Adieu, mon bon petit grand cru!
O triste destino do vinho francês na era do quentão global
Marcos Sá Corrêa | Edição 36, Setembro 2009
O aquecimento global mudou da água para o vinho. Um relatório recém-publicado pelo Greenpeace denuncia, em quinze páginas de fundo acusatoriamente verde, ilustradas com fotografias de vinhedos e adegas que estariam à vontade nas colinas de Beaune ou nos meandros do Loire, que a mudança climática pegará pesado nas próximas safras, com “impactos devastadores” sobre rótulos e garrafas que gerações de produtores “levaram séculos para criar”.
Foi como tirar a rolha de um assunto borbulhante que, até há bem pouco tempo, quase todo mundo se esmerava em fazer de conta que só aconteceria com os outros. O vinho não corre esse perigo. Fora um abstêmio ou outro, quase todo mundo acha ultimamente que o assunto vinho é com ele mesmo. Ouvir que o gelo polar vai derreter e o nível dos oceanos subir é uma coisa. Pega bem se fazer de desentendido. Outra coisa, bem diferente, é ler no estudo do Greenpeace que “está ficando difícil fazer vinhos finos com uva Pinot Noir no seu território tradicional da Borgonha”.
Tal qual o Beaujolais Nouveau, o aquecimento global enfim se globaliza. Ganha o poder de invadir, sem a menor cerimônia, o mais sagrado recôndito de sua adega climatizada. Pode mesmo estar a caminho do Brasil, num contêiner, atravessando o Atlântico como o lixo da Inglaterra, em mais uma conspiração secreta do comércio exterior. Seria até falta de educação ignorar um manifesto que fala explicitamente em nome “da finesse e da élégance de seu terroir“, marcas inequívocas da origem controlada.
Touché! A notícia é tão bombástica – pardon, tão encorpada – que dispensou maiores coberturas da Semana Mundial da Água, ocorrida quase ao mesmo tempo em Estocolmo. No fórum da Suécia havia representantes de 130 países e um enxame de ONGs. Mas o assunto que os inspirava é, por definição, insípido, inodoro e incolor. Que graça tem encarar mais uma vez as estatísticas de que 93% das pessoas acreditam que a poluição da água é uma questão muito séria? Ou que 78% acham que o futuro da água potável depende da solidariedade internacional dos consumidores? Isso soa mais complicado que um enólogo falando de grand cru. E um grand cru, pelo menos, se regula por estatutos fundiários do Código Napoleônico, o que lhe dá uma considerável vantagem histórica.
Papo de água é uma aridez só. Foi moda no tempo em que as elites ainda frequentavam estâncias hidrominerais, trocando idéias com copos de sulfurosas na mão. O ultimato do vinho francês foi mais contundente. O documento do Greenpeace também mirou, como a Semana Mundial da Água, nos políticos e diplomatas que irão a Copenhague em dezembro para a nova reunião de cúpula sobre o clima – como sempre pautados pelos princípios soberanos que os obrigam a passar a perna uns nos outros, para que assim eles possam, todos juntos, empurrar as urgências da Terra com a barriga.
Pois agora é o paladar deles, políticos e diplomatas, que está em risco. Pelo que dizem os vitivinicultores franceses, se “as ondas de calor no verão e as tempestades de granizo de Bordeaux” continuarem alinhadas com a disparada anual dos termômetros, os efeitos da desordem climática serão sentidos nos coquetéis e banquetes das conferências em que se meterem depois de Copenhague. Tomando, quem sabe, Chardonnay da Groenlândia ou das Malvinas, quando as condições ideais para cultivo das castas mais finas se deslocarem, como eles prevêem, mil quilômetros para baixo ou para cima dos hemisférios.
Sem contar que “uma vasta faixa de vinhedos tradicionais, como os do Mediterrâneo, pode desaparecer”, previne o dossiê. O vinho já sobreviveu a mudanças pré-históricas do clima, migrando através dos paralelos para regiões mais propícias. Aliás, o vinho surgiu no Oriente Médio, onde hoje só tem deserto e lei seca. Aquela beberagem, no entanto, dificilmente seria considerada vinho e muito menos francês. E o que está em jogo, para o Greenpeace, não é só uma bebida, ou mesmo uma bebida especial, mas a essência liquefeita de costumes imemoriais, que se materializam numa palavra quase intraduzível – o terroir.
Não adianta procurar no dicionário, porque em geral eles passam por esse verbete de fininho. O terroir vem, sim, da mesma raiz latina de território. Mas, ao se afrancesar, e sobretudo ao se envolver com a confraria dos vinicultores franceses, incorporou as mais inefáveis expressões de narizes e bocas que parecem indispensáveis à arte de falar em código sobre esse artigo essencial de interesse público.
O Greenpeace bem que tentou. O terroir é “uma combinação de solo, fatores meteorológicos, uvas e experiência vinícola”, e sem o qual até a identidade comercial dos melhores vinhos franceses perde o sentido. Entram nesta receita ingredientes inamovíveis, como a floresta ao lado, o rio que passa perto, os grãos do solo, o cálcio da argila, a textura das pedras ou a finura da areia, sem esquecer a figura inimitável do francês de narinas prodigiosas e bigodes eólicos, que no tempo de seu avô já olhava aqueles 5 ou 6 hectares pensando que, um dia, aquilo tudo seria seu. É nisso tudo que se baseia, enfim, a tal da appellation contrôlée.
Mas quem irá controlar daqui para a frente a appellation de um terroir desfigurado pelo bombardeio transcontinental das usinas de carvão chinesas, dos automóveis americanos ou das queimadas na floresta amazônica? Com tudo isso caindo do céu sobre um produto que emprega na França 189 mil pessoas (sem contar os garçons), despeja anualmente 9 bilhões de euros no PIB e brinda com uns 8 bilhões de euros a pauta de exportação, só faltou o Greenpeace dizer: Adieu, bon petit vin!
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