Sayão buscou o Norte eterno quando percebeu o fi m da utopia na cidade onde fincou a primeira estaca de madeira, em 1956: Brasília FOTO: JANKIEL GONGKZAROWSKA
Meu faroeste particular
Imagens do desbravador Bernardo Sayão
Sérgio de Sá | Edição 38, Novembro 2009
No meio da estrada em construção, o homem olha para cima. Botas, calça de algodão cáqui, relógio no pulso esquerdo, cinto de couro, camisa branca, algo no bolso: um lenço, uma caderneta ou a caixa dos óculos ray-ban. Ele aponta para o alto. Esse homem que pisa firme o chão morrerá derrubado por uma árvore. Não essa instável, talvez oscilante, que aparece na foto – uma outra. A cena em preto e branco, flagrante marcado em tom épico, era apenas a antessala do fim. A foto está emoldurada na sala da minha memória, o neto que observa sem entender.
Não conheci Bernardo Sayão pessoalmente. Assim, ele sempre me acompanhou apenas como imagem e narrativa. Ombros vastos, corpanzil, forte presença física, a personagem impressiona repetidas vezes. Tomado de entusiasmo, o escritor americano John dos Passos notou, entre outras qualidades, a sua “vigorosa agilidade” no andar. A jornalista Virginia Prewett o retratou como seu tipo inesquecível nas páginas das Seleções do Reader’s Digest:
Ele não era descomunalmente alto (tinha 1,84 metro), mas a figura desempenada, o tórax largo e o gosto pelos empreendimentos grandiosos que irradiava de seu simpático rosto quadrado e olhos perspicazes davam-lhe um ar de gigante.
Em 15 de janeiro de 1959, aos 57 anos de idade, Sayão morreu em um trecho maranhense da Belém-Brasília, no município de Açailândia, poucos dias e quilômetros antes de as duas frentes de trabalho se encontrarem. Morreu sem ver o sonho da Transbrasiliana rea-lizado. Na capital ainda a ser inaugu-rada, minha avó não permitiu que o caixão fosse aberto. Temia a dilaceração do corpo. Queria para si a imagem da virilidade.
Daí correr até hoje a lenda de que Bernardo Sayão não morreu, não. Aquele peso seria de pedra, para enganar o povo devoto. Os índios teriam arrastado o homem para as sombras da mata. Poderiam tê-lo comido, matando a fome de bravura. Na imaginação popular, também corria que casara com uma índia, e tinha sido visto com ela, peladão, pendurado num cipó. Foi assassinado, especulou-se. “O corpo de Sayão não cabia naquele caixão”, rimou outro. Quebraram-lhe as pernas para encaixar naquele espaço exíguo, garantiu um terceiro, fantasioso.
Filho mais velho do segundo casamento de Sayão, o adolescente Fernando nunca viu índio algum nas aventuras empreendidas de braços dados com o pai. Muito menos dos que matam e jantam gente. Prestes a completar 17 anos, ele deveria ter embarcado naquela que seria a última viagem paterna rumo à floresta. Não havia, entretanto, lugar no pequeno avião da Força Aérea Brasileira. Não veria mais o pai vivo. Em 1994, passados 35 anos, seria o único da família a ver o pai morto. Na praça dos Pioneiros do Cemitério Campo da Esperança, o túmulo reservado ao corpo inaugural havia inundado. Boiava. O caixão precisava ser temporariamente removido. O corpo, exumado.
Mármore negro posto de lado, destravado o tampo do compartimento de zinco revestido de madeira, o que Fernando viu foi um cadáver intacto. Assustou-se, especialmente, com a visão dos pés descalços. Até os pelos da sobrancelha espessa estavam lá. Na cabeça, uma faixa amarrada sobre o corte aberto pelo galho da árvore amazônica que atingiu o crânio do “último bandeirante”. A dúvida se foi. Meu avô havia sido embalsamado, lacrado, vedado, pressurizado.
Bernardo Sayão foi o impaciente diretor da Colônia Agrícola Nacional de Goiás que fez uma ponte de tonéis de diesel para cruzar o rio das Almas porque não aguentava mais esperar pela verba da construção oficial. Em texto publicado na revista Visão, com data de 6 de fevereiro de 1959, Antônio Callado recordaria o balançar inseguro na travessia noturna, feita ao lado de Sayão dez anos antes.
Na base do improviso, meu avô ganhou a simpatia do povo e, de lambuja, um processo por improbidade administrativa que lhe tirou um pouco da alegria. Foi um vice-governador de Goiás irritadiço com assessores, paletós, carimbos. Imagino que tenha desejado tomar outro rumo quando ouviu os rumores dos tanques avançando contra a democracia na Europa (mas trabalhou para o Estado Novo). Buscou o Norte eterno quando percebeu o fim da utopia na cidade que começou a abrir na marra, em 1956, no lugar onde fincou a primeira estaca de madeira.
Na infância, o homem de queixo proeminente, esse que nunca tive, cresceu em mim, e me olhava das fotografias com estradas como pano de fundo. An energetic road builder, chamou-lhe a revista Life numa edição de dezembro de 1948. Na reportagem, posteriormente adaptada para o livro O Brasil Desperta (lançado aqui no começo de 1964 e nunca reeditado), John dos Passos narra a espera pelo enérgico construtor de estradas. Quando ele finalmente surge, nota sua beleza e também que ele parece mais velho do que à primeira vista: tem rugas em torno dos olhos.
O autor da trilogia USA demonstra especial afeição pelo caráter desbravador de Sayão. E faz menção, mais de uma vez, à bela filha que o acompanha, de branco, no banco da frente do velho automóvel. Laís, futura senhora Hugo Gouthier, não poderia imaginar que aquela seria uma de suas primeiras aparições na imprensa internacional. Uma estreia sem nome, ao lado do pai, embaixador de um cenário de Velho Oeste.
O carioca da Tijuca Bernardo Sayão, primo da cantora lírica Bidu, arranca suspiros. Que homem era aquele a remar e ser campeão pelo Club de Regatas Botafogo, tendo os músculos à mostra? Que figura é essa que se delineia a espantar com simpatia os maus agouros? Primeiro encantou Lygia Mendes Pimentel, precocemente morta, em 1935. Era jovem viúvo de alta estirpe, com busto do pai, João de Carvalho, cravado na Central do Brasil, quando aceitou, em 1941, o convite de Getúlio Vargas para comandar a Colônia Agrícola de Goiás, no projeto que ficou conhecido como Marcha para o Oeste. Teve lábia suficiente para arrastar Hilda, urbana mas já fascinada, em direção ao nada que era o Planalto Central.
Hilda casou, foi para o interior com Sayão e com ele teve quatro filhos. Passou por vários períodos de ausência do marido, que dizia “Vou ali e volto já” e sumia por dez, quinze dias para trabalhar, sem dar notícia do paradeiro. Na volta, trazia uma simpatia que perdoava todos os pecados, sobretudo o da ausência.
No tempo da Belém-Brasília, incorporava à bagagem bichinhos de estimação: macacos e jacarés. Dizia que era para povoar o zoológico nascente, mas os animais costumavam mesmo ficar na casa da família, dando o ar de sua graça e, às vezes, ferocidade. Dona Hilda viveu os anos de viúva de modo estoico. Não houve herança à altura dos cargos. Ela tocou a vidinha na Fundação das Pioneiras Sociais, vendo de perto o nascimento do Hospital Sarah Kubitschek.
O filho Bernardo garante que o pai foi fiel no casamento. Por onde andou, nunca ouviu papo sobre amantes. Ouço relatos contrários, de que pode ter sido mulherengo. Na dúvida, temo descobrir primos pelo interior de Goiás, nas cidades que margeiam a Belém-Brasília. Não os procuro. Espero que um dia apareçam.
No início daquele ano de 1959 ainda não havia cemitério em Brasília. A morte de meu avô foi a primeira a ter impacto público: a notícia rodou de boca em boca, de bar em bar. O corpo chegou no início da noite, foi velado na Cidade Livre, hoje Núcleo Bandeirante, sem que lhe vissem a face, para desgosto popular. Na Candangolândia, o local da primeira morada, a rua do Sossego, assim batizada por Sayão, houve desassossego. Redemoinhos, de apelido “Lacerdinha”, mesmo raros naquela época do ano, percorreram avenidas, eixos, esplanadas imaginárias. Havia lágrimas nos rostos dos trabalhadores. Os candangos se aglomeraram na tentativa de tocar o caixão.
No dia seguinte, ele seguiu para a Igreja de Nossa Senhora de Fátima, projeto de Oscar Niemeyer erguido entre as superquadras 307 e 308 Sul. No velório, estava Juscelino Kubitschek, o presidente a quem Sayão serviu café, em outra cena do álbum de sua vida. Na foto, Sayão sorri e encara a lente. JK olha para baixo, atento à posição da xícara. Os dois haviam se conhecido pela necessidade de enfrentar a construção de Brasília, no desejo que o presidente tinha de encontrar alguém “disposto a não perder sequer um minuto do tempo… um homem que fosse capaz de superintender os serviços, trabalhando sem descanso dia e noite, mesmo que tivesse de dormir embaixo de uma árvore”. Era Sayão.
Bernardo Sayão é meu faroeste particular. Aprendo como se embrenha na conquista de espaço a ferro e fogo. Em nome do progresso e da comunicação, abro clareiras na densidade da mata, sem firulas antropológicas. Desejo vias de transporte para a industrialização, o emprego, a renda. Recuso a esmola do Estado, porque aduladora, bajuladora. Só não entendo por que não ferrovias. O amor era pelo caminho e não pela máquina, me dizem as vozes familiares.
Sayão é também meu on the road pós-moderno. Vem em fragmentos de asfalto. Posa ao lado do Aero Willys como um caubói na companhia de seu cavalo. Segura um bicho na palma da mão, maneja um cantil de água entre o polegar e o indicador, prende uma bússola no cós, coloca a blusa em tom claro sempre para dentro da calça. Dou crédito aos registros fotográficos. Para onde quer que lance o olhar, vejo as recordações.
É estranho vê-lo de terno e gravata no casamento de Laís, em abril de 1952, em Nova York. Espanto-me diante de todo terno e gravata, que lhe tiram a naturalidade. Parece um decalque, desses que a gente imprimia sobre qualquer superfície, fazendo a caneta percorrer a silhueta, torcendo para que saísse inteiro, para que não restasse uma parte atrás do papel-manteiga. Nessa mesma trilha, gosto de mirar uma cena na qual Niemeyer caminha ao lado de vovô (pensei que nunca seria possível tratá-lo assim) e de Israel Pinheiro, o presidente da Companhia Urbanizadora da Nova Capital do Brasil, a Novacap. O arquiteto comunista parece um lorde inglês em dia de caça. Está de pulôver.
Se a vida fosse um desenho de Walt Disney, um ratinho ficaria excitado com a árvore que não faz sombra ao construtor de estradas e deixa a luz chegar ao rosto. No contraste com o céu, o tronco partido forma uma cruz. Homem e natureza estão destinados à morte. O progresso pede passagem. Era possível avistar de muito alto as duas pontas da rodovia que uniria sul e norte, era intenso o aviso de temporal, era o balançar das copas, era o fim. Há duas fotos em que Sayão levanta o polegar antes de embarcar num helicóptero e num teco-teco, termo que ele gostava de usar. Sinal de positivo, vamos nessa, está tudo bem.
À mesa sob a lona da barraca, Sayão faz anotações. Está na companhia do engenheiro Gilberto Salgueiro e do topógrafo Jorge Dias. O primeiro sai. Meu avô não se prepara para correr enquanto é tempo. Aquele mapa de fuga do galho amazônico que tomba com raiva sobre a lona e violenta o corpo, aquela reta ele não havia traçado. Dias se fere no braço. Sayão, esmagado pela floresta: fratura exposta na perna, braço esquerdo em total desalinho, corte profundo na testa. O destino não lhe permitiu uma morte suave, silenciosa. Morre no helicóptero a caminho de Açailândia.
No verão norte-americano de 1958, John dos Passos voltou ao Brasil e foi conhecer Brasília. Perguntou e procurou por Sayão. Ele não estava mais na construção da nova capital. Na capa da revista Atualidades Vera Cruz, de abril de 1959, três meses após a morte e a um ano da inauguração da capital, a manchete constata: “A Floresta arrebata-nos o Carvalho.” Bernardo Sayão Carvalho Araújo sumiu quando a epopeia do Brasil moderno não podia esperar.