Fajardo da GB (29/11/1992 – 18/02/2009), em óleo sobre tela de Marleen Felius IMAGEM: MARLEEN FELIUS_WWW.MARLEENFELIUS.NL
Fajardo, in memoriam
Vida e obra de um bovino espermático
Roberto Kaz | Edição 32, Maio 2009
Ao meio-dia do último 18 de fevereiro, numa fazenda a duas horas de São José do Rio Preto, estado de São Paulo, falecia um touro. Seu nome era Fajardo – Fajardo da GB, para ser mais preciso. Tinha 16 anos recém-completados. Dali a minutos, a notícia correria o país.
“Eu estava na estrada, dirigindo, quando tocou o telefone”, contou Ricardo Abreu, gerente da central de inseminação onde o touro passara os últimos onze anos. A ligação vinha de Helder Galera, dono do animal, que anunciava com voz combalida: “Foi infarto. A família aqui está muito abalada.”
Entristecido, Abreu incumbiu-se de avisar a veterinária Lúcia Helena Rodrigues, sua companheira de trabalho, responsável pela saúde do touro desde que ele chegara à central. Ela estava em reunião, prontamente interrompida para que pudesse atender o chamado. Ao saber do ocorrido, suspirou: “Pelo menos foi rápido. Meu medo era que ele precisasse ser sacrificado por causa da artrose.” Lúcia desligou o telefone com certeza de que a bovinocultura, tal como existira até então, jamais seria a mesma. O futebol sem Pelé, as corridas sem Senna, o boxe sem Jofre, o tênis sem Guga, o basquete sem Oscar. A pecuária sem Fajardo.
Fajardo nasceu em 29 de novembro de 1992, de parto normal, no pequeno município de Jales, quase divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul*. Fruto da união entre a vaca Bailarina e o touro Idilio, passou a infância no rebanho do pequeno criador Inoel Ramos da Silva, já falecido. Aos 15 meses, foi escolhido para participar da 25ª Facip – a Feira Agrícola, Comercial, Industrial e Pecuária – de Jales. Por ser ainda um touro iniciante, sem privilégios, calhou de dividir o mesmo galpão com bovinos da Fazenda Eldorado, de Helder Galera, à época um jovem pecuarista de 30 anos. Sem que soubesse, fora posto nos domínios do seu futuro dono.
Três dias antes da exposição que elegeria o melhor novilho, Galera resolveu vistoriar os espécimes que trouxera para a feira. Foi quando bateu o olho em Fajardo, um bovino sem expressão marcante, ainda distante dos mil quilos. Levado apenas pela intuição, Galera pediu ao tratador que levantasse o animal, para que pudesse analisar sua anca, sua musculatura e o diâmetro do seu saco escrotal – pré-requisitos básicos em um touro de qualidade. Gostou do que viu, e soube que o animal estava à venda. Só faltava juntar o dinheiro: 10 mil dólares.
“Naquela época, o Helder ainda não tinha um rebanho importante. Precisava de um bom touro para emprenhar as vacas da fazenda”, contou o cunhado dele, Ricardo Demétrio, numa quarta-feira recente, na Fazenda Eldorado (por razões de saúde, Helder Galera não pôde colaborar com a reportagem). “Aí ele foi direto pro pai, pedindo autorização para comprar aquele animal”, completou. O pai autorizou. Galera vendeu algumas vacas da família para dar fundo ao cheque que estava prestes a assinar. No meio da articulação, foi surpreendido por uma notícia: Fajardo sagrara-se campeão da feira de Jales.
“Ninguém imaginava que isso fosse acontecer. O Fajardo já tinha sido premiado numa outra exposição, mas coisa pequena”, lembrou Demétrio. A faixa caía feito uma bomba no projeto de Galera. “De repente, fazendeiro que nunca tinha visto o Fajardo estava oferecendo três vezes mais do que o Helder.” Aflito, Galera procurou Inoel Ramos da Silva, que ainda detinha os direitos sobre o animal, na esperança de que palavra dada era palavra empenhada. Ao ouvir que o trato continuava de pé, prometeu: “Seu Inoel, se esse bicho virar um grande campeão, eu volto aqui para doar as primeiras doses de sêmen ao senhor.” No ano seguinte, com o touro já condecorado pela Associação de Criadores de Nelore do Brasil com o galardão de Melhor Macho Jovem, Galera cumpriu a palavra: reencontrou Inoel trazendo, em mãos, o sêmen prometido.
Dali a nove meses, período de uma gestação bovina, nasceriam os filhos de Fajardo – os primeiros de outros 275 mil que o touro teria em vida.
Fajardo era da raça mais populosa do Brasil, a Nelore, perfazendo dois terços dos 195 milhões de bois em atividade no país. A história da linhagem remonta a 1878, quando Manoel Lemgruber, um industrial em viagem à Alemanha, se interessou por quatro bovinos expostos no zoológico de Hamburgo. Ao saber que eram originários da Índia, Lemgruber intuiu que, em razão da semelhança climática entre os dois países, os animais talvez pudessem se adaptar ao Brasil. Resolveu trazê-los.
Até então, a pecuária nacional caminhava a passos lentos. A maior parte dos bois datava da colonização portuguesa e era uma mistura de animais africanos e europeus. “Como ainda nem existia vermífugo ou antibiótico, eles pegavam todos os tipos de doença”, diz o fazendeiro Paulo Lemgruber, sobrinho-neto do pioneiro Manoel. “Não sobreviviam por mais de um ano.”
Chegando ao Brasil, Manoel Lemgruber levou os quatro animais – Hanomet, Piron, Gouconda e Victoria – para uma fazenda próxima a Petrópolis, onde começou a mesclá-los com o gado que lá havia. “Cento e trinta anos atrás, cruzava-se tudo com tudo. Não tinha isso de raça definida”, conta Paulo. Com o tempo, o rebanho foi se “anelorando”.
No final da década de 1930, os governos da Bahia, Espírito Santo, Alagoas e Pará começaram a comprar os touros anelorados para distribuí-los pelas fazendas, no intuito de fecundar o maior número possível de vacas. Resultou disso um rebanho mais resistente – o Nelore é, por excelência, um animal rústico, de fácil adaptação a adversidades de terreno e clima. A resistência, porém, era conseguida graças à miscigenação, e como a pecuária vive de raças puras, o Nelore corria o risco de desaparecer no cadinho de sangues plebeus. Melhor era ter gado mais aristocrático, como o Gir e Guzerá. “O que salvou a nossa linhagem foi a importação de 1962”, contou Paulo.
Em 1960, diante do crescimento desordenado de touros anelorados, chegou-se à conclusão de que era necessário depurar a raça. Um grupo de pecuaristas embarcou rumo à Índia no intuito de prospectar novas matrizes que azulassem o sangue nacional. Levaram 21 meses de pesquisas em cidades grandes e vilarejos para selecionar 240 cabeças de gado. Na viagem de volta, a bordo do navio Cora, estava o touro Karvadi, tetracampeão indiano e campeão asiático da raça.
“O Karvadi era tão conhecido que, na época, toda repartição pública da Índia tinha uma foto dele e outra do primeiro-ministro”, contou – repetindo o que talvez seja uma lenda urbana – Marco Aurélio Colete, representante de vendas da Central VR, onde o touro indiano viveu após chegar ao Brasil. Somado à beleza e à fertilidade, Karvadi foi o bovino certo no lugar certo. Em 1968, seu proprietário, Torres Homem Rodrigues da Cunha, inaugurou uma das primeiras centrais de inseminação artificial do Brasil. Enquanto a maioria dos touros continuava fecundando in natura, Karvadi entrou para o modelo fordista. Em pouco tempo, o sêmen do touro era vendido em todo o Brasil – e a linhagem Nelore tomava a dianteira das outras. A raça, segundo Colete, se divide entre “antes e depois do Karvadi. Noventa por cento do rebanho de hoje tem sangue dele”. Fajardo era seu tataraneto.
ASCENSÃO
De acordo com uma instrução normativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, touros em coleta de sêmen são obrigados a viver em centrais. A Associação Brasileira de Inseminação Artificial tem, hoje, dezesseis delas na sua lista de associados, nas quais se abrigam cerca de 600 touros.
No dia 18 de março de 1998, Fajardo pisou pela primeira vez na central de inseminação CRV Lagoa, a meia hora de Ribeirão Preto, onde passaria os onze anos seguintes. A chegada mereceu divulgação entusiástica em quatro revistas do ramo. “Um troféu para a Lagoa da Serra e para a pecuária brasileira”, dizia o anúncio publicado pela central de inseminação. A imagem mostrava o touro folheado a ouro, como se fosse, de fato, um troféu. O texto continuava: “Colocamos à sua disposição Fajardo da GB, um consagrado tricampeão de vendas de sêmen, com 130 mil doses comercializadas, mais de 37 mil só em 1997.”
À época, com 5 anos de idade e 1 162 quilos, Fajardo já era um touro de renome. Em 1994, sagrara-se grande campeão da Expoinel de Uberaba, uma das principais feiras pecuárias do país. Em 1997, em razão da qualidade de seus filhos, conquistara o título de Melhor Reprodutor Nelore pelo ranking da Associação dos Criadores Nelore Brasil. “O Fajardo foi a primeira contratação de peso que fizemos quando a Holland [grupo internacional de aprimoramento genético] se juntou a nós no Brasil”, diz Ricardo Abreu, gerente de produto corte Zebu da CRV Lagoa.
Se comparado ao mundo do futebol, um touro equivale a um jogador; uma central de inseminação, a um time; e o pecuarista, ao proprietário do passe. Quase sempre, o contrato entre um touro e uma central tem a duração de dois anos, podendo ser renovado indefinidamente. Quando o touro está em início de carreira, o proprietário recebe 20% do valor do sêmen negociado. À medida que o animal ganha notoriedade – e a disputa por ele aumenta –, cresce o poder de barganha de quem detém seus direitos. Reprodutores consagrados rendem aos seus proprietários até 50% da receita que geram.
Antes de ser contratado pela Lagoa, Fajardo passou dois anos produzindo sêmen na central ABS Pecplan, em Uberaba. “No dia em que ele ganhou a Expoinel, recebemos uma chuva de convites. Ele foi direto da exposição para o trabalho”, contou Ricardo Demétrio, o cunhado de Helder Galera. Lá, sob os cuidados do veterinário Fernando Vilela Vieira, Fajardo ganhou a maior parte dos seus prêmios: “Foi aqui que ele chegou a mil quilos. Foi aqui que ele foi eleito o melhor reprodutor. Foi aqui que ele foi projetado no mercado. E por causa de pouca coisa, o proprietário o levou para outra central. É muita ganância”, lamentou Vieira, por telefone. Taxativo, negou-se a descrever o período em que Fajardo viveu na sua central: “Tenho animais muito superiores. O mundo caminha. Não falo sobre touro da concorrência.”
Ao chegar na CRV Lagoa, Fajardo entrou em quarentena de dois meses, para identificar possíveis infecções. Atestada a sua saúde ocupacional, foi encaminhado ao piquete E3, um dos mais espaçosos, com 400 metros quadrados. Como vizinhos, tinha os touros Enlevo (segundo Ricardo Abreu, “o animal mais bonito daqui”), Xangô (“Touro jovem, que está virando uma marca”) e Ranchi (cuja “cota” de 50% – ou seja, metade de cada pata, chifre e gota de sêmen – foi vendida no ano passado por 1 milhão de reais). “O Fajardão ficava na Oscar Freire da Lagoa”, relembra.
O piquete, individual e protegido por cerca elétrica, era parcialmente coberto para abrigá-lo da chuva. Fajardo tinha a seu dispor um belo gramado – “para o bicho lembrar que é um ruminante” –, seis aspersores – “para jogar água em dias de calor” – e um cocho, no qual se alimentava. A dieta era composta de 30 quilos diários de feno, silagem de milho, ração protéica e suplemento mineral, com abóbora. Segundo Abreu, Fajardo possuía uma apólice de seguro no valor de 300 mil reais: “Mas era apenas pro forma“, apontou. “O verdadeiro seguro desses animais é o sêmen.”
Sêmen, como vinho, tende a encarecer à medida que o touro envelhece. Há duas razões. A primeira, de ordem biológica: quando a idade do animal avança, a produção de esperma diminui – a redução da oferta encarece o produto. A segunda, de ordem especulativa: quanto mais idoso, maior a chance de o bovino ter filhos e netos premiados. Cada medalha que a prole recebe reverte em voto de confiança no patriarca. Em 2008, Fajardo foi considerado o quinto melhor reprodutor da raça. Poderia ter passado o ano sem fazer outra coisa senão pastar, pois o esforço não foi dele, mas de suas laureadas netas Brazlandia, Espanhola e Mary. O grande campeão de 2008 foi o touro Bitello da SS, com 160 filhos premiados. Ele está morto desde 2005.
Qual Quincas Berro d’Água, grandes reprodutores morrem e morrem. O primeiro óbito é real – e entristece familiares e funcionários que conheciam o animal. O segundo óbito, que ocorre quando o estoque de esperma acaba, é mercadológico – e entristece fazendeiros que sonhavam em ver suas vacas fecundadas por um campeão. Até desaparecer para sempre, um touro pode resistir por décadas no limbo genético, desde que seu esperma seja congelado em nitrogênio líquido, a 196 graus Celsius negativos. Da safra póstuma, o do tetracampeão indiano Karvadi continua a amealhar os preços mais altos. Uma dose – raríssima – do seu sêmen chega a 30 mil reais. Até a morte de Fajardo, um concentrado do seu esperma era vendido a 350 reais (cada dose pode gerar um bezerro).
No livre mercado bovinocultor, a dose de esperma equivale à ação. Se o sêmen de um determinado touro é vendido a granel, o resultado, a longo prazo, é a desvalorização do produto. O leiloeiro João Gabriel explica: “O Ludy de Garça deixou uma dinastia muito grande. Hoje, por risco de consanguinidade, poucas fêmeas podem utilizar o sêmen dele.” Assim que Fajardo morreu, a CRV Lagoa retirou o seu esperma do mercado. Em parte, para evitar a circulação excessiva do sêmen, mas também para gerar um sentimento de escassez. Gabriel acredita que o preço irá disparar: “Isso aqui é que nem mercado de arte. Quadro bom valoriza ainda mais depois que o artista morre.”
O universo bovino se divide em dois grupos: pista e produção. Fajardo pertencia ao primeiro deles, sem dúvida o mais aristocrático dos dois. Touro de pista é aquele em que o proprietário investe maciçamente, na esperança de transformá-lo num campeão de beleza que, posteriormente, lhe garantirá bons lucros com a venda de sêmen. Somando ração, hormônios, viagens e maquiagem nos dias de competição (tosar o pêlo, lixar os cascos, engraxar os chifres e passar purpurina no corpo), um animal de pista chega a custar 750 reais por mês. (Um boi sem privilégios não gasta mais de 60.) Em contrapartida a tanto luxo, um touro de pista tem a obrigação de perpetuar sua herança genética junto às futuras gerações – o que lhe vale a alcunha de “melhorador” ou, para ser mais preciso, “melhorador e geneticamente prepotente”. Ricardo Abreu explica que nem todo campeão se transforma necessariamente num melhorador: “Tem bicho egoísta, que guarda todas as qualidades pra si mesmo.” Quando descobre um farsante, Abreu o devolve à fazenda do dono: “Lá, ele vira carne. Carne moída, enlatada. Nem para pasto serve”, diz desgostoso.
Do outro lado da escala social bovina está o animal de produção, um pobre coitado que já nasce com destino certo: o abate, perto dos três anos. A esse animal – castrado e dócil – se dá o nome de boi mesmo. Quando um touro está em começo de carreira, e seu sêmen ainda é vendido a preços módicos, a maior parte dos seus filhos inevitavelmente vira boi. Vez por outra, algum criador mais abastado resolve fazer uma aposta: do seu plantel, pinça um boizinho pomposo – e ainda sexualmente ativo – na esperança de que, cinco anos mais tarde, o garrote se torne um touro espermático. Assim nascem as estrelas.
A partir do momento em que um touro consolida sua reputação – como no caso de Fajardo –, seu sêmen passa a ser comprado apenas por quem planeja usá-lo para criar um novo campeão. Mas como a apoteose tarda, Abreu acredita que pelo menos 70% dos descendentes de Fajardo – aqueles que tiveram a infelicidade de nascer antes de o pai chegar ao estrelato – terminaram num espeto de churrascaria. Em 2008, a pecuária de corte movimentou 5,3 bilhões de dólares em vendas para o exterior. O Brasil é o maior exportador de carne bovina no mundo.
Instalado na CRV Lagoa, Fajardo deu início à rotina que seguiria pelo resto da vida. Duas vezes por semana – terça e sexta-feira –, era despertado às seis da manhã pelo tratador Luís Eduardo Miguel. Ainda sonolento, o touro era banhado com água e xampu neutro da marca Ouro Fino. Recebia também uma lavagem prepucial, para evitar impurezas no esperma. Em seguida, Miguel o conduzia pelo cabresto até um piquete circular, onde Fajardo era aguardado por duas vacas que se revezavam para excitá-lo. Enquanto uma das fêmeas descansava, deitada sob a copa de uma árvore, a outra era obrigada a se colocar de costas para ele, oferecendo-lhe as partes íntimas. Ao contrário do bovino médio, que se entrelaça apenas com vacas no cio, Fajardo – assim como seus companheiros de faina – era capaz de se estimular em condições assim tão adversas. “Touro de central é condicionado a isso”, explica Ricardo Abreu.
A primeira fase da excitação passava pelo tato e olfato. Quando o tratador percebia que Fajardo já estava em ponto de bala, encaminhava-o à área de coleta, onde o touro aguardava sua vez enquanto assistia a seus colegas copularem – era a segunda fase, a da excitação visual. Quando convocado, escolhia-se uma vaca qualquer para lhe servir de fêmea. O touro montava nela e, no momento de penetrá-la, era interceptado pela vagina artificial – um cano de PVC lubrificado, revestido por uma bolsa de água a 45 graus, em cuja extremidade oposta se inseria um tubo de ensaio. O orgasmo, sem coito, era instantâneo. Ricardo Abreu acredita que, na sua longa trajetória, “Fajardo dificilmente fecundou uma vaca”. Pelo menos não segundo os códigos do mundo natural. Neste sentido, apesar das centenas de milhares de filhos, o reprodutor morreu virgem.
Depois do clímax, e de um pequeno descanso, reiniciava-se a bateria de excitação, para a segunda coleta. Ao meio-dia, após seis horas de trabalho, o touro finalmente voltava ao seu piquete. “Isso aqui é uma indústria. O animal tem que produzir”, esclarece Abreu. O resultado da labuta – dois tubos de ensaio – era encaminhado ao laboratório genético da própria central, comandado pela veterinária Lúcia Helena Rodrigues.
“O Fajardo sempre foi de altíssima qualidade no ejaculado. Quando eu olhava para o sêmen dele pelo microscópio, pensava: ‘Esse é dez!'”, conta a veterinária, na sua sala decorada por um retrato do touro Gim de Garça, falecido em 1995 (com 247 mil doses comercializadas, Gim foi a maior estrela da CRV Lagoa até a chegada de Fajardo). De acordo com Lúcia Helena, Fajardo era um touro “garboso, com estilo – não chegava a ser agressivo, mas também não gostava que mexessem na cabeça dele”. Lembrou que o bovino se mostrava competente em exposições: “Quando entrava na pista, sabia exatamente o que fazer. Tinha consciência de que era um animal importante.”
Na flor da idade, cada tubo de ensaio preenchido por Fajardo continha até 500 doses de sêmen, vendidas a 350 reais a unidade – preço fixado desde 2005. Multiplicando, uma única ejaculação podia valer 175 mil reais.
Quando chegou à CRV Lagoa, em 1998, Fajardo vendia seu sêmen a 20 reais. Os quatro anos seguintes foram de árduo trabalho e lhe valeram o prêmio Palheta de Ouro, concedido aos touros que atingem a produção de 250 mil doses. “Foi um grande orgulho, como ver um filho ou um sobrinho sendo condecorado”, relembra Lúcia Helena. O prestígio, no entanto, pouco contribuiu para o benefício dos dividendos: a dose passara a custar 28 reais, aumento discreto em termos pecuários. O pulo do gato, por assim dizer, ocorreu em 2003. O sêmen, que começara o ano sendo comercializado a 30 reais, já valia quase o dobro em dezembro. Em 2004, o crescimento foi exponencial: pulou de 50 para 140 reais. As crias de Fajardo haviam provado que o pai era um reprodutor estupendo.
Em agosto de 2005, a dose de Fajardo atingiu o piso atual: 350 reais. Em pouco mais de dois anos, o esperma tivera um aumento de quase 1 200%. A pecuária nacional vivia seu primeiro boom. “O ano de 2003 foi a época áurea do Nelore”, disse Ricardo Abreu. João Gilberto Bento, da Associação Brasileira dos Criadores de Zebu, concorda: “Foi o início da migração de empresários, artistas e industriais para esse ramo. Marcou o começo da revolução na reprodução.”
Até a década de 1970, a manipulação genética na pecuária se resumia ao universo masculino. Como a gestação bovina leva o mesmo tempo que uma gestação humana – e como a vida fértil do animal declina depois dos 12 anos –, as boas vacas podiam ter, no máximo, dez filhos. A partir dos anos 80, iniciou-se a transferência de embriões. Através de hormônios, estimulava-se a ovulação das vacas. Dois meses após a fecundação, os embriões eram extraídos e depositados em outros animais, as chamadas “vacas de aluguel”. O final dos anos 90 viu a transferência dar lugar à fertilização in vitro. Óvulos e espermatozóides passaram a se encontrar apenas em laboratórios, com altas taxas de sucesso. “Uma vaca pulou de dez filhos para cem”, resume João Gilberto Bento. Os preços dispararam.
Até a chegada maciça da fertilização in vitro, os grandes rebanhos pertenciam a famílias tradicionalmente ligadas ao campo, que já haviam dedicado mais de cinquenta anos aprimorando a espécie. “Ninguém entrava no negócio, pois era necessário levar esse tempo todo até ser reconhecido pelo mercado”, diz Bento. Depois, vacas e touros de alta estirpe – ou, mais especificamente, óvulos e sêmens da mais alta estirpe – se tornaram acessíveis a qualquer um disposto a investir. “Em três ou quatro anos, dependendo do investimento, o sujeito se tornava um grande criador”, conclui.
Em 2004, João Carlos Di Genio, dono da rede Objetivo e da Universidade Paulista, resolveu entrar de cabeça no mercado rural, pagando 2,24 milhões de reais por 50% da vaca Recordação, que passou a pertencer a ele e ao empresário Jonas Barcellos, ex-dono da rede Brasif – foi a transação mais cara da história da pecuária nacional. Em 2008, foi a vez de Barcellos e Di Gênio abrirem mão – em parte – de outro animal que tinham em conjunto. Por 1,5 milhão de reais, venderam um terço da vaca Elegance II a Amilcare Dallevo, dono da Rede TV!.
QUEDA
Em novembro de 2007, Fajardo completou seu décimo quinto ano de existência – idade excepcional para touros, que vivem em média treze anos. A comemoração, transmitida pelo Canal do Boi, contou com a presença de vinte funcionários da CRV Lagoa, que, sentados numa pequena arquibancada, cantaram parabéns enquanto o aniversariante se regalava com um bolo de feno. “Fajardo!”, “Valeu, Fajardo!”, “Viva”, gritaram alguns mais exaltados. Animada, a veterinária Lúcia Helena Rodrigues homenageou os donos do animal: “À família Galera, parabéns por esse filho maravilhoso, que também é nosso filho.” Em seguida, enfatizou que, mesmo em idade avançada, “ele ainda vem duas vezes por semana à área de coleta, mantendo a rotina de sempre”.
Pouco tempo depois, Fajardo começaria a definhar. Embora continuasse produzindo sêmen, já não conseguia escorar-se sobre as vacas. Para combater a artrose, tomava um complemento diário de condroitina, um suplemento alimentar que fortalece as articulações. Passou a fazer exames frequentes de sangue, sêmen e tuberculose. Vez por outra, recebia a visita de um técnico em raios X, que lhe radiografava as juntas. Os dentes começaram a cair.
No ano passado, Fajardo perdeu seu maior trunfo: a qualidade do sêmen. “Ele não conseguia mais atingir o padrão mínimo de espermatozóides viáveis, mas, como a saúde fisiológica depende da rotina, não mudamos o dia-a-dia dele. Do contrário, me sentiria como aquelas pessoas que abandonam o velho na cadeira, esperando que ele morra”, contou Lúcia Helena. Fajardo se aposentava com mais um galardão. Chegara ao teto da sua capacidade espermática: 480 mil doses, recorde nacional.
Em janeiro de 2009, Helder Galera telefonou para a veterinária avisando que pretendia levar Fajardo de volta à fazenda. Durante os onze anos em que o touro viveu na central, isso acontecera apenas uma vez, em 2001, em razão de um leilão organizado pela família Galera. “Da primeira vez que o Helder o levou, eu fiquei uma fera, porque sabia que o bicho ficaria muito estressado. Mas da segunda, não. Entendi. Ele ia lá para ficar com a mãe.” (Galera é dono da vaca Bailarina, de 21 anos, que deu à luz Fajardo. Foi comprada anos depois do filho, na esperança de gerar outros touros de igual talento, experiência que se provou infrutífera.)
No dia 12 de fevereiro, uma quinta-feira nublada, o pequeno caminhão da família Galera, com caçamba de madeira e teto de lona, estacionou na central de inseminação. Dentro, havia uma cama de feno e capim, para que o passageiro pudesse viajar com conforto. Fajardo foi retirado de seu piquete e levado, vagarosamente, em direção ao caminhão. Passou em frente ao laboratório de genética, à sede administrativa e a seus colegas de trabalho, que, indiferentes à cena, continuavam a ejacular como se não houvesse amanhã.
Entrou no caminhão. Viu a porta da caçamba se fechar e o veículo partir. Desembarcaria oito horas depois na Fazenda Eldorado. Emocionada, Lúcia Helena, que acompanhava tudo à distância, começou a chorar. “Às vezes eu brigo com os donos, dizendo que o touro é nosso por usucapião.”
Quem entra na Fazenda Eldorado é obrigado a assinar um termo de compromisso atestando estar “sem qualquer doença transmissível ou ferimento”, e se comprometendo a não “fumar, comer, cuspir e muito menos tocar em qualquer animal” enquanto estiver na propriedade. Confirmada a boa índole, o visitante recebe então o alvará para cruzar o portão. Um belo corredor de eucaliptos leva à sede.
A sala principal exibe quatro troféus recebidos por Fajardo, entre eles o da Expoinel 1994, que o revelou para o mundo. Na parede, há um imponente retrato a óleo do touro, de 1 metro por 2, pintado pela holandesa Marleen Felius, especializada em portraits bovinos e caprinos. Ao lado, uma série de fotografias registra as etapas da vida de Fajardo. Ricardo Demétrio, cunhado de Helder, aponta para uma imagem de quando ele ainda era novilho e acabara de ser adquirido pela família Galera. “Mudou tudo. Dessa imagem, só sobraram as duas árvores do fundo. O resto virou a sede”, contou. Nos últimos quinze anos, a fazenda passou de oito para 64 baias. Hoje, Galera possui quinze touros espalhados em três centrais de inseminação.
Fajardo desembarcou da sua última viagem na quinta-feira, no fim da tarde. “Foi um passeio tranquilo, numa rodovia boa. O caminhoneiro sabia a importância do que levava na caçamba”, contou Demétrio. Ao descer do caminhão, o touro foi conduzido à baia de número 47, de 25 metros quadrados, com proteção para chuva.
No dia seguinte, Helder e seu pai chegaram de viagem. Vieram expressamente para reencontrar o bovino. “A idéia era que, aqui, o Fajardo pudesse descansar. Ele teria outras companhias, respiraria outros ares. Viveria num piquete maior, mais próximo do que é natural para um boi”, lembrou Demétrio. “Não esperávamos que ele fosse morrer tão rápido. Queríamos lhe dar um final de vida mais digno.”
Na terça-feira que precedeu a sua morte, Fajardo finalmente se reencontrou com a mãe, Bailarina, a quem não via há quinze anos. “Era uma história bonita: mãe e filho juntos de novo”, contou Demétrio. Os dois foram colocados no mesmo piquete, de 3 mil metros quadrados. À noite, dormiram em baias separadas.
O dia seguinte nasceu ensolarado. Às seis da manhã, voltou-se a se dar o encontro entre mãe e filho. Fajardo e Bailarina retornaram ao piquete comum, e lá permaneceram enquanto o sol crescia. Na hora do almoço, o tratador William Nunes, que passava pelo local, percebeu que havia algo errado: “O touro estava em pé, babando mais do que o normal. Depois deitou, esticou os braços e as pernas, sem fazer barulho nenhum.” Nunes correu para chamar o veterinário, que nada pôde fazer.
Era meio-dia da quarta-feira, 18 de fevereiro de 2009. Fajardo morreu à sombra de um oiti.
POST MORTEM
Às três da tarde, o telefone de Fernando Chiavenato tocou em Curitiba. Depois de ouvir a notícia, Chiavenato pegou fita métrica e bisturi, e partiu em direção ao aeroporto. Após nove horas, dois vôos e um translado, chegava à Fazenda Eldorado. Como o trabalho requeresse urgência, varou a noite medindo e retalhando Fajardo. Às quatro da madrugada, conseguiu o que queria: a pele do touro, para empalhá-lo.
Nas semanas seguintes, a imprensa especializada noticiaria o óbito à exaustão. O Diário de Cuiabá foi um dos primeiros: “Morre Fajardo, ícone da pecuária de corte”. Seguiu-se a revista DBO: “Morre Fajardo, marco do Nelore moderno.” A publicação Globo Rural foi enfática: “Morreu o touro Fajardo da GB, uma legenda da criação de Nelore.” Em anúncio publicado na revista Nelore, a CRV Lagoa fez questão de lembrar que há vida depois da morte: “Um raçador nunca morre. Entra para a história.”
O corpo do touro foi enterrado em cova rasa, sem túmulo, lápide ou identificação. Ricardo Demétrio não vê problema: “A imagem que queremos guardar não é a do cemitério. É dele vivo, empalhado, por tudo que fez pela fazenda e pela raça Nelore.”
De acordo com a central Lagoa, Fajardo ainda tem 20 mil doses de sêmen armazenadas. Ao preço atual, valem 7 milhões de reais, sem descontar o imposto de renda.
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* Correção: 8 de junho de 2009.
A versão impressa da revista dizia “quase divisa entre São Paulo e Mato Grosso”, quando na verdade, se trata da divisa entre os estados de São Paulo e Mato Grosso do Sul.