ILUSTRAÇÃO: REINALDO
Minha identidade quase secreta
Revelações do músico amador que mistura Villa-Lobos com Tim Maia e toca Tom Jobim com uma pitada de Jimi Hendrix
Reinaldo Figueiredo | Edição 38, Novembro 2009
Muita gente não sabe, mas por baixo da barba do Osaminha do Casseta & Planeta se esconde um perigoso contrabaixista internacional. E depois que a minha Al Qaeda particular, a Companhia Estadual de Jazz, participou em julho do Festival Internacional de Montreal, muita gente (três pessoas é muito, não?) tem perguntado como é esse meu negócio com a música.
Então vamos lá. Música. A primeira imagem que me vem à mente é uma imagem. Um imagem mesmo, de televisão, e em preto e branco. A imagem da bandinha do Altamiro Carrilho, que aparecia tocando num programa nos anos 50. Eu adorava ver e ouvir aquela bandinha. O que mais me chamava atenção era o cara de boina que tocava a tuba e, de vez em quando, dava um adeusinho para a câmera. Muitíssimas luas mais tarde descobri que o cidadão albino que tocava acordeom na bandinha não era sempre a mesma pessoa. Às vezes era o acordeonista José Neto, e às vezes era o seu substituto, irmão e sósia, Hermeto Pascoal.
Depois começam a aparecer na memória outras imagens, capas de long-plays, os LPs, de compactos simples e duplos. As imagens surgem sonorizadas. O compacto de Garota de Ipanema com Stan Getz e Astrud Gilberto, o LP Tempo Feliz, do Baden Powell e Mauricio Einhorn, um disco do Milton Banana Trio que tinha Nanã, do Moacir Santos. O LP Vibrações, do Jacob do Bandolim, o primeiro do Quarteto em Cy, que ouvi milhares de vezes só para prestar atenção nos arranjos do Eumir Deodato, que eu nem sabia que era o Eumir Deodato.
Depois aparecem capas de Jimi Hendrix, Beatles, Santana e Frank Zappa, além dos dois primeiros LPs do Airto —Moreira lançados nos Estados Unidos. Em todos esses discos, o que me chamava atenção era a parte instrumental. Jimi Hendrix às vezes era bem jazzístico, Santana tinha o apoio de uma cozinha de percussão afro-caribenha. E o Frank -Zappa era uma colagem gigantesca de gêneros musicais, do clássico ao erudito contemporâneo, música concreta e eletrônica, passando por jazz e paródias de todo tipo de música pop. No caso dos Beatles, o que eu gostava era quando pintava um achado do tipo usar o som do instrumento indiano chamado sitar numa música como Norwegian wood. Não me ligava muito em letras. O meu negócio era mais o som, os instrumentos.
Alguns desses discos comprei num sistema de vaquinha, rachando a despesa com um vizinho, o Luiz Carlos. Outros eram emprestados por outro vizinho, um italiano, o Aldo, cujo pai estava sempre voltando da Europa com as últimas novidades. Isso era nos anos 60. Acho que comecei então a “arranhar um violão”, ritual de iniciação quase obrigatório para todo brasileiro de classe média daquela época. Recebia aulas de graça, na base da camaradagem, de outro vizinho, o Mauro, que aprendia violão com o Luiz Roberto, o baixista do grupo Os Cariocas. Sem falar de outro vizinho, na mesma rua, o Ivan, que tinha um piano de cauda em casa. Tinha também um “piano de boca”, aquele negócio que alguns chamam de escaleta ou melódica.
Além do violão, comprei e me meti a tocar cavaquinho, banjo e viola caipira. Meus pais, que sempre gostaram de música, me davam força nessas loucuras. Música era uma coisa presente em casa, na vizinhança, no bairro. Vivi cercado de música por todos os lados.
Outro dia li uma frase do Sidney Bechet, saxofonista da velha-guarda e um dos grandes nomes do jazz, que serve para o meu caso. Ele disse que em Nova Orleans “a música era uma coisa que você tinha que fazer todo dia logo que acordasse, era como comer e beber, era um ato natural da vida”. Isso me lembra outra frase: Jacob do Bandolim falou que poderia tocar o choro Murmurando, do maestro Fon-Fon, todo dia, de quatro em quatro horas, como se fosse receita médica.
Eu poderia fazer a mesma coisa com Nanã, do Moacir Santos. Até porque, quando se toca num estilo jazzístico, a música nunca sai igual. Cada vez ela é outra coisa. Esse é um dos grandes prazeres de tocar música instrumental improvisada, ou jazz, ou “composição espontânea”, ou que outro nome tenha essa música.
É o que eu mais gosto de fazer. Pegar o All blues, do Miles Davis, e tocar numa levada de bossa nova. Ou pegar o Trenzinho caipira, do Villa-Lobos, e misturar com Sossego, do Tim Maia. Ou tocar Chovendo na roseira, do Tom Jobim, com uma pitada de Jimi Hendrix.
Aproveito a digressão para retomar aquelas perguntas de sempre: o jazz morreu? O que é jazz? Para mim, jazz não é mais aquela coisa que se tocava em bares enfumaçados de Nova York — se bem que eu gostaria muito de ter estado em alguns desses bares nos anos 50 e 60. Hoje, jazz pode ser o Hamilton de Holanda tocando seu bandolim de dez cordas, o Paco de Lucía com o seu violão flamenco, o Carlos Malta com seu pífano, o percussionista indiano Zakir Hussain com a sua tabla, ou o libanês tocador de alaúde Rabih Abou-Khalil. Todos eles tocam com a mesma garra e espontaneidade de um John Coltrane ou um Dizzy Gillespie. É “o som da surpresa”, como disse Whitney Balliett, um veterano crítico da New Yorker.
Com o mundo inteiro em intensa interatividade, isso só tende a aumentar. Aliás, a interatividade, essa palavrinha que não sai do noticiário, também ajuda a enxergar a música. Um grupo de jazz, ou coisa parecida, é uma experiência radical em matéria de interatividade: qualquer coisa que alguém do grupo toque — uma nota, um ritmo, uma dinâmica diferente — pode imediatamente provocar nos outros músicos reações que levam a outros caminhos. É uma constante a livre associação de ideias musicais que vão sendo criadas na hora. E o ouvinte dessa música, o cara que acompanha os meandros da improvisação, está sempre em busca de shows desse tipo, nem que seja num barzinho obscuro, para uma plateia de trinta gatos pingados. Isso acontece todo dia, a toda hora, no mundo todo.
Voltando à Máquina do Tempo: estamos em 1968, um ano muito animado. É, além de outras coisas, ano do 3º Festival Internacional da Canção. A música e as artes plásticas se cruzam pela primeira vez na minha história. Eu e um colega de escola tínhamos acabado de fazer um curso de serigrafia lá no MAM…
(Alô, alô! Vocês estão prestando atenção? Acharam esse lance de serigrafia estranho? Eu explico: no ano anterior, eu tinha visto no MAM a — hoje — famosa exposição “Nova Objetividade Brasileira”, com a jovem guarda das nossas artes na época: Gerchman, Vergara, Roberto Magalhães… Além de ligado à música, também gostava de desenho e artes visuais. Estimulado por essa exposição, acabei fazendo o tal curso de serigrafia, que é uma técnica de gravura, uma coisa que muitos brasileiros, no seu linguajar pitoresco, chamam de silk-screen.)
Enfim, eu e esse colega, o Paulo, resolvemos fabricar uma série de flâmulas de pano com uma ilustração alusiva ao célebre 3º Festival Internacional da Canção. O símbolo do festival era um galo, desenhado pelo Ziraldo. Nós, jovens irreverentes, fizemos uma pequena adaptação, e na nossa flâmula tinha o texto “Lembrança do 3º Festival Internacional da Canção” e, logo abaixo, a figura de um frango assado.
A ideia era vender as flâmulas como suvenir na arquibancada do Maracanãzinho, durante o festival. Infelizmente, nossa performance, ou happening, não deu certo. Na entrada do estádio fomos revistados e a “mercadoria” foi toda apreendida. Motivo: além de não termos autorização para vender coisa nenhuma, os fiscais cismaram que a flâmula estava sacaneando a música Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim, concorrente da outra finalista, a subversiva Pra não dizer que não falei de flores, do perigosíssimo Geraldo Vandré. Os caras acharam que o frango assado era um sabiá assado! A nossa ideia era só fazer uma piada gráfica, e eles estavam pensando que a gente queria derrubar o regime militar. É mole? Ah, e esse meu amigo que foi detido comigo na parada das flâmulas mais tarde virou compositor de música erudita contemporânea na Alemanha…
Com outro amigo, o Milton, fiz uma performance para valer no programa de calouros do Flávio Cavalcanti. Concorremos com um número no qual eu tocava cavaquinho, acompanhando um solo de lápis do Milton, naquele estilo de tocar o lápis batendo nos dentes, produzindo notas diferentes. Ele conseguia tocar com muita afinação a complexa melodia do samba Conversa de botequim, do Noel Rosa. Ganhamos o primeiro prêmio. E essa foi a minha estreia no mundo da televisão. Me lembro de que recebemos altos elogios do Sérgio Bittencourt, e para mim ele era muito importante, por ser filho do Jacob do Bandolim.
Com outros dois amigos, um dia formei um trio de cavaquinho, violão e pandeiro e fomos tocar no calçadão da avenida Atlântica para os turistas. A gente passava o pandeiro e, no final da noite, juntávamos a grana para comprar umas pizzas e uns chopes.
Eu gostava tanto da música que minha primeira opção profissional foi ela. Estudei no Instituto Villa-Lobos, quando era no prédio da antiga UNE, no Flamengo. Era uma escola que queria ser revolucionária, com métodos pedagógicos incrementados e toda baseada na liberdade. E a escola tinha alunos que já estavam começando a ficar famosos. Me lembro de assistir às aulas na mesma turma que Paulinho da Viola e Ivan Lins, por exemplo. Talvez sem ter entendido direito o clima de liberdade total, não completei o curso. Mesmo assim, cheguei a trabalhar em publicidade como músico e compositor de jingles. Meu primeiro registro em carteira de trabalho é de músico.
Nessa época toquei também num grupo chamado Equipe Mercado. No arranjo de uma das músicas houve a participação especial de alguns daqueles meus vizinhos de rua, e mais outros amigos, todos tocando “berimbau de boca” ou jew’s harp, ou como chamam os italianos, scacciapensieri (espanta pensamentos). O meu amigo italiano tinha trazido da Europa vários exemplares do exótico instrumento.
Como também eu me interessava pelo desenho de humor, subi um dia a rua Saint-Roman, em Copacabana, mostrei os meus cartuns para o Jaguar e o Ziraldo, e comecei a trabalhar como cartunista e ilustrador no Pasquim. Percebi que no jornalismo de humor eu podia ter um caminho profissional mais estável, mas mesmo assim continuei sempre tocando algum instrumento. Fui até pandeirista de um conjunto de chorinho amador, que eu chamava carinhosamente de Época de Merda (o do Jacob do Bandolim era Época de Ouro e nós ainda estávamos no tempo dos generais e da ditadura, aquela coisa chata).
Esse grupo tocou por um tempo em bares de Botafogo, atraindo algum público e, às vezes, a polícia. Não porque era subversivo (como é que um chorinho instrumental pode ser contra qualquer regime?), mas porque os vizinhos reclamavam do barulho. Quem tocava bandolim nesse grupo era a Susane, que hoje, além de violinista e bailarina, é também a minha mulher. Como se vê, também não é chegada a uma especialização.
Em 1984, o Hubert, o Cláudio Paiva e eu fundamos um jornalzinho de humor, o Planeta Diário. Depois, nos juntamos com o pessoal da Casseta Popular e daí a pouco, estimulados e dirigidos pelo Paulinho Albuquerque, estávamos fazendo um show de humor musical no Jazzmania, extinta casa noturna em Ipanema. Eu me autoescalei para ser o baixista da banda que nos acompanhava e, assim, voltei a ser músico profissional. Essa carreira de shows começou no Jazzmania, mas, apesar do nome do lugar, o show não tinha jazz. Mesmo com esse pequeno probleminha, a junção de música e humor era a minha versão particular do paraíso.
Acabei conhecendo outras pessoas que são músicos e também têm outra profissão, outra atividade paralela. Assim como eles, me considero um músico que, por acaso, não é sustentado pela música. Dito de outra forma: o sujeito é músico, mas nada impede que faça outras coisas, que se sustente de outras maneiras. O que me lembra de novo o Jacob do Bandolim. Ele dizia sempre que era músico amador porque ganhava a vida sendo escrivão da 11ª Vara Criminal. E o Guinga, que até pouco tempo trabalhava no seu consultório de dentista? E o romancista inglês Anthony Burgess, que era compositor sinfônico? E o escritor francês Boris Vian, que também era engenheiro e trompetista? E o saxofonista Luis Fernando Veríssimo, quantos bailes já não animou?
Em 2000, foi lançado o primeiro disco da Companhia Estadual de Jazz, a CEJ. (Esse trocadilho no nosso nome só funciona no Rio de Janeiro, porque acho que só no Rio há uma CEG, Companhia Estadual de Gás.) A nossa música era a sério, mas a minha porção humorista ficou encarregada do texto do encarte do CD, que encomendei a um obscuro crítico de jazz, o quase famoso Leonard Plume. Era assim:
Fiquei surpreso quando os caras da Companhia Estadual de Jazz me procuraram para pedir que eu escrevesse o texto do encarte do seu primeiro cd. Eu não sabia que um grupo de jazz do Terceiro Mundo seria capaz de pagar o que um crítico mundialmente famoso como eu cobra por esse tipo de trabalho. Mas como eles disseram que não seria necessário ouvir a música, eu fiz um preço especial. (Normalmente meus honorários são na faixa de 15 dólares, mas nesse caso eu fiz por apenas 9,99.) Então, pelo telefone, eles tentaram me dar uma ideia de como é o cd. Pelo que entendi, esse quinteto do Rio toca num estilo que poderia ser chamado de hard-bop-samba-jazz, uma mistura de standards do jazz e standards brasileiros, um tipo de jazz quente e tropical, espada e matador. Estas últimas palavras elogiosas estou dando de graça só porque outro dia, em New York, estava almoçando com o Claudio Roditi (ele pagou a conta) e o grande trompetista brasileiro me garantiu que este grupo é “OK”, o que, na sua língua nativa, significa o.k.
É isso aí. Mais de 200 palavras. Está bom demais. O que eles queriam por esse preço?
Leonard Plume — crítico de jazz do The Mileage Voice e editor da Down Bitch Magazine
Antes de lançar o CD, a gente tinha passado três anos tocando toda sexta-feira num bar em Botafogo chamado Satchmo (o apelido do Louis Armstrong). Ali aconteceram jam sessions com canjas memoráveis de músicos como Claudio Roditi, Paulinho Trompete, Vitor Bertrami, Guilherme Dias Gomes, Marcos Amorim e mais um monte de outras feras.
Em 2000 nos apresentamos pela primeira vez no Festival Internacional de Jazz de Montreal e, nove anos depois, em julho passado, estivemos lá de novo, sempre com o nosso parceiro canadense, o grande saxofonista Jean-Pierre Zanella.
Desta vez foi tudo muito rápido: cheguei numa quarta-feira e fui logo para um ensaio com o Jean-Pierre. No dia seguinte, fizemos o show e no sábado voltei ao Brasil. A verdade é que não dá para fazer turnê mundial e programa semanal ao mesmo tempo. Mas valeu a correria. O show, num gigantesco palco ao ar livre, com o repertório do nosso segundo CD, Via Bahia, aparentemente agradou à multidão que lotava a avenida, debaixo do sol do verão canadense. Aliás, uma estação do ano muito curta: o verão dura apenas algumas semanas e é um momento aguardado ansiosamente pelos locais, que só então podem tirar do armário suas bermudas e camisetas.
Se o verão é pequeno, o festival é mega. De 30 de junho a 12 de julho, foram uns 600 shows, sendo que 400 gratuitos, em vários palcos montados no centro da cidade. Teve de tudo: os grandes nomes do jazz como Wynton Marsalis e Charlie Haden, os novos nomes do jazz como Erik Truffaz e Esperanza Spalding, e também a turma do blues e do reggae. Na cinemateca da cidade, todo dia tinha um filme mudo com a trilha sonora feita ao vivo, ali na hora, cada dia por músicos diferentes. Era tanta coisa e tanta gente que o programa do festival teve que ser uma revista de 200 páginas.
Mas o melhor de tudo foi depois do show, andando pelas ruas cheias de gente, a caminho do hotel, ser interrompido por alguns canadenses que fizeram questão de me parar para dizer que tinham gostado muito do nosso som.
E por que tem gente que gosta de ouvir esse tipo de música de improviso? Por que aqueles canadenses todos ficaram lá, em pé, na rua, ligados no show de uma desconhecida banda de “jazz brasileiro”? A turma que frequenta esses festivais está exatamente a fim de ouvir coisas novas e desconhecidas. Amar música é uma questão de curiosidade. Se o sujeito almoça todo dia bife com fritas, quando for encarar uma refeição com pré-entrada, entrada, primeiro prato, prato principal, sobremesa, queijos etc., a variedade toda de ingredientes e preparações pode deixar o cara perplexo. Ou na defensiva, indiferente. Mas, se ele tiver curiosidade para experimentar e curtir, aí ele pode conhecer novos horizontes.
Agora que a metáfora deixou todo mundo com água na boca, vamos para o mundo da música. Assim como a culinária sofisticada, a música também não é uma necessidade. E por isso tem gente que prefere sempre o bife com fritas, e simplesmente não quer ouvir música por mais de três ou quatro minutos. Ou de um gênero que não conhece. Gente que não teve o hábito de escutar músicas mais longas e agora perdeu a curiosidade. Ou então ouve alguns segundos de uma música e já diz: não gostei. Ele não tem paciência ou não percebeu que aquilo é uma introdução, que vai se desenvolver e virar outra coisa, levando a música para outra praia. Aí é tarde, a paciência do cara já acabou e ele, além de não ter saboreado a entrada, não vai encarar o prato principal. Acho que o gosto pode ser adquirido em qualquer idade, mas é claro que quem viveu num ambiente musical vai ter muito mais fome de música.
E a música clássica e erudita? Também gostava de ouvir, mas preferia os eruditos modernos, Stravinski, Ravel e Debussy. E até o Frank Zappa pode ser considerado um compositor erudito contemporâneo. A principal diferença entre a música de concerto e a música improvisada é exatamente que o intérprete erudito está preso à partitura, e o músico de jazz, ou coisa parecida, é uma espécie de coautor instantâneo da música. Mesmo baseado na estrutura de harmonia e melodia da composição original, ele tem liberdade para criar o que quiser a partir dali.
Isso acontece a partir de qualquer “matéria-prima”. Pode ser o Summertime, do Gershwin, ou o bolero Bésame mucho. Quase tudo dá um caldo. Por exemplo, agora, neste momento, estou ouvindo uma faixa que comprei via download: a música é Delicado, um baiãozinho de Waldir Azevedo, um dos maiores sucessos da música instrumental no Brasil nos anos 50. Mas a versão que estou ouvindo é a do pianista Dr. John, um dos grandes nomes da música da Nova Orleans de hoje. Ele toca o mesmo Delicado num estilo totalmente new orleansiano. A música não tem hora nem lugar. É uma linguagem universal, um esperanto que deu certo.
E o humor, nessa história toda? Tem gente que acha que jazz é uma música séria e metida a besta. Não é assim. Tem músicos que são alegres, divertidos, quase humoristas. É só lembrar de Louis Armstrong e Dizzy Gillespie. Não preciso ir muito longe: outro dia, no Rio mesmo, vi um show do trompetista cubano Arturo Sandoval. No meio de uma música, ele começou a fazer um improviso vocal no estilo scat singing, que é um improviso sem letra, só com sons aleatórios. Depois começou a imitar, com a boca, um solo de contrabaixo. A partir daí, passou a fazer a expressão corporal adequada, imitando também o gestual de um contrabaixista, levando a mão cada vez mais para o alto no braço do seu “contrabaixo invisível” à medida que cantava notas mais graves, até levantar a mão numa altura inviável, tentando reproduzir com a voz aquela hipotética nota supergrave. E tudo isso com coerência musical. Foi engraçadíssimo e musicalmente impressionante.
Por mais que tente, não vou conseguir reproduzir nesse texto aquilo que quem estava lá sentiu. A música é isso, essa coisa impossível de se descrever com palavras. Você tem que ouvir. E, de preferência, no local e na hora em que ela é criada. É claro que hoje você pode ver e ouvir muita música na internet, mas garanto que não é mesma coisa. Você tem que estar lá.