Um banho carioca na estudante que veio do frio: a vida ordeira e programada na cidade natal de Podkowa Lesna lhe parece menos intrigante FOTO: ROGÉRIO REIS
Miojinho na cabeça polonesa
Entre carrinhos de supermercado, ônibus descontrolados, filmes-cabeça e frutas gigantescas, uma estrangeira descobre a graça do Rio
Marysia Wróblewska | Edição 37, Outubro 2009
MARYSIA WRÓBLEWSKA, de 22 anos, ou simplesmente Mária, assistiu ao filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles, na sua Polônia natal, quando concluía o ensino médio. Ficou fissurada. Obrigou namorado, familiares e amigos a vê-lo mais de uma vez. Escolheu graduar-se pelo departamento luso-brasileiro da Universidade de Varsóvia. Passou nove meses num programa de intercâmbio universitário no Algarve, em Portugal. E decidiu viajar até o Brasil para colher material para a sua tese de mestrado sobre o filme. Ficou um mês na cidade e aprendeu de cabeça o que é “miojinho”
RIO DE JANEIRO, DOMINGO, 21 DE JUNHO_Quando o avião desceu abaixo do nível das nuvens, fiquei olhando e olhando e olhando pela janela. Estava apavorada. Nunca tinha visto uma cidade tão grande. Parecia um mar de luzes, com as manchas negras das poucas colinas desabitadas. Comparado com Lisboa, o Rio não tem fim.
Venho de uma pequena localidade – 3 500 habitantes – a 45 minutos de trem de Varsóvia. É uma cidade-jardim inteiramente planejada (como Brasília), que nasceu há oitenta anos como refúgio de fim de semana para intelectuais da capital. Em Podkowa Lesna (cuja tradução seria Ferradura de Floresta) não existem edifícios, condomínios, nada disso. Há só casas particulares e vilas, cada uma com um jardim obrigatório de 1 500 metros quadrados. Adoro.
No Rio, a imensidão do espaço com alta concentração humana parece não ter fim. Onde está o subúrbio parecido com o que eu conheço – verde, com casas baixinhas, grandes jardins, floresta por todos os lados? Tive medo de sufocar. Na minha casa, não se ouvem carros na rua, apenas o concerto de grilos. Só vou a Varsóvia, que tem 2,5 milhões de habitantes, para festas, pois minha cidadezinha é muito rica em programas culturais.
No aeroporto, fui recepcionada por Mario Luis Grangeia, colega de faculdade e amigo da minha professora de português na universidade, a brasileira Ana Carolina Beltrão. Estava acertado que me hospedaria na casa dele, nas duas primeiras semanas, para ter alguém que me explicasse como as coisas funcionam no Rio, o que posso e o que não devo fazer. Na véspera da minha viagem eu tinha assistido ao filme Última Parada 174, inspirado no documentário Ônibus 174. A ideia de que poderia estar num ônibus assaltado me incomodou.
Quando entramos no prédio do Mario, no bairro do Catete, fiquei boquiaberta. O condomínio me pareceu um hotel de luxo. Tinha coffee shop, lugar para jogar sinuca, piscinas, minicinema, salão de festa infantil e, para adultos, campo de futebol e de basquete, salão da beleza, biblioteca, sala de reuniões! O que mais me impressionou foi o espaço para bandas de garagem, com instrumentos disponíveis para qualquer um que quiser tocar. Impressionante como facilitam a vida aqui, pensei.
Cheguei bastante cansada do voo, com as pernas inchadas. Mario, formado em comunicação e mestrando em sociologia, trabalha no Ministério Público Federal. Ele tentou entender o que eu pretendia fazer no Brasil e se pôs a telefonar para seus amigos. Em meia hora conseguiu combinar acho que dois ou três encontros com professores, me deu uma lista completa de nomes de pessoas que eu deveria procurar e me apresentou à caipirinha. Adorei a caipirinha, mas beber depois de dez horas no avião é a pior coisa do mundo.
22 DE JUNHO_Meus primeiros sustos:
Supermercado – há carrinhos abandonados por toda parte, tudo meio improvisado. Na fila, ninguém parece ter pressa. O funcionário que está no caixa passa os produtos enquanto conversa com todo mundo. Quando acaba o scanning, outro funcionário põe as mercadorias em sacolas de plástico. Mas se não há ninguém para ensacar as compras, a garota do caixa faz isso sozinha (mas eu também tenho mãos!).
Ruas – os ônibus parecem máquinas da morte. Em vez de dirigir dentro das faixas, o motorista faz o percurso na forma da letra S. Há poucas possibilidades de atravessar a rua sem correr.
Pão – só de fôrma ou inchado com ar? Depois descobri croissants integrais com ricota, queijo minas, espinafre…
Maravilhas do dia:
Mercados de frutas e verduras. A maioria não conheço. É fruta, pergunto? É, é! Pode acreditar! – todo o mundo ri. O abacate tem tamanho de melão. Na Polônia, tem o tamanho de uma laranja, se tanto.
Largo do Machado – de manhã à noite, cheio de gente, na maioria idosos, que jogam de tudo: cartas, dominó, xadrez. Só vi algo parecido em Sarajevo. Na Polônia, como na maior parte do ano faz frio, não há esse tipo de contato. As pessoas se encontram em casa, num café, no restaurante. A rua é apenas para andar, não para sentar. Nos parques há bancos, mas não há mesas.
23 DE JUNHO_Fui à Universidade do Estado* do Rio de Janeiro, com a qual a minha universidade tinha acertado um intercâmbio, a partir de março de 2009. Mas a greve na Uerj parece ter dificultado o diálogo, que nunca mais foi retomado. Quando cheguei lá, a secretaria estava fechada. Passei cinco horas tentando encontrar material de estudo nas suas várias bibliotecas. Achei o interior do prédio meio escuro. Os corredores sem fim pareciam uma prisão.
Mario me ajuda muito – onde ir, a quem escrever pedindo um encontro. À noite, fomos encontrar amigos dele, todos muito simpáticos. Perguntaram sobre as minhas primeiras impressões. Todo o mundo quer ajudar, é incrível. Se preocupam. Quando preciso de alguma informação, a pessoa faz bem mais do que responder. Ela deixa o que está fazendo e me acompanha até o lugar, explica como tudo funciona e ainda acrescenta: “Qualquer problema, me busca, me pergunta, me liga.” Agem como se acreditassem nos princípios da ética de Kant. Tratam o outro como um fim, nunca como um meio. Gosto disso.
Durante a noitada, todos se puseram a comentar animadamente as novelas e um programa de humor que faz troça de figuras públicas. Mais tarde, em casa, tive a curiosidade de assistir a um bocadinho da televisão brasileira. As emoções parecem falsas, exageradas. Apresentadores riem, gritam, dizem piadas. Na Polônia isso seria falta de profissionalismo. Lá há cinismo. Aqui, há comedia, há escárnio. A televisão é como a rua: ruidosa.
Na Polônia, a novela tenta imitar a vida normal das pessoas. Aqui vejo personagens que têm 5 mil empregadas e não sabem como se prepara macarrão porque a comida sempre já está na mesa, toda preparadinha.
Estranhei os amigos do Mario debaterem tanto o tema. É verdade que muitos deles haviam feito comunicação, o que talvez explique o interesse. Mas mesmo assim… Na Polônia, essa faixa de pessoas tende a assistir apenas aos noticiários, nada mais. Quando querem ver um filme, vão ao cinema ou veem um DVD. Televisão é considerada um lixo que muitos optam por não ter. Já a minha geração vive muito mais na internet. Acho que metade dos meus amigos nem tem televisão em casa. Mas todos têm banda larga.
À tarde, fui até a Uerj para um encontro com Felix Garcia Lopez, amigo do Mario e professor no departamento de ciências humanas. A Uerj não se parece em nada com as universidades que conheço. Parece mais um exemplo de arquitetura do realismo socialista. Mesmo em Varsóvia, que sofreu bastante com a ocupação dos russos, não temos nada assim, tão monumental e, ao mesmo tempo, horroroso.
O encontro com o professor correu bem. Ele me apresentou a uma amiga que se ocupa de antropologia visual, e me mostrou alguns números de Cadernos de Antropologia e Imagem, nos quais encontrei inúmeras informações interessantes. Combinei com a funcionária da secretaria que voltaria no dia seguinte para ver a revista com mais atenção.
Logo que cheguei, disse ao Mario que, além das atividades ligadas à coleta de material para a minha tese, também queria participar de alguma atividade bem brasileira, como aulas de samba, capoeira ou surfe. Por isso, antes de ir ao cinema, hoje fomos espiar uma escola de dança. As pessoas dançavam samba de salão. Liiiindo! Na Europa, a dança é frequentemente tratada como um desafio. Aqui vejo prazer e naturalidade, nada de competição.
Fomos assistir a Budapeste, a adaptação do romance de Chico Buarque. Perguntei se Mario conhecia um filme chamado Garotos Incríveis (Wonder Boys). O personagem central é um professor de literatura e escritor em crise. Ao contrário de escritores que não conseguem escrever, o de Garotos Incríveis não consegue parar de escrever. Um dia, uma estudante que alugava um quarto na casa dele descobre um livro e começa a lê-lo. Mas a obra tem mais de 2 mil páginas e a estudante acaba adormecendo. Acordada pelo professor, ela diz o que achou da obra: “O senhor sempre nos ensinou que para escrever bem é necessário fazer escolhas. Mas no seu livro não foi feita nenhuma escolha. Tudo está descrito.”
Pode-se dizer a mesma coisa de Budapeste. Parece que o diretor não soube fazer nenhuma escolha, e quis mostrar tudo o que está descrito no livro. Houve pelo menos três cenas de relações sexuais desnecessárias para a compreensão do filme. Não gostei.
Observações enviadas por e-mail para meus pais:
Aqui se pode comprar cigarros por unidade, em vez do maço inteiro. É a primeira vez que vejo isso.
Na frente do condomínio há uma loja com galinhas, patos e outras aves vivas para vender. Fede tanto que é difícil andar por ali. Não me imagino entrando lá, comprando um dos animais expostos e matando-o para comer.
Nas ruas e no metrô não consigo deixar de olhar para o bumbum das garotas. Eles têm um formato totalmente diferente dos nossos, mais copioso. Não que as brasileiras sejam gordas, nada disso. Apenas têm mais carne, mais músculos. E todas usam calças bem apertadas. Quando andam, parece que fazem massa com o bumbum. Muito interessante.
As diferenças sociais são gritantes.
24 DE JUNHO_Andei a pé do Catete até o centro. Fui aos Correios, visitei o palácio de Getúlio Vargas. Queria tirar fotos, mas o Mario me alertou para ter cuidado. Infelizmente, aquilo que mais me interessa é difícil de fotografar. Não quero parecer uma gringa que fica tirando fotos de “temas sociais”.
Quando estou sozinha num país desconhecido, fico ansiosa. Não consigo comer. Também não consigo adormecer. Por causa da fome? Da tensão? Cada experiência negativa, como o fato de a funcionária da secretaria da Uerj não estar a postos, me reduz a zero. Ando meio perdida. Tenho tantas coisas na cabeça que não sei por onde começar. Tudo parece muito difícil. O sentimento de fracasso me ronda.
O contato com outras pessoas é difícil para mim. Gosto de ser autossuficiente, de saber. Aqui tenho de perguntar tudo a todos. A língua também não ajuda. Ou melhor, ajuda muito, mas abandonei o meu sonho de falar como carioca. Consigo imitar o sotaque, conheço regras da pronúncia, mas isso não vale nada. Quando falo como os jovens de Portugal, ninguém me entende. “Gajo”, “fixe”, “giro”, “pois” aqui não funcionam. No Rio, é só “valeu”, “beleza”, “vem cá”, “tá ligado”, “falou”, “cara”, “legal”. Aqui é posto e não bomba de gasolina, é creme de leite e não natas, é faxina e não limpeza. E todo o mundo bota tudo em qualquer lado. Não conheço nenhum verbo no português falado em Portugal que valha para tantos contextos: bota isso, bota aquilo, bota, bota… Todo o mundo bota sem parar. Cada dia aprendo palavras novas. Gosto disso.
25 DE JUNHO_De manhã fiz exercícios físicos. Conheço-me bem: se não fizer de manhã, há pouca chance de fazer depois. Mandei e-mails para pessoas que podem me ajudar, segundo o Mario. Depois voltei à Uerj. A secretaria estava fechada, para variar. Mas me lembrei do lugar onde Felix tinha ido buscar um exemplar dos Cadernos de Antropologia. Comprei alguns números, fiz cópias de outros e também consultei a revista Intersecções. Ufa, recomecei o meu trabalho.
Depois fui assistir a um debate no Centro Cultural da universidade, que abriu uma mediateca no mês passado. Ali são apresentadas mostras semanais de três filmes, seguidas de debates. Eu não tinha visto nenhum dos filmes anteriores ao debate, todos sobre samba e bossa nova, mas mesmo assim quis ver como era. Assim começou o meu grande dilema de conhecimento.
O debate foi sobre o jeito carioca de ser. A coordenadora do projeto tinha convidado dois professores, uma psicóloga e um antropólogo. Não vou lembrar os nomes porque essa é uma das minhas grandes dificuldades no Brasil. Se alguém pode se chamar tanto Geni quanto Rosangelica, pode ter qualquer nome. Eu já tinha notado essa minha dificuldade na Polônia. Eu nunca conseguia identificar os nomes dos cineastas citados pela minha professora brasileira – só sabia do filme a que se referia quando ela comentava o seu conteúdo.
O debate sobre o jeito carioca evoluiu numa direção inesperada. Primeiro, os palestrantes falaram da forma como os cariocas tratam o espaço, a cidade, qual a fronteira entre público e privado. Depois, passaram a falar sobre o conceito de cidade partida e a polemizar a respeito dele. Assim começou o meu encontro com a bipolaridade do Rio.
26 DE JUNHO_Fui ao Museu Nacional de Belas Artes. A maior parte dos quadros é muito parecida com a arte europeia. Voltando para casa, decidi fazer uma comida típica polaca para o Mario. Escolhi placki ziemniaczane – um tipo de massa frita feita de batata ralada com cebola, farinha e ovo. É delicioso. Pode-se comer isso com creme de leite e açúcar, ou com qualquer molho salgado. A minha tentativa no uso de ingredientes brasileiros foi um desastre. As batatas daqui contêm muito mais água do que as polonesas. Por isso a massa ficou molhada demais, difícil de fritar. Com a massa já pronta, ainda se sentiam os pedaços da cebola meio crus. Pior ficou o molho. O resultado final ficou tão indigesto que me envergonhei de apresentá-lo ao Mario. Mas ele insistiu em comer a coisa.
Depois do jantar, ele comentou que sexta-feira era o dia em que todo mundo sai, e eu também deveria ir fazer algum programa. Perguntei se poderíamos ir a um baile funk. Como ele também nunca tinha ido a um, deu uns telefonemas e logo encontrou uma amiga que levaria um grupo a uma casa de funk. Ficamos de nos encontrar num bar perto do Maracanã, às dez da noite. O grupo chegou por volta das onze (um francês, dois alemães e, acho, alguns brasileiros) e nossa guia chegou duas horas depois. Quando perguntamos por que ela demorou tanto, explicou que Michael Jackson tinha morrido e ela teve de escrever um texto sobre ele. Começamos a discutir o papel do Michael na música pop e escolhemos também o lema da noite: nasceu preto, virou branco, morreu cinza.
Finalmente, às duas da madrugada, entramos no baile funk. O ritmo não é muito complicado. As músicas começam frequentemente com o som de tiroteio e o bumbum parece ter controle sobre o resto do corpo. A primeira coisa da qual gostei foi que todo mundo dança. Rapazes e moças, rapazes com moças, moças com moças, rapazes com rapazes. Em Portugal, tive a impressão de que somente os estrangeiros dançavam. Era triste ver as meninas portuguesas darem dois passos à esquerda, dois para a direita, e nada mais. Zero de energia.
Tentei imitar os movimentos das brasileiras e três jovens procuraram me ensinar o que fazer. Tentei acompanhar, mas quando elas desciam até o chão, desisti – era difícil demais para mim.
Quatro jovens de biquínis oncinha começaram a dançar e a cantar no palco. Parecia mais dança erótica do que qualquer outra coisa. Cantavam sobre o que garotas devem fazer para encontrar com quem ficar. O baile acabou às quatro da manhã. Não percebi qualquer arma, elemento absolutamente obrigatório segundo vários filmes brasileiros que vi. O chão ficou coberto de latas de cerveja. Na Polônia, vê-se algo parecido só em festivais ao ar livre.
Quando o baile acabou, queria muito voltar para casa. Infelizmente, só eu. O resto do grupo ainda quis esticar em Copacabana. Como o Mario tinha me dito para não me separar da guia, fui junto. Cheguei em casa às 7h30 da manhã, com frio e fome. Comi os meus placki ziemniaczane, que não me pareceram tão ruins como no dia anterior. Acordei às seis da tarde.
27 DE JUNHO_Fomos visitar os pais do Mario, que moram pertinho, no Flamengo. A avó dele é uma portuguesa do Viseu que chegou ao Brasil já adulta. Mesmo morando há mais de cinquenta anos no Rio, ela não perdeu o sotaque português. Achei bonito. Fiquei encantada com o fato de que, finalmente, alguém entendia tudo o que eu falava. A visita me ajudou a compreender a gentileza do Mario. Os pais dele também são assim. Como eu trouxe pouca roupa para o Brasil, quase tudo estava sujo depois da primeira semana. A mãe do Mario notou que eu vestia uma camisa do filho e me levou ao quarto dela para escolher cinco casaquinhos. Eu não podia recusar. Saímos da casa deles com dois sacos cheios de comida, e mais um outro, só com casacos para mim. Também compreendi melhor o constante cuidado da família com todos. Quando o Mario era pequeno, seu avô foi assaltado ao estacionar o carro em frente à casa. Ele entregou tudo o que tinha, mas mesmo assim levou um tiro e morreu.
28 DE JUNHO_Logo de manhã, Felix, que também trabalha para uma ONG chamada Mundoreal, veio me buscar para irmos até a Rocinha. Fomos de carro até um certo ponto – ele, uma aluna sua, um casal de poloneses hospedados em sua casa e eu. Depois subimos numa van com mais duas brasileiras da Mundoreal e no meio da excursão juntaram-se ao nosso grupo um americano e uma indiana, filha de diplomata. Exceto o casal polonês e eu, que estávamos aproveitando a expedição para conhecer um pouco da Rocinha, os outros do grupo começariam um trabalho voluntário na favela através da Mundoreal.
Visitamos uma moradora cujo filho era deficiente. Ser deficiente na Rocinha é como viver condenado, virtualmente preso nos muros da própria casa. Não tem como sair. As ruazinhas parecem trilhas. Não há asfalto. Há pequenos becos, tudo inclinado e com um chão furado e ondulado. Quando chove os becos se transformam em riachos de esgoto. Na véspera da nossa visita tinha chovido. Resultado: bati perna durante seis horas, de sandálias, por esgotos e lama. O cheiro era horrível. Tive medo de tocar nas paredes das casas para me apoiar. Parece que na Rocinha o maior problema é a tuberculose. Um em cada vinte moradores tem tuberculose. Incrível! Na Polônia tuberculose é considerada doença do século passado.
O nosso percurso nos levou à laje da loja de uma conhecida dos brasileiros. Dali vi o mais bonito panorama do Rio – Cristo Redentor de um lado, do outro as praias de Copacabana e Ipanema. Rochas, floresta e o quadro caótico das pequenas casinhas dos favelados. Quando subimos o morro, cruzamos com um jipe do Favela Tour. O pessoal a bordo estava vestido de roupa safári, com as máquinas fotográficas apontadas em todas as direções.
À tarde fui ver a exposição “Virada Russa”. Achei divertido ver no Brasil obras dos nossos vizinhos. A última sala trazia inúmeros cartazes de propaganda da era comunista, inclusive um que glorificava um plano de metas introduzido na Ucrânia. Senti algo esquisito. Uma das consequências da coletivização agrícola na Ucrânia foi a fome que matou cerca de 6 milhões de pessoas. O meu avô nasceu no território que depois da Segunda Guerra passou a fazer parte da União Soviética. A Polônia também ficou sob “curadoria” da URSS.
29 DE JUNHO_Às onze horas da manhã eu tinha encontro na Fundação Getulio Vargas com Mariana Cavalcanti, professora que trabalha o tema “favela” do ponto de vista antropológico. Fui parada pelo primeiro segurança por estar de chinelo de dedo. A recepcionista telefonou para a professora, avisando que eu a esperava embaixo. Pensei que a intervenção da acadêmica iria liberar a minha entrada no prédio, mas não. Mesmo desconhecendo o regulamento da Fundação, acho que a instituição deveria respeitar mais os seus colaboradores. Assim, a professora Cavalcanti teve de abandonar o posto de trabalho para se encontrar comigo. Fomos sentar num bar. Senti-me estúpida.
A conversa com a professora foi útil e ela aprovou o meu projeto de tese. Ao nos despedirmos, ainda perguntou se eu tinha tempo para um encontro com uma colega sua, a quem também tinha enviado e-mail. Em cinco minutos apareceu a autora de uma análise da série televisiva Cidade dos Homens. Ela se mostrou menos entusiasmada com o meu tema. “Eu sou da velha escola”, disse-me. “Você deveria se concentrar mais na análise do próprio filme Cidade de Deus.” Fiquei um pouco triste porque o que mais me interessa no filme são as reações a ele.
À tarde fui ver um dos cartões postais do Rio – peguei o teleférico e subi o Pão de Açúcar. Me surpreendi com o tanto de brasileiros que estavam ali – imaginei que era coisa mais de turistas.
30 DE JUNHO_Passei o dia na frente do computador listando os livros que preciso ler, artigos, autores, lugares onde encontrar tudo.
No fim da tarde, decidi assistir à abertura de um colóquio sobre o tema “Cinema, Tecnologia e Percepção. Novos diálogos”. Saí de casa já atrasada. Verifiquei o caminho no Google Maps, mas mesmo assim, só depois de andar por um bom tempo, é que percebi estar na direção errada. Pensei que o Museu de Arte Moderna fosse perto da minha casa e acabei no parque do Flamengo ao anoitecer. A palestra já tinha começado quando cheguei, e era em francês. Depois de meia hora, estava cansada. A língua de conferências é muito hermética. Mesmo em polonês, quando não se sabe bem o tema, acho difícil seguir o rumo de uma palestra.
1 E 2 DE JULHO_Fui a outro colóquio no Museu de Arte Moderna. Me ocupou o dia inteiro. Foi uma experiência ótima, com participação intensa do público. Percebi o quanto o cinema está vivo. A literatura é uma arte tão consagrada ao longo dos séculos que, para não dizer platitudes, tem que se estudar anos a fio. Só com um grande conhecimento da história da literatura clássica é possível comentar e avaliar a produção mais atual. Já o cinema, ainda está fresco. É mais acessível e o seu desenvolvimento não travou. Ivana Bentes falou de Google Street View e de Google Art. Normalmente, nesse tipo de colóquios, quando o tema central é literatura, fala-se de obras clássicas. Mas Google Art? No intervalo das conferências tentei falar com a palestrante. Apresentei-me e mencionei que a tinha contatado por e-mail. Ela é autora de uma das mais contundentes críticas ao filme Cidade de Deus, e por isso eu queria muito ouvi-la. Ela me explicou que estava em final de semestre e pediu para lhe enviar outro e-mail. Enviei. Não recebi a resposta. É que eventos assim não são muito propícios para conversas.
No dia seguinte tentei a mesma coisa com outra professora. Não consegui. Cada palestrante era logo cercado por amigos, fãs, estudantes, e desaparecem na multidão. Mas o dia não foi totalmente perdido. Falei com outros dois professores que até hoje me mandam e-mails com dicas e artigos do meu interesse. Estranho o fato de todos pedirem para serem tratados por você. Quanta cordialidade! Na Polônia, e sobretudo em Portugal, as pessoas são hiperatentas a títulos. Na universidade é sempre: Estimado sr. doutor/professor. Já nas aulas da minha professora brasileira no Algarve, podíamos tratá-la pelo primeiro nome.
À tarde fui com o Mario a uma roda de samba de um amigo dele. O convite de cinco linhas avisava com humor: “Nós somos mesmo ruim.” Era num barzinho bem simples mas lotado. Quase todos da turma eram advogados ou mulheres de advogados. Tocavam instrumentos e cantavam aos altos brados. E sambavam. Como sambavam! Gostei de ver gente que passa a vida numa ocupação séria, sai do trabalho, vai a um bar e descarrega a energia. É nessas horas que se nota uma imensa diferença entre brasileiros e os polacos. Na Polônia, as pessoas também saem, mas nem sempre estão prontas para desfrutar o tempo livre. Reclamamos muito.
3 DE JULHO_Recebi resposta de um jovem da Central Única da Favela (Cufa), João Xavier, que eu havia contatado para que me falasse de sua experiência de aprender cinema no bairro Cidade de Deus. Combinamos de nos encontrar.
Me programei para assistir a alguns filmes do festival CineCufa. Assisti a sete curtas. Puro horror. A maioria dos filmes cabia em uma de duas categorias: clichê de gêneros televisivos ou documentário amador. Muitos enredos sobre meninas que ganham o pão com o corpo, ou de amores infelizes. A linguagem era copiada de novelas. Na segunda categoria, os realizadores não mostravam o mínimo zelo em tornar o filme compreensível.
Vi também duas coisas interessantes. A primeira era uma animação, Flor na Lama. Combinava a participação de atores com a animação tradicional e digital. Não imitava. O segundo chamava-se Baianinho, uma comédia sobre um rapaz de Salvador que chega a São Paulo para encontrar trabalho. O filme era bom pela montagem, narrativa (finalmente algo com início, meio e fim) e fina ironia.
Depois fui encontrar meu contato, João, na livraria do Centro Cultural Banco do Brasil. Ele tem 26 anos. Formou-se em história na PUC. Vive na Baixada Fluminense, em São João de Meriti. Por dois anos estudou na Cufa, na Cidade de Deus. Estava empolgado com os preparativos da festa de sétimo aniversário do Mate com Angu, o cineclube de São João de Meriti do qual é cofundador. Faz rap e foi enviado à Europa pelo governo para promover a cultura brasileira. Não come carne, não fuma nem bebe. Quando perguntei por quê, ele disse: “Entrei para uma igreja que mudou a minha vida e parei.” “Não diga!”, me espantei. “Tenho mulher e seis filhos.” “Não pode ser!” “E na igreja, acreditou?”, perguntou, rindo.
João gosta de fazer piadas.
Nos despedimos na entrada do metrô. Combinamos ir juntos no aniversário do seu cineclube. Voltei para casa contente. Ele me pareceu ser a pessoa certa para o que eu queria explorar – ligado ao cinema, representante de “lá”, uma ponte entre o discurso acadêmico e a vivência pessoal.
4 DE JULHO_Conforme o combinado, cheguei às cinco e pouco da tarde na estação de metrô da Pavuna, a última na zona norte. João chegou atrasado. Entramos no carro e fomos até Nova Iguaçu. Como a festa de aniversário só começava às 19 horas, atravessamos a rua e sentamos num bar tão sujo e cinzento que me lembrou a era comunista na Polônia. Minha geração associa o comunismo à cor cinza, à sujeira, ao descuido com o corpo e o espaço. As cidades eram cheias de migrantes das zonas rurais que pouco sabiam de higiene. Pela linha oficial, roupas coloridas eram vistas como ousadas e de mau gosto. Todo o mundo devia se vestir igual, para assim manifestar igualdade e fraternidade.
A mesa em que sentamos cheirava a urina. Pouco a pouco se juntaram a nós mais cinco ou seis brasileiros, uma venezuelana, uma espanhola, uma inglesa e eu, polonesa. À exceção da venezuelana, que tinha vindo ao Brasil como turista, as outras, como eu, vieram complementar alguma pesquisa de tese.
Na festa tive uma conversa bacana com o João. Estávamos com fome e fomos comprar alguma coisa para comer.
“Oi, meu irmão, você sabe onde se pode comer algo a essa hora?”, perguntou João a um gari. Depois me explicou: “Olha, é assim que se deve falar com as pessoas da rua. Você tem de ser humilde.”
“Quer dizer que ao tratar alguém de ‘senhor’ sou mal-educada?”
“Mal-educada, não. Mas a forma ‘senhor’ pode apontar para uma distância social.”
Essa coisa de “tu”, “você” e formas mais formais é um verdadeiro caos para mim. Não devo tratar professores por “senhor professor”, para criar uma relação mais amigável. Não posso tratar as pessoas na rua de “senhor”, porque se sentem ofendidas pela minha relação superior? Na Polônia só se tratam as pessoas por tu/você quando se tem intimidade plena. Por outro lado, todo o mundo aqui chama o taxista de “moço” e ninguém vê nenhum problema. Para mim, é uma designação que mostra desprezo e desrespeito com o taxista. É como ignorar a dignidade de quem desempenha determinado ofício, e apontar para a sua utilidade como empregado. Tenho dificuldade de usar o termo “moço” no meu linguajar.
5 DE JULHO_Domingo calmo. De manhã fui com o Mario a um passeio pelo Aterro e depois à casa dos pais dele. Lá, comemos o melhor prato do mundo – bacalhau com natas (creme de leite). Que delícia! Normalmente não aturo o cheiro desse peixe, mas bacalhau com natas… podia comer uma vez por semana até o fim da vida.
Em seguida fui até o Museu da República assistir a um debate sobre “A Constituição de 1988: a voz e a letra do cidadão”. João seria um dos palestrantes. O debate foi interessante. As informações que mais me chocaram tinham a ver com ações da polícia. Um dos debatedores lembrou ter aberto, na Espanha, uma palestra sobre segurança pública mostrando a foto de um Caveirão do Bope, sem maiores explicações. Na frente do carro blindado os policiais haviam pintado os dizeres: “Sai da frente, vim buscar a sua alma.” Alguém da plateia levantou-se: “Mas é inadmissível que traficantes tenham carros assim!” “Esse é um carro da polícia”, esclareceu o palestrante.
Outro dado que me chocou foi o número de pessoas mortas por policiais. Mais de mil por ano no estado do Rio, talvez 1 400. O Rio está em guerra. É uma ideia incômoda, mas pouco a pouco me habituei ao fato de que tenho de aceitá-la para entender esta cidade.
Voltei para casa pensativa. Era o terceiro dia de festa junina no condomínio do Mario. Em geral, não sou muito fã de festas populares, mas é sempre bom ver o que se faz nestas ocasiões em outros países. Alguns elementos se repetem mundo afora. Sempre há comida tradicional, especialmente doces. Sempre há música pouco sublime. Sempre há muito barulho. A atitude dos participantes também é parecida mundo afora: comer, beber, não pensar. Para mim, festas populares são como a televisão. A única diferença é que, quando se vê tevê, as pessoas comem sentadas em frente à tela.
7 DE JULHO_Passei quase o dia todo na Uerj, dessa vez com grande proveito. Encontrei alguns dos livros da minha lista e fotocopiei toneladas de papel. Livros no Brasil são tão caros que eu nunca poderia comprar todos de que preciso.
9 DE JULHO_O grande dia chegou. Finalmente tive um encontro com o professor Paulo Jorge Ribeiro, um dos mais ativos defensores do filme de Fernando Meirelles. Apresentei-me, expliquei mais uma vez o que fazia no Rio e por que escolhi Cidade de Deus como o eixo da minha tese de mestrado. As primeiras palavras do professor Ribeiro foram: “Meu Deus, falas como uma portuguesa!”
Falamos do filme e ele me perguntou o que achava do Brasil e se estava gostando da estadia.
“Claro que gosto, mas é difícil”, respondi. Comecei a explicar a confusão que sentia em relação ao Rio depois de assistir a tantas palestras. “Não é verdade que a miséria é sempre igual”, observou o professor Ribeiro. “Trata-se de uma hipocrisia. A miséria, no Brasil, é muito diferente da miséria em Mumbai. E na Europa? Vocês têm algo parecido com o que temos aqui?”
Respondi que não e falei das minhas dificuldades de entender o Rio como um organismo. Cidade partida ou unida? As pessoas se veem, como ouvi de um antropólogo na Uerj, ou se ignoram, como sustenta João?
“Você vai ouvir ainda muitas opiniões totalmente contraditórias”, ele disse. “No Brasil nada é. Tudo é.”
Saí do gabinete do Paulo Ribeiro ainda mais confusa.
12 DE JULHO_Nos últimos dias passei a maior parte do tempo comprando livros. Em matéria de compras sou pouco feminina. Odeio comprar roupa – ah, esses espelhos cruéis nos provadores das lojas! Mas livros são outra coisa e no Rio perdi qualquer mesura. Vi tanta coisa interessante que não consegui fazer uma seleção, e o resultado foi oneroso: gastei mais de 350 reais para despachar 17 quilos pelo correio.
Hoje Mario me apresentou à sua bicicleta e dei pulos de alegria. Fiz o primeiro dos meus passeios em duas rodas. Segundo o Google Maps, rodei quase 25 quilômetros do Catete até o Leblon, ida e volta. Visitei duas livrarias e um sebo. Foi a primeira vez que vi Copacabana à luz do dia. Cheguei no shopping do Leblon cansada e suada. As minhas pernas estavam sujas de graxa da bicicleta e minha cara estava vermelha como uma beterraba. Senti-me um pouco intimidada. Estava num lugar muito mais luxuoso do que os shoppings que conheço na Polônia. Não que nossos centros comerciais sejam sujos ou malcuidados, apenas não há tanta ostentação no ambiente. As pessoas vão ali para comprar, por isso há pouco espaço para sentar, e quando há, são bancos ou cadeiras, e não sofás de couro. Os banheiros são humildes, sem grandes invenções nem estilo. No do Leblon, o espaço me lembrou a recepção de um hotel de várias estrelas.
13 DE JULHO_Falta só uma semana para o meu regresso à Europa. Tenho de me esforçar para conseguir fazer tudo. Quando não estou em bibliotecas, escrevo o trabalho para a disciplina “Cinema e outras artes”. Para completar meus créditos ainda preciso escrever um artigo de quinze páginas.
Mario viajou para participar de um congresso em Santiago e fiquei sozinha em casa. Comecei a alugar filmes brasileiros. Todos os dias vejo um. Normalmente depois das minhas sessões de cinema doméstico falo com João. As conversas desembocam em temas mais abstratos como identidade ou sentido da vida.
“Você conhece Todorov, o linguista?”, perguntou João um dia desses. “É autor de um livro chamado O Homem Desenraizado. Ele cresceu numa ditadura socialista, mas teve uma formação acadêmica na França. Por mais que sua cabeça tenha se tornado francesa, mantém as raízes búlgaras. No fim, não se considera nem uma coisa nem outra. Talvez não tenha percebido que ele é, na verdade, a ponte.”
“E você, também se considera uma ponte?”, perguntei
“Não: acho que sou um tijolo da ponte. Um entre centenas ou milhares de pessoas que conseguem circular pelos dois mundos.”
“E você se sente bem nesse papel?”
João começou a rir. E disse: “Ser desenraizado é desconfortável. A diferença entre a situação de Todorov e o Brasil é que aqui vivemos na mesma cidade, no mesmo país, na mesma língua, o que evidencia as diferenças de classe. Pobres e ricos são diferentes em qualquer lugar, mas aqui as diferenças são gritantes. Ao mesmo tempo em que vivemos em condições parecidas com as da África, posso morar numa favela horrível e ter um laptop. Somos livres e temos o direito ao consumo.”
Quando eu morava em Portugal, pensava: Meu Deus, nunca estive num país tão parado. Aqui nada acontece de novo, comparado à Polônia. Mas o Brasil, comparado à Polônia, é como um trem-bala. O Brasil está vivo.
17 DE JULHO_A minha estadia no Rio está para acabar. Hoje teve o jantar de despedida com João, pois ele viajaria no dia seguinte. Em frente ao restaurante, testemunhei uma cena perturbadora. No chão da rua, um garoto de mais ou menos 10 anos estava tendo uma convulsão. Havia pessoas em volta, e ninguém fazia nada para ajudá-lo. Eu queria chamar uma ambulância, mas uma mulher interveio: “Ele está fingindo. Treme assim todos os dias para roubar dinheiro de quem se aproxima.”
Eu não sabia se devia ou não acreditar naquela senhora. Quando saímos do restaurante, o menino não estava mais ali.
18 DE JULHO_Kasia e Bartek, o casal polonês que eu tinha conhecido durante a expedição à Rocinha, voltaram ao Rio depois de uma viagem ao Paraguai e a vários cantos do Brasil. Combinamos de ir ao Jardim Botânico no domingo. A flora brasileira é tão estupenda! Uma árvore no meio da rua faz tanta sombra que a pessoa fica arrepiada. Por isso, do Jardim Botânico eu esperava uma exuberância caótica, mas fiquei decepcionada – a natureza tão organizada, as plantas com tanto espaço para crescer. não tinham de competir entre si, lutar para ter luz. Sim, eram majestosas, mas “bem comportadas”, sem a vitalidade louca que eu imaginava.
Kasia e Bartek contaram que a aventura paraguaia deles tinha sido horrível. O Brasil, em comparação, lhes parecia a Europa. No Paraguai, muitas vezes o único táxi disponível era uma charrete. “Aqui, nos sentimos muito mais seguros”, disseram.
20 DE JULHO_Penúltimo dia no Rio. Me deu vontade de fazer algo especial, diferente. Kasia me convenceu de que deveríamos mudar nosso visual para surpreender todo mundo na Polônia. Ela pesquisou na internet tranças artificiais estilo rastafári, e optamos pela técnica anunciada como “miojinhos”: apliques de plástico presos com elástico ao cabelo natural, dividido em trancinhas. Nos encontramos na estação de metrô Uruguaiana às 9 horas, e Kasia explicou que o procedimento todo duraria umas cinco horas.
Entramos numa rua onde se viam várias placas anunciando miojinhos. Optei por fios de cor meio marrom, meio ruivo. Kasia escolheu fios mais grossos, pretos. As nove horas seguintes foram de horror. O problema é a dor. A pele do couro cabeludo fica em brasas à medida que os elásticos vão sendo apertados. A nossa pele estava tão esticada que mal podíamos piscar os olhos.
Voltei para casa, me olhei no espelho e desandei a chorar. Mal consegui dormir de tanta dor de cabeça. O menor toque no couro cabeludo era um suplício.
21 DE JULHO_Cheguei com fome no aeroporto. Comprei meu último mate (um mês de Brasil foi suficiente para me tornar totalmente dependente do mate natural) e pão de queijo. Depois entrei numa loja e me dei de presente um par de havaianas com a bandeira brasileira.
No saguão de embarque, estranhei o péssimo inglês dos funcionários de várias companhias aéreas. Alguns anunciavam os voos com sotaques tão fortes que eu mal entendia do que se tratava. Além disso, faziam chamadas quase ao mesmo tempo.
Quando decolamos, me pus a chorar. O Rio havia se tornado uma cidade para onde vou querer voltar sempre. Melhor não pensar nisso.
23 DE JULHO_Os Wróblewska percorreram 1 400 quilômetros de carro para me encontrar em Portugal. Minha irmã de 14 anos foi logo gritando: “Meu Deus, Mária, o que você fez na cabeça?”
20 DE SETEMBRO_Faz dois meses que voltei do Brasil para casa. Reencontrei meu namorado, tratei de quase todas as formalidades na minha universidade, voltei a praticar ioga e comecei a organizar o meu jardim. Revi a maioria dos meus amigos e repeti umas 100 vezes a minha aventura brasileira.
Tudo aqui ainda me parece conhecido, parado, morto. Sempre tive muito orgulho da minha cidade na Polônia, por ser um lugar onde todos participam ativamente da organização de eventos culturais No Brasil comecei a ver as coisas sob outra ótica. Em Podkowa Lesna realizamos muita coisa, mas só para o nosso próprio interesse. Na nossa vizinhança há aldeias de baixa renda com gente que mal consegue sobreviver com o dinheiro da sua produção agrícola e minioficinas. Quando me lembro do dinamismo do cineclube Mate com Angu, me dou conta do quanto a minha cidade é fechada. Jamais olhamos em direção aos que moram à nossa volta. Nas aldeias da vizinhança não há cartazes anunciando nossos concertos. Em vez de trazer as crianças do campo e lhes mostrar o quanto a vida tem a oferecer, não partilhamos nada do que temos de graça.
Recebo e-mails dos amigos, professores ou outras pessoas que encontrei no Brasil. Leio livros que estavam à minha espera. Participo de eventos que têm por tema a cultura do Brasil. Ouço rádios cariocas, roubo filmes brasileiros da internet.
Quando a saudade aumenta, vejo fotos de satélite do Rio. É só concluir minha tese de mestrado, ganhar algum dinheiro e estou de volta.
* Correção em relação à versão impressa da revista.
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