos antigos romanos: faltaram-lhes mulheres. Viram-se assim obrigados a tomá-las junto aos Índios. Destes Casamentos bizarramente combinados nasceram crianças com todos os defeitos de suas mães, & talvez os de seus pais, sem nenhuma de suas virtudes. A segunda geração estava já em tal descrédito que as Cidades vizinhas temeram cair em desgraça se continuassem a viver em comércio com gentes tão corrompidas. Para marcar o supremo desprezo que tinham por eles, foi-lhes dado o nome Mamelucos, sob o qual eles são conhecidos desde então.
Já há muito tempo livraram-se do jugo de Portugal & não obedecem mais aos Governadores enviados a este país pelo Rei mui fiel. Formou-se então nesta Cidade uma espécie de República, que tem suas Leis & seu Governo particular.
Ainda é bom salientar que esta Cidade se formou como a Roma antiga, do rebotalho de todas as Nações. É o asilo de todos aqueles que fugiram dos suplícios devido a seus crimes, ou que procuram levar impunemente uma vida licenciosa. Os Negros fugitivos, os Ladrões, os Assassinos, estão certos de serem ali bem recebidos.
Nicolau I reconhecido Rei do Paraguai e Imperador dos Mamelucos
Não devemos nos surpreender que os Mamelucos, impressionados com o brilho das conquistas de Nicolau, tenham a ele oferecido a Cidade de São Paulo & a Coroa Imperial. Estas gentes, que viviam elas próprias de bandidagens, ficaram bem à vontade para se ofertarem a um Chefe qualificado. Foi na Ciudad Real que os Enviados de São Paulo o encontraram & a ele fizeram as ofertas mais brilhantes e mais lisonjeiras.
Nicolau apressou-se a ir para esta Cidade. Encarregou um de seus principais Oficiais de construir viaturas às margens do Paraná, & de carregá-las com o butim imenso que ele havia embarcado sobre este rio em Balsas e Barcos de transporte que se usam neste País. Quanto a ele, partiu à frente de 6 mil homens de elite & fez sua entrada em São Paulo a 16 de Junho de 1754, com toda a pompa de um grande Rei que triunfa sobre seus inimigos, após terminar uma guerra justa & legítima. Diz-se que a 27 de Julho seguinte ele foi coroado Imperador dos Mamelucos na principal Igreja de São Paulo (pois há nesta Cidade muitos Religiosos, mas bem pouca Religião) & que todos os Habitantes lhe juraram fidelidade. Divulga-se ainda que ele os faz trabalhar sobre um Código de Leis apropriadas sem dúvida aos costumes & ao caráter do Soberano & dos Sujeitos. De resto, como não sabemos nada de mais detalhado sobre Nicolau I & que esperamos continuamente novas Memórias, daremos continuidade a esta História assim que as tivermos recebido.
Mesmo que a fortuna tenha sempre acompanhado Nicolau em seus desígnios, Ele continua a ser vigilante e cuidadoso, não deixando passar uma ocasião favorável para ampliar seu Império, e se assegurar de sua posse. Na cidade de São Paulo, ele ingressou a 16 de Junho de 1754 e ali ficou até o 19 de Agosto, ou seja, até a mudança de estação: já que depois da metade deste mês, na América Meridional, entre a Linha e o Trópico de Capricórnio, acaba o Inverno, o que num país quentíssimo não deixa de ser bastante incômodo, especialmente à noite, por causa de ventos bastante frios, que do Mar Magelânico se espalham por toda a extensão da América Meridional.
A cidade de São Paulo era fornida de muitos víveres quando ali entrou aquele Usurpador. Mas devendo com esses sustentar não somente os habitantes e seus Escravos, mas todo o Exército, uma parte do qual chegara no dia 17, logo se teriam consumido todas as provisões, sem algum prudente regulamento proporcional à vastidão dos desígnios. Assim, em 18 de Junho, Nicolau convocou uma grande Assembléia de Caciques, ou Chefes da Cidade de São Paulo, que eram dezesseis, onze dos quais eram Mestiços originários da região, assim descendentes daqueles primeiros Portugueses, que ali se estabeleceram. Os outros cinco eram dois Ingleses, Peter Cooper e John Disney, um Francês, chamado Antoine de Forville, um Espanhol, dito Francisco Alvarezza, e um novo Português chamado Antonio Vasco.
Este congresso foi realizado na grande Sala do Palácio da Cidade, onde já vivia o Governador de Piratininga, ou de São Paulo, antes que os habitantes o expulsassem para viverem independentes. Nicolau, depois de todos reunidos, apareceu na Sala, precedido de 24 Soldados com mosquetes ao ombro, após os quais vinha com espada desembainhada um Capitão da Guarda chamado Giorgio Uvager, e depois Nicolau vestido com um casaco rico em brocado, presenteado com donativos daqueles Deputados que convidaram Nicolau na Ciudad Real a tomar o comando dos Mamelucos. Seguiam Nicolau seis jovens Escravos quase nus com arcos e flechas e em seguida oitenta outros Soldados.
Estava nesta Sala o Trono, e a uma distância deste uma grande mesa coberta com um pano de algodão vermelho e em torno alguns banquinhos cobertos com peles que haviam sido roubadas de um Mercador Inglês, que as havia traficado na Baía de Hudson e havia em quinze meses costeado a Nova França, o Canadá, o México, a Guiana e o Brasil até São Sebastião, onde, tendo se refugiado de uma tempestade, ao mesmo tempo em que os Mamelucos ali faziam uma incursão, foi por estes surpreendido e ali perdeu a vida e os seus produtos.
Dois Ingleses, com os quais falou o Autor destas memórias, e que estão agora em São Paulo, eram marinheiros deste desafortunado Mercador, chamado Henry Hancock, cujo Navio foi saqueado em Outubro de 1753.
Voltando ao Usurpador, sentou-se ele no Trono e aos pés deste se colocaram ajoelhados sobre o primeiro degrau os dezesseis Deputados. Doze Soldados perfilavam-se a cada lado e o Capitão da Guarda estava em pé no terceiro degrau do Trono. O dito Capitão fez sinal para que entrassem dois Intérpretes os quais, depois de algumas curiosas cerimônias de genuflexões e inclinações, se colocaram ajoelhados ao lado do Trono sobre a terra nua. Então, Nicolau fez aos Deputados este discurso:
Fiéis Súditos e Amigos Caríssimos
Tendo o Céu vos inspirado a me chamar ao vosso Reino para governá-lo, ampliá-lo e defendê-lo dos insultos dos vossos Inimigos, eu rapidamente, deixando aos meus corajosos Capitães o peso da guerra e a honra da vitória, vim a vossa Cidade, para nela fundar um Império que se torne mais ilustre por todo o Novo Mundo do que é célebre o Reino de Espanha e de Portugal no Mundo Velho. Para isto vós, que sereis sempre a base do meu Trono, e as gemas da minha coroa, resolvereis aquilo que é necessário para a segurança da Pátria, para o sustento da minha armada, para a opressão de nossos Inimigos, e pela glória do novo Império, querendo eu ser mais vosso Pai do que Soberano. O nosso Secretário virá tratar convosco e vos prescreverá os Artigos, sobre os quais devereis debater, e Nos trará as resoluções que tereis tomado, para que tenham força de Lei inviolável quando forem aprovadas por Nós e da luz de nosso Trono tenham recebido resplendor e decoro.
Estas palavras foram ditas em língua espanhola por Nicolau, e traduzidas em seguida em dialeto Indígena pelos Intérpretes, que as fizeram ler por aqueles Deputados que pouco ou nada compreendiam daquela língua.
Antes de começar a sessão, foi trazida a todos uma refeição de milho, frutas e de aguardente, da qual bebeu primeiro o Secretário, ajoelhando-se em direção ao Trono e bebendo à saúde de Nicolau, e fizeram o mesmo os outros. Vinte Escravos, que haviam trazido a refeição, levaram de volta as sobras.
Nestes dias intermediários, Nicolau visitou as fortificações da Cidade e as duas Armarias. Em uma dessas encontravam-se 74 Canhões, 45 de bronze de diferentes calibres e os outros de ferro, mas poucas balas, onde de súbito deu a ordem de que fossem fabricadas pelos Escravos. Havia ainda mil mosquetes, mas a maior parte antiga, que se acendia com pavio, e uma quantidade prodigiosa de arcos e de flechas, muitas delas envenenadas. Os depósitos de pólvora eram abundantes, tanto que depois de visitá-los disse Nicolau àqueles que o cortejavam: Com estas ajudas, e com Súditos assim fiéis, o nosso Império se dilatará bem rápido nas terras dos nossos Inimigos.
No dia 27 retornou Nicolau ao Trono com as devidas cerimônias. Depois fez distribuir muitos presentes dos despojos das Reduções dos Padres Jesuítas – facas, tesouras, alfinetes, espelhos e também moedas –, não somente aos Deputados, mas igualmente a todas as famílias da Cidade; pelo que causou uma alegria tal que, à noitinha, passeando o Usurpador pelos bairros mais populosos, não se ouvia outra coisa que não fossem aclamações festivas ao novo Imperador.
No dia seguinte, passeando como de costume com uma cana-da-índia que levava nas mãos, tocou alguns jovens que haviam corrido para vê-lo passar. Estes foram em número de 51, que tiveram ordem de estar na Corte ao retorno do Imperador. Eles obedeceram, e deles Nicolau escolheu 24 para servirem como seus pajens, e mandou os outros a suas Casas, depois de lhes dar um pequeno presente.
Também nos dias precedentes Nicolau havia visitado as suas tropas, e estava presente ao exercício com o qual eram disciplinados para deixá-los mais aptos à guerra. Neste dia, depois de ter dado a morte ao Capitão, disse aos mesmos Soldados que os habitantes de São Paulo eram seus amigos, e Irmãos, e que do exemplo do Capitão aprendessem com qual rigor seriam punidos os insultos feitos aos seus novos Súditos.
Nos dias subsequentes nada aconteceu de singular, além de ter feito matar, em 2 de Julho, 17 Escravos, isto é, infelizes Índios das Reduções já subjugadas e que, longe 1 légua de Piratininga, enquanto fugiam, foram surpreendidos por um corpo de Milícia de 400 Homens, que batiam a Campanha. Além disso, fez cortar as cabeças de dois Religiosos da Companhia de Jesus, um Sacerdote Francês, chamado Padre Luigi Sorel, e um Laico dito Salvatore Lancia, Siciliano. Pretendeu Nicolau que ambos tivessem animado os Índios para a fuga.
No dia 9 de Julho, Mario, Lugar-tenente geral de Nicolau e que se havia separado com a segunda Coluna, escreveu a Nicolau uma Carta na qual dava-lhe conta de suas conquistas.
Mario havia saqueado sete Reduções localizadas entre o Uruguai e o Mar, ou seja, San Cosimo, Cristoval, La Visitazione, Gesù Maria, San Giuseppe, San Carlo e Santa Teresa, mas não pudera submeter algumas outras como Santa Anna, porque os Neófitos retirados nos montes haviam sempre repelido os atacantes com muita perda de Homens. Prometia na Carta mandar em breve uma grande parte do butim, e pedia instruções para o regulamento de tantos milhares de Escravos, cuja custódia se tornava pesada para o seu Exército.
Nicolau intimou os Caciques Deputados da Cidade, e fez crer que queria os seus conselhos. Assim, deixou naquela ocasião a formalidade do Trono, e se contentou com uma Cadeira distinta, da qual admitiu ao beija-mão os Deputados, que depois receberam ordem de se sentarem. O resultado desta conferência foi a resposta dada a Mario, cujo título era este: Nicolau, pela graça de Deus Rei do Paraguai, Imperador dos Mamelucos, Senhor do Rio Janeiro, e do Uruguai, socorro dos seus Vassalos, e terror dos seus Inimigos, a Mario de Torres, Lugar-tenente das suas Armadas saúda.
Nesta resposta, ordenava-se a Mario de deixar presídios nos lugares de maior importância, de fornecer cada lugar de Presídio com provisões de comer e de guerra, e com um número suficiente de Escravos, os quais, no entanto, não fossem habitantes do lugar presidiado, e de apressar a sua marcha em direção a Piratininga para ali estar na Coroação do Imperador, fixada para o 27 de Julho, e de trazer todas as bagagens e os Escravos. Três Índios com um Português haviam levado a Carta de Mario a Nicolau, o qual no retorno ordenou que dois Capitães e vinte Soldados acompanhassem o seu despacho.
No dia 13, escoltado por 3 mil Soldados, se foi Nicolau a visitar as plantações e fábricas de Açúcar, e da erva Chamini, nas quais são empregados muitos milhares de Escravos, governados tiranicamente por alguns Oficiais, aos quais preside um Cacique, que presta contas a dois Deputados da Cidade.
No dia 16 do mesmo mês de Julho intimou de novo os Caciques Deputados da Cidade, e disse a eles que preparassem a Igreja maior de São Paulo para a sua Coroação, e que se entendessem com o seu Secretário. Com isso se reuniram no dia seguinte, e na Assembléia foi chamado o Cônego da Igreja maior dedicada a São Paulo Apóstolo. Este se chama Don Martino Ulloa, velho de 64 anos ordenado Sacerdote, e declarado Cônego de São Paulo pelo Monsenhor Fra Giuseppe Peralta, Bispo de Buenos Aires, na visita feita à Cidade de Santa Fé, De Las Corrientes e outros lugares por ordem do Rei Católico. Prometeu grandes coisas ao dito bispo este Cônego; mas parece que aprova com a sua conivência o costume de assassinar os vizinhos, e de fazê-los Escravos, já que Esse próprio tem vinte Escravos, e toma a sua parte no butim recolhido nas expedições acima mencionadas.
Seguiu no dia estabelecido, 27 de Julho, a Coroação de Nicolau, conquanto não fosse ainda chegado Mario com a sua tropa, mas apenas mil de seus Soldados mandados como escolta de 6 mil entre cavalos, bois e vacas todos carregados de despojos recolhidos pela tropa de Mario. A Coroação foi feita à semelhança daquelas que se costuma na Europa. O Cônego cantou a Missa solene na qual, depois do Evangelho, sentou-se Nicolau no Trono, e no terceiro degrau deste havia uma poltrona na qual se sentava o Cônego, que tinha sobre os joelhos um Missal aberto, e a este se aproximavam todos os Chefes de família, que se ajoelhavam frente ao Usurpador, subiam depois um degrau do Trono, e pondo uma mão sobre o Missal juravam fidelidade e obediência a Nicolau I, que chamavam seu único Senhor e Soberano.
A cada um foram dadas cinco moedas de ouro, uma de prata e três de cobre. De um lado havia o Retrato de Nicolau com estas palavras, NICOL. IMPER. REX INDIAR. S.A., e do outro havia um Sol com estas palavras em torno: Novis Orbis Restitutio. Dentro da Igreja se haviam postado com ordem muitos Soldados de Nicolau, e fora na praça enfileiraram-se seis Batalhões, que fizeram três vezes os disparos da mosquetaria, aos quais fez eco o disparo dos Canhões, que haviam sido dispostos nas fortificações da Cidade. Terminada a função enfileiraram-se os Soldados em fila dupla da Igreja até o Palácio, ao qual retornou Nicolau entre as aclamações dos Cidadãos de São Paulo.
A 4 de Agosto chegou a São Paulo Mario, comandante da segunda Coluna, que se havia separado de Nicolau para conseguir novos despojos e Escravos. Todo o seu Exército se enfileirou fora da Cidade, e Mario, com 100 fuzileiros e 200 Índios com arcos e flechas, entrou e foi ao Palácio, no qual foi recebido publicamente por Nicolau, que estava sobre o Trono, ao qual se aproximou Mario, avançando com algumas genuflexões, e depois foi admitido ao beija-mão. Breves foram as palavras ditas por Mario, brevíssima foi a resposta de Nicolau, que se retirou com Mario e com o Secretário nos seus quartos, onde demoraram muitas horas em conferência secreta.
Na manhã seguinte foram registrados os Escravos que trazia Mario, que eram 25 600. Entre estes havia 3 200 Mulheres, 5 100 Crianças, e os outros, Homens de idade justa.
Foi feito ainda um registro de toda a armada, chegando, entre aquela de Nicolau e aquela de Mario, a 45 mil pessoas, distribuídas em dezoito Regimentos, dois dos quais eram de Soldados a Cavalo, e 6 mil Soldados que se diziam a Guarda de Corpo. Além destes 6 mil Soldados, havia 400 Guaicurus a Cavalo, ou seja, Índios selvagens que primeiro desciam das Montanhas para pilharem nas planícies do Paraguai, e que haviam destruído as prósperas Populações próximas da Cidade e da Diocese de Santa Fé. Estes 400 Soldados haviam descido de seus Montes para oferecer a Nicolau o comando da própria Nação, e se haviam unido a Mario para serem por ele apresentados ao Usurpador. Nicolau quis vê-los no mesmo dia e fez a eles alguns donativos. Depois foram introduzidos no Palácio vinte Escravas Índias, e não somente por esta, mas também por outras precedentes ações, inferiu-se claramente que a incontinência não era o menor dos vícios que dominava o ânimo de Nicolau e de seus principais Ministros.
Nos dias seguintes fizeram-se todas as disposições para uma nova marcha de Nicolau com seu Exército para subjugar, como disse ele, os seus Inimigos, ou seja, para devastar e saquear aqueles infelizes vilarejos, destinados pelo justo desdém do Céu a serem presas deste Bárbaro.
No dia 18 de Agosto partiu Mario com oito Regimentos, mil Soldados a Cavalo e outros Soldados fora de ordem, chegando o total a 18 mil Soldados, acompanhados de 6 mil Escravos, e 8 mil Bestas de carga. No dia seguinte partiu Nicolau com o restante do Exército consistindo em nove Regimentos, 3 mil Soldados a Cavalo e outros Soldados a pé, calculando-se o número de 24 mil, além de 10 mil Escravos e 12 mil Bestas de carga. O restante dos Soldados foi deixado em São Paulo, sob o comando do Secretário, que recebeu o governo da Cidade, com ordem aos Caciques ou Deputados de obedecer-lhe e a instrução de formar novas Leis para o regulamento do novo Império.
Carta escrita de Madrid para Roma no dia 29 de Julho de 1756, e traduzida do Espanhol:
Todas as novidades que chegam do Paraguai são funestíssimas, e além da devastação de muitas Reduções feita com barbárie inaudita por Nicolau, e por seus Ministros, que corre da Ilha de San Gabriel até Piratininga, ou São Paulo, onde se fez coroar, e proclamar Imperador dos Mamelucos e Rei do Paraguai no Mês de Julho de 1754, muitas outras crueldades se ouvem que tenha praticado em Setembro e em Outubro do mesmo ano; já que em dois meses devastou como uma torrente San José, San Ignacio, Nossa Senhora de Loreto até San Francisco Saverio. Muitos miseráveis Índios retiraram-se para o outro lado do rio Paraná, nos montes; mas muitos mais se fizeram presas, ou vítimas deste Bárbaro, que leva aonde quer que vá o medo e a desolação. Em princípio de Outubro havia mandado um seu Capitão dito Mario de Torres em direção à Capitania do Rio Janeiro, para tentar tomar posse de São Salvador, mas aquele Comandante em uma emboscada estraçalhou 4 mil Soldados deste Bárbaro, o qual ameaça com a mais cruel vingança. O comandante Português, no entanto, colocou a sua Cidade em estado de defesa, e é homem de muita coragem e de experiência consumada.