O sabor do pecado
Os pastéis paulistanos ganharam um tempero proibido
Bruno Moreschi | Edição 32, Maio 2009
Do alto de seus 117 quilos, uma mulher de 53 anos segura a imensa colher de pau que chacoalha uma mistura proibida na cidade de São Paulo. O esconderijo é sua própria casa, um cortiço de parede azul-clara no bairro da Bela Vista, a cinco quarteirões da avenida Paulista. A hora da operação: cinco da manhã. “Desculpa por não dizer o meu nome. É que as coisas estão ficando cada vez mais perigosas pro meu lado”, afirma. Tentando ajudar, avisa logo que tem um apelido de uso liberado: dona Vina – de vinagrete, o tempero que mais orna o pastel de feira.
Não há nada de inconfessável na receita de Vina. Para preparar os 150 litros semanais de vinagrete, ela usa 30 copos longos de azeite de oliva, quinze de vinagre, além de 75 tomates, 45 cebolas e 32 pimentões verdes, bem picados. De diferente ali, só a coragem da única preparadora e distribuidora de vinagrete das Zonas Sul, Oeste Central e Norte, onde se espalham 432 feiras de rua. A Zona Leste, com 351 feiras, está fora da jurisdição de Vina, e conta com produção própria do tempero. “Sou assumidamente ilegal”, proclama, com a sinceridade dos que se abrigam no anonimato, segundos antes de entrar na sua Belina ano 1991 e partir em direção a praça Roosevelt, seu centro de distribuição.
Em 1º de agosto de 2002, a Prefeitura de São Paulo, então sob o comando de Marta Suplicy, resolveu se preocupar com a procedência de vinagres, maioneses, catchups, mostardas e demais aditivos culinários, cuja origem, muitas vezes, é mais desconhecida do que a cor dos bigodes de José Sarney. A lei municipal nº 13999 proibiu o uso em feiras de rua de qualquer condimento que não tenha passado pela vistoria da Vigilância Sanitária. Na teoria, só deveriam se salvar os sachês industrializados – aqueles saquinhos infernais que são impossíveis de abrir sem lambuzar as mãos e a roupa. Na prática, ninguém se importou com a 13999, e os pastéis, cachorros-quentes e afins continuaram a receber filetes ilegais de temperos variados.
As autoridades também fizeram vista grossa para os pruridos sanitários da prefeitura, e os molhos correram soltos até janeiro de 2008, quando um fiscal mais diligente apareceu de supetão na barraca de pastéis da japonesa Yoki Yamata. “Foi chocante. Ele me multou em 49,45 reais”, lembra Yoki, com precisão de centavos. Movida por espírito de corpo, ela prontamente disparou o celular pré-pago para todos os pasteleiros que conhecia. Em poucas horas, a notícia se espalhou.
Um mês depois do choque de ordem levado a cabo pelo fiscal pioneiro, a lei municipal parecia entronizada nas feiras de São Paulo. Raros foram os feirantes que ousaram peitá-la. Potes semitransparentes de maionese e catchup foram substituídos pelos indefectíveis sachês. Mas clientes continuavam a pedir o bom e velho vinagrete, cujos mistérios ainda escapam à indústria alimentícia, incapaz, até agora, de produzi-lo comercialmente. Vina percebeu uma brecha na cadeia produtiva e se apresentou. Disse que poderia preparar vinagrete por sua conta e risco. Cobraria 5 reais por litro. Para encorajar clientes mais ariscos, citou seus seis anos de currículo impecável, como fornecedora de vinagrete para a feira mais chique de São Paulo, a do bairro de Higienópolis. E foi assim que os pasteleiros voltaram à normalidade.
São contraventores, mas disfarçados. Há regras não escritas, essenciais ao bom funcionamento da atividade ilegal. Na hora de pedir vinagrete, o usuário deve saber à qual etiqueta obedecer, posto que os códigos variam conforme a feira. Uma coisa é certa: o freguês desavisado que, sem mais, nem menos, pedir para provar o tempero proibido, receberá em resposta um “não” tão fulminante quanto definitivo. É necessário sutileza. Toda terça-feira, na rua Herculano de Freitas, no centro de São Paulo, as quatro barracas de pastel reservam o vinagrete a quem sabe pedir direito, no caso, com um discreto movimento do dedo indicador. O gesto tem lá seu rito. Convém morder primeiro o pastel, com o cuidado de praxe para não se queimar com o vapor quente, e aí apontar silenciosamente para o recheio. O potinho de vinagrete aparece no balcão, como se fosse uma marionete. Manda a educação ser rápido na hora de se servir, porque a lei pode andar por perto, à espreita.
Na feira da rua Gastão Madeira, Zona Norte, às sextas, os dedos da freguesia se expressam em ritmo de samba. A cada cinco minutos, o pasteleiro avisa, cantando: “Quem quer do fruto proibido que bata no balcão, que bata no balcão…” E, ao som da batucada, o vinagrete se materializa.
Na feira em frente ao estádio do Pacaembu, às terças, quintas, sextas e aos sábados, a barraca de Augusto Almeida é a que mais congrega famintos – foi indicada pelos guias gastronômicos como o melhor pastel da cidade. O quitute não sai por menos de 2,50 reais. Se o freguês pingar uns trocados a mais, geralmente na hora do troco recebe, como cortesia da casa, uma embalagem com a dose individual do tempero.
O vendedor de bananas Ronaldo de Oliveira tentou – infelizmente, sem sucesso – mobilizar os pasteleiros paulistanos para que todos adotassem um só código, a ser repassado aos clientes fiéis, para todo o sempre. Por conveniência, o sinal sugerido por ele era o mesmo usado na sua feira, na rua Antonio Coruja, todas as quintas. Por ali, pede-se vinagrete suspirando uma frase nostálgica, geralmente “Ah, como era bom quando tinha vinagrete nas feiras…”.
Viver sob a marca do vinagrete tem os seus riscos. Em fevereiro, barracas na Vila Fanton e em Santa Cecília foram multadas por uso ilegal do tempero. Em algumas ruas, o clima ficou tão carregado que os pasteleiros simplesmente fingem não reparar no giro de indicador/tamborilada de dedos/frase nostálgica do freguês. No ramo, atitude semelhante pode configurar quebra de contrato. Há feirantes perdendo clientes por não respeitarem as regras elementares de quem se expôs para conseguir o molho. Pelo sim, pelo não, desde o mês passado Vina transporta sua porção mágica não mais em plásticos transparentes, mas em sacos pretos. Mas nem por isso se considera de luto. Ela garante que tais detalhes “só acentuam o gosto ácido do vinagrete”.