Água dura em garrafa mole…
Os políticos e consumidores anunciam nos Estados Unidos a era da água encanada para enfrentar a mineral
Marcos Sá Corrêa | Edição 33, Junho 2009
Désolé, Perrier! O governador David Paterson decretou no mês passado que todas as repartições públicas do estado de Nova York se armem de bebedouros. Ele quer expulsar as garrafas de água, pois elas gastam dinheiro público com um produto industrial que, a rigor, ninguém fabrica. Em maio do ano que vem, ficarão definitivamente proibidas de comprá-las.
É mais um sinal dos tempos. Desde o ano passado, sempre que se ouve num restaurante nova-iorquino a pergunta que virou o prefixo musical de todas as refeições – “com gás ou sem gás?” – o prefeito Michael Bloomberg responde: “Cidade de Nova York.” Ou seja, a boa e velha água da bica. Em outras palavras: ciao, San Pellegrino!
Além de prefeito, Bloomberg é oficialmente o homem mais rico de Nova York. Ficou bilionário vendendo notícias frescas ao mercado financeiro. Anda ostensivamente de metrô, mas já foi flagrado pelo New York Times a caminho da estação, discretamente, em carros oficiais. E está muito à frente do presidente Lula em matéria de terceiro mandato, que as regras das eleições para a prefeitura proibiram e agora, numa reforma feita sob medida para Bloomberg, resolveram permitir. Está sempre em campanha – e a da água estava dando sopa. Com ela, retirou do orçamento municipal 6 mil garrafas.
David Paterson é um ex-procurador negro que herdou em 2008 a vaga do governador Eliot Spitzer, fritado num escândalo em que surgiu como cliente de uma rede de prostituição de luxo cujas integrantes custavam mil dólares por hora. Cortar os custos da administração estadual passou a ser uma das prioridades do vice, desde que pegou o resto de mandato com a crise mundial se armando pela proa. Tirar das contas públicas um supérfluo como a água de grife, em seu caso, também veio a calhar.
Depois da Virgínia e do Illinois, Nova York foi o terceiro estado a tirar a despesa com água engarrafada de seus custos administrativos. Os outros começam a fazer os cálculos. Connecticut põe 500 mil dólares por ano nessa rubrica. Massachussetts, 600 mil. Só a Universidade do Minnesota paga 180 mil dólares anualmente por garrafas de água.
Diante de tamanhas cifras, desde 2007 pelo menos sessenta prefeituras engrossaram a grande marcha oficial da volta aos bebedouros. Entre elas, pesos pesados da máquina pública, como Chicago, Miami e Filadélfia. São Francisco, uma das primeiras a reinaugurar a torneira, credita à decisão uma economia de 1 milhão de dólares.
Essa é uma briga de gente grande. Abaixo dos refrigerantes, a água é o produto que os americanos mais adquirem em garrafas. São pelo menos 32,5 bilhões de litros por ano, à razão de mil litros por segundo. Só no estado de Nova York circulam 2,5 bilhões de garrafas por ano, apesar da boa fama de seus reservatórios públicos, cujos encanamentos chegam a 95% da população e dão, com folga, para 21 milhões de pessoas, inclusive os visitantes. Essa rede de distribuição é complexa e cara. Mantê-la em bom funcionamento até meados do século custará nas próximas décadas quase 39 bilhões de dólares ao erário. E, com a moda de beber água de garrafa, a simpatia do contribuinte por estas obras vinha secando.
“Os cidadãos investiram bilhões de dólares em impostos pela certeza de que nós temos pura água potável em nossos canos, e eles precisam colher os resultados, usando essa água”, disse o governador Paterson, ao anunciar seu decreto. Sede insaciável é só a dos engarrafadores, que queimam por ano 17 milhões de barris de petróleo para fazer seus frascos de PET, e produzem 2 milhões de toneladas de lixo, em forma de plástico descartável – ou seja, eterno. O Estado passou a cobrar 5 centavos de dólar por cada frasco. Só devolve quando as garrafas forem comprovadamente recolhidas para reciclagem.
A história está do seu lado. Nova York tem água boa pelo mesmo motivo que o pão francês é bom. Basicamente, porque morreu gente para melhorá-los. Na França, quando a época das revoltas populares levou muito padeiro ao cadafalso, por suspeita de conspiração contra a economia popular, por alterarem a receita da massa, até que o Estado passou a regulamentá-la. E, para os nova-iorquinos, depois que atazanaram a cidade epidemias de sarampo, em 1729, de varíola, em 1731, e de febre amarela, em 1798, em que camelôs saíram às ruas vendendo caixões.
Com a praga sanitária, lavrava a corrupção política. O surto de cólera em 1832 encheu os bolsos do senador Aaron Burr, que prometeu trazer à cidade a água do rio Bronx e aplicou o dinheiro arrecadado para o empreendimento na fundação de um banco, o futuro Chase Manhattan. O problema já era sério em 1664, quando o governador holandês Peter Stuyvesant entregou Manhattan, sem luta, aos ingleses, atribuindo a rendição em seu diário a que o forte que deveria defender a ilha não tinha “poço nem cisterna”.
Abastecer Nova York foi uma saga contada pelo jornalista Gerard Koeppel no livro Water for Gotham, desde a fundação da cidade até o dia – em meados do século XIX – em que 64 quilômetros de aquedutos encheram com 170 milhões de litros de água do rio Croton o reservatório de Murray Hill, onde hoje se ergue a Biblioteca Pública de Nova York.
Ia uma longa distância desde o fim do século XVIII, quando a marquetagem da água brotou em Nova York antes da água propriamente dita. Naquele tempo, o tanoeiro Gerardus Comfort vendia em seus barris um líquido extraído de poço artesiano que ele anunciava como Água de Chá. Ou seja, um artigo mais nobre que a comum, tirada do Collect Pond, a mina a céu aberto onde curtumes, destilarias e matadouros despejavam seus resíduos. O New York Journal chamou-a de “esgoto” em 1785. E, quase quarenta anos antes, de passagem por Manhattan, o botânico sueco Peter Kalm, discípulo de Lineu, achou-a tão intragável que “nem os cavalos aceitam beber”.
Os políticos que, de costa a costa, deram ultimamente para se alinhar contra a água engarrafada têm, à retaguarda, o lobby incansável da Corporate Accountability International, uma ONG que denuncia fraudes em grandes negócios, com trinta anos de trincheira. Já investiu contra cigarros, comida de lanchonete e salários astronômicos de altos executivos no mercado financeiro. Seu lema é “desafiando abusos, protegendo pessoas”. Vive de donativos. E vende por 15 dólares garrafas de aço inoxidável que lembram cantis, com o selo de produto “orgânico” – seja isso o que for no ramo metalúrgico – e um rótulo com palavras de ordem que convidam o freguês a pôr sua cabeça para “pensar fora da garrafa”.
No ano passado, a prefeitura de Nova York investiu 700 mil dólares para promover sua água. Andam em voga por lá restaurantes que, na vanguarda da grã-finagem “politicamente correta”, segundo o jornal New York Post, passaram a recepcionar seus clientes com jarras de água gratuita e gelada, como se eles estivessem numa cantina grega ou numa trattoria italiana. “Pelo menos uma boa dúzia de restaurantes e hotéis baniu a garrafa”, dizia a reportagem, meses atrás.
São casas como o Del Posto, um lugar caro da Décima Avenida, no Meatpacking District, preferido de dez entre dez turistas, que vão a Nova York menos para ver do que para mostrar que são íntimos da cidade. O Del Posto ostenta em seu cardápio duas estrelas do guia Michelin e um certificado de “restaurante verde”. Um de seus sócios, Joseph Bastianich, considera “ridículo encher um cargueiro com água e despachá-lo através do Atlântico por centenas de milhares de milhas, para servir do outro lado”.
“Era uma farsa”, resume Donna Lennard, do Il Buco, um italiano do Greenwich Village que decidiu abrir a torneira há mais de uma década. O movimento contagiou hotéis caros, supermercados de quarteirão e até bancos, como o Goldman Sachs. Mesmo os estabelecimentos mais relutantes deram pelo menos o primeiro passo nessa direção. O Commodore Grill and Lounge, do hotel Hyatt, na estação Grand Central, trocou as garrafas importadas pelos filtros Natura, italianos legítimos, comprados a 6 dólares a peça.
Até uma engarrafadora entrou na onda. Com “charme local” e “gosto de sinceridade”, para se promover num mercado cada vez mais hostil, a Tap’dNY – cujo logotipo lembra uma abreviatura gráfica da frase de Bloomberg sobre as torneiras de Nova York – anuncia, com todas as letras, que tem dentro a água dos reservatórios municipais. A Tap’dNY quer ser a opção de quem, no momento, não tem a melhor escolha, que é pegá-la diretamente do cano. E sugere aos consumidores levarem para casa o frasco vazio como suvenir da cidade.
“Nós não viajamos o mundo, da França a Fiji, procurando água”, informa o fabricante. Explicitamente, o lugar mais alto onde ela aflora é a lanchonete no topo do edifício Empire State. Em contraste com empresas que “gastaram bilhões de dólares em marketing para nos fazer acreditar que precisamos de água exótica, em frasco elegante, vinda de remotas geleiras do Ártico, de ilhas tropicais ou de vulcões europeus”, seu trunfo é “o sistema público”. Segundo a Food and Drug Administration, isso acontece com 75% das marcas comercializadas nos Estados Unidos. Mas nem todas fazem alarde, como a Tap’dNY, de seu pedigree de vira-lata.
Ao contrário dos governos estaduais e municipais, que só têm a ganhar com o boicote, encostar as garrafas não sai barato para hotéis e restaurantes. Estima-se que eles embolsem lucros de até 400%, cada vez que tiram a tampa de uma mineral. Nenhum outro item do cardápio se valoriza tanto da prateleira à mesa, o que salpica no mercado um ganho extra de 200 a 350 milhões de dólares por ano. Paterson, aliás, invocou em favor de sua resolução o argumento de que a água de garrafa custa 500 vezes mais, em parte porque gasta quase 2 bilhões de litros de combustível para ir da fonte à boca, enquanto a outra viaja pelo cano quase sempre por gravidade.
Na impossibilidade de fechar essa conta pela simples matemática, há dois anos o programa 20/20, um semanário jornalístico da ABC News, foi em busca de suas fontes sociológicas. E concluiu que tudo “começou com a Perrier”, como disse na ocasião o âncora John Stossel. “De um modo ou de outro”, ele afirmou no ar, “a companhia francesa convenceu os americanos de que a água de garrafa era melhor”. A marca desembarcou nos Estados Unidos em 1910. Em 1976, passou a ser importada em grandes volumes pela Great Waters of France Inc. Atualmente pertence à Nestlé Waters North America. Até 2007, suas vendas cresciam em média 9% ao ano nos Estados Unidos. E, por osmose, puxou as outras.
Atrás delas vieram outros preciosos líquidos importados, como a San Pellegrino, da Itália, e a Fiji, do vale de Yaqara, em Viti Levu. E os similares nacionais foram no rastro do sucesso comercial. Despontaram nos Estados Unidos rótulos como Everest Premium, que vem de Corpus Christi, no Texas, Venus, “a água para mulheres”, e a Trump Ice, enfeitada com a efígie do magnata Donald Trump, o Roberto Justus do hemisfério norte. E, no auge desse festival aquático, a febre da empulhação mercadológica desaguou em The Water Connoisseur, um site para degustadores daquilo que os compêndios escolares definem como insípido, inodoro e incolor. Ele informa que quem abre hoje uma garrafa de Fiji toma as gotas de uma chuva que caiu há 450 anos, “quando Balboa descobriu o Oceano Pacífico”. Mas omite que suas garrafas são fabricadas na China por usinas de politereftalato de etileno, que precisam de 6,7 litros de água só para resfriar, nos moldes, o frasco de 1 litro.
Desde que a água subiu à cabeça dos marqueteiros, a Nestlé, dona da Perrier, passou a dizer em seu site que o hábito de bebê-la engarrafada tem 12 mil anos de herança cultural, pois remonta aos trogloditas que, presumivelmente, levavam estoques para as cavernas – quem sabe em bexiga de mamute ou outro ancestral pré-histórico do PET. Por sua história, passam até os elefantes e soldados das tropas do cartaginês Aníbal, que mataram a sede em suas fontes de Gard, no sul da França, antes de cruzar os Alpes para atacar Roma.
A verdade é mais atual. A garrafa da Perrier saiu mesmo foi da cabeça do inglês Saint-John Harmsworth, que comprou a fonte do médico Louis Perrier num momento em que as estâncias hidrominerais estavam saindo de moda. A garrafa tem a cor e a forma dos pinos de madeira que Hamsworth usava para fazer ginástica. E engarrafá-la foi uma maneira de driblar o lento declínio da medicina crenoterápica, com o fim dos tempos em que as pessoas iam aos spas para engordar, em vez de emagrecer, e bebiam em fontes carbonatadas, radiativas ou magnesianas para curar distúrbios digestivos, renais ou nervosos.
Mas Stossel, no 20/20, entrevistou nas ruas de Nova York pessoas que se diziam capazes de distinguir, no escuro, uma legítima Fiji de uma autêntica Dasani. Houve quem sentisse na água da bica o gosto de “vaso sanitário”. Todos consideravam a mineral mais saudável que a água encanada. O programa testou-os, fazendo-os comparar, sem saber, cinco marcas diferentes com a água de torneira. Ganhou, disparada, a American Fare, um produto quase genérico, vendido nos supermercados K-Mart. A francesa Evian, vinda de geleiras alpinas, tirou o último lugar. A encanada empatou com a Dasani, da Coca-Cola.
Como gosto não se discute, Stossel verificou também se a água de garrafa é, pelo menos, mais limpa. Consultado por indicação da International Bottled Water Association, representante legal dos engarrafadores, o professor de microbiologia Steven Edberg, da faculdade de medicina da Universidade de Yale, achou a pergunta “engraçada”. Os repórteres insistiram em saber qual era a principal diferença entre elas. “Ambas servem água”, respondeu Edberg.
Não é para menos. Uma das fontes da Aquafina, a água da Pepsi-Cola, é o rio Detroit. Ao todo, 36 agências municipais e o Departamento de Saúde da cidade de Nova York monitoram a água do estado, controlando seus índices de turbidez, contaminação química e micróbios patogênicos. Emitem um relatório anual sobre a qualidade da água. E publicam os resultados na internet, mais ou menos com os mesmos padrões do “código de conduta” adotado pelo sindicato dos engarrafadores.
O maior defeito da água encanada americana é não ser produto de exportação. Essa é uma disputa em que os brasileiros só podem torcer de longe. Aos cidadãos dos Estados Unidos que viajam para cá, o Departamento de Estado ainda avisa, com base em pareceres do Centro de Controle de Prevenção de Doenças de Atlanta, que aqui “a água engarrafada por uma fonte confiável é uma alternativa recomendável à água da bica”. Alô, alô, Minalba!
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