ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2009
Kosovo bandeirante
Que paulista nunca pensou em ver São Paulo separado do Brasil?
Fábio Fujita | Edição 40, Janeiro 2010
Na infância de Luciana Toledo, não eram bichos de sete cabeças ou fantasmas que povoavam seus pesadelos. Os algozes do sono usavam fardas e empunhavam escopetas. O trauma estava ligado a sua bisavó, que se habituou a esconder as filhas no armário, com medo de que fossem raptadas ou molestadas durante a Revolução Constitucionalista de 1932, a guerra civil motivada pela resposta de São Paulo ao golpe de Estado de Getúlio Vargas. “Essas pessoas que entrariam em casa seriam os combatentes do Brasil, do grupo do Getúlio”, explica.
Conforme Luciana crescia, a imagem dos homens de farda foi se tornando cada vez mais esfumaçada – mas a ideia de seu estado injustiçado, mais latente. Ela virou uma defensora espontânea dos valores paulistas. Certa vez, discutiu com uma colega de trabalho, ao ouvir dela que a feijoada seria um prato da culinária mineira; para Luciana, a terra de Aécio Neves apenas se apropriou da iguaria suína – naturalmente paulista.
O provincianismo ganharia contornos de militância quando ela se desentendeu com um antigo chefe. Luciana não engolia o fato de não conseguir um aumento quando via o patrão investindo em novos equipamentos, dirigindo bons carros, fazendo viagens recorrentes com a família. O empregador bradava contra a licença-maternidade e sonegava impostos – no entendimento dela, um acinte por parte de um migrante que, em São Paulo, “fizera a vida”. (Luciana prefere não falar de onde vinha o patrão, para não ser tachada de bairrista.)
Nessa época, 2006, Luciana conheceu na internet o Movimento República de São Paulo, o MRSP, trupe de militantes que sonham em ver o estado comandado por José Serra como uma pátria livre. Se identificou. Hoje, responde pela vice-presidência do movimento.
Os integrantes do movimento, sediado na Vila Esperança, zona leste de São Paulo, se reúnem duas vezes ao mês. Segundo o presidente do grupo, Paulo Roberto Silva, são 639 associados em todo o estado. Ele diz que o ideal separatista é coisa de berço: “A gente não transforma ninguém em separatista. Nós cooptamos a pessoa que já pensa assim.” No caso de Silva, questões envolvendo injustiças com o estado eram normalmente debatidas nos jantares de sua família, que, segundo ele, está estabelecida “há 300 anos” na cidade. “Diga qual paulista ou paulistano nunca pensou na ideia de São Paulo separado do Brasil?”, questiona.
A partir da influência dos familiares, Silva foi se engajando naturalmente nos temas relacionados a São Paulo. “Descobri as injustiças tributárias que existem, e aí a gente começa a entender como funciona a ‘pseudofederação'”, explica. Ele menciona a participação paulista no PIB nacional, na ordem de 34%. “Não acho justo que um estado com essa proporção tenha que pedir empréstimo ao BNDES para construir metrô. Somos roubados”, aponta. Outro aspecto não menos importante, cita, é a representação parlamentar no Senado. “São Paulo tem a mesma que o Acre, que é um estado com uma população próxima à de Mogi das Cruzes”, compara.
Na Neverland ideal de Silva, o Brasil entraria num processo gradativo de desfragmentação do atual sistema federativo, “que é extremamente centralizador”. “Queremos todos os Estados autônomos, como repúblicas independentes”, postula. Seria algo como a União Europeia. Para isso, pretende criar, em longo prazo, um partido que tenha por bandeira a luta por essa substituição do sistema. “A ideia é que tenhamos chapa completa, com candidatos a vereador, prefeito, governador, deputado e senador”, diz.
A vice-presidente Luciana admite que a proposta é um tanto utópica, ainda que a deseje muito. “Honestamente, não vejo isso acontecendo. Imagino que a gente vá levar pelo menos mais umas duas gerações para conscientizar todo mundo. Quanto tempo não levou para que as pessoas em Kosovo se revoltassem e fizessem o que fizeram?”, analisa.
Tanto Silva quanto Luciana fazem questão de frisar que o movimento refuta qualquer conotação de preconceito que o ideal separatista possa transparecer. “Aceitamos pessoas de todos os lugares”, assegura Silva. Mas Luciana faz a ressalva de que há dois pesos e duas medidas quando se fala de provincianismos. Cita um hipotético paraibano que venha para São Paulo e se orgulhe de suas origens, ao estampar um adesivo “100% Paraíba” no carro. “Ele tem que ter esse orgulho mesmo”, diz. “Mas se eu colocar um adesivo no meu carro dizendo ‘100% Paulista’, serei linchada na rua. Vão me dizer que sou 100% preconceituosa”, aposta Luciana, que traz nas costas uma tatuagem com o antigo símbolo do Partido Republicano Paulista: a bandeira de São Paulo estampada em um lenço, cobrindo a cabeça de uma mulher.
Para a militante separatista, a resistência generalizada à transformação tem a ver com a ideia de o país perder sua dimensão superlativa: de ser um dos maiores do planeta, ter as mais simbólicas florestas (“a Amazônia é nossa?!”), o maior número de títulos na Copa do Mundo. Ela também considera que a mídia ajuda a tornar São Paulo o patinho feio no desenho geopolítico brasileiro. Certa vez, ao ligar a tevê num noticiário supostamente local, foi surpreendida por uma reportagem que falava sobre um bandido preso “na capital” por assalto à mão armada. “Mas aí mostrava uma polícia que não é daqui, com uma farda azul que eu não sei de onde é, com uma jornalista bonita que não fala a nossa língua”, conta, para ironizar o sotaque carregado da âncora. “Não quero acreditar em teoria da conspiração, entendeu? Não quero ser uma lunática, mas as pessoas estão forçando a barra”, constata, com resignada serenidade.