ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Arundhati apaixonada
A escritora indiana fala de política e esconde um segredo
Paulo Nogueira | Edição 49, Outubro 2010
No próximo mês, Arundhati Roy completará 49 anos. Em 1996, quando publicou O Deus das Pequenas Coisas, ela passou de ilustre desconhecida a ficcionista badalada, xodó da crítica e dos leitores globais. Depois deu uma banana para a literatura e se embrenhou no ativismo político, passando a meter o bedelho, sempre ruidosamente, numa gama fervilhante de assuntos.
Arundhati mora em Nova Delhi, na cobertura de um prédio de quatro andares. Ao conhecer o cineasta Pradip Krishen, seu segundo marido, começou a escrever roteiros para o cinema e televisão. Fez bicos variados, como dar aulas de aeróbica num spa de luxo. Jovem, ela era de parar o trânsito.
Arundhati é uma crítica feroz da indústria cinematográfica indiana, que chegou a ultrapassar Hollywood em venda de ingressos. Deplora o caráter folclórico da produção local, geralmente dramalhões regados a música sentimentaloide, culinária e patriarcalismo. Saudou o recente Khap: A Story of Honour Killing, de Ajay Sinha, que narra o dilema de um hierarca tentado a mudar suas convicções sexistas por amor à neta, pondo em causa a prática ancestral de matar o membro da família que a tenha desonrado. “Estava na cara!”, diz Arundhati, dando uma palmada na coxa. “É natural que as pessoas se escandalizem. Mas o importante é que reflitam sobre o filme.”
O Deus das Pequenas Coisas, no qual as reminiscências da infância no campo e a história da esquerda na Índia se banham num exotismo lírico e comedido, entrou na lista dos melhores do ano do New York Times e deu à autora o prestigioso Booker Prize. Lançado na Índia em maio de 1996, no final de junho já fora vendido para dezoito países. Só de adiantamento a autora recebeu 1 milhão de dólares.
Com o início do novo século, Arundhati deu uma guinada. Os atentados de 11 de Setembro e a retaliação americana provocaram nela uma epifania intelectual, uma espécie de contracatarse. Mais ou menos como a operada no ensaísta Christopher Hitchens, que, deixando o papel de guru de certa esquerda cosmopolita e literária, formulou o conceito de islamofascismo, aproximou-se dos falcões republicanos e defendeu a invasão do Afeganistão e do Iraque. A escritora foi na direção oposta.
O apartamento de Arundhati fica num recanto discreto de Nova Delhi. Ela guia o visitante até o terraço, onde há mesa e cadeiras de vime, uma gaiola com um periquito dorminhoco, umas flores estoicas e um toldo puído. “Só se aguenta ficar aqui no final da tarde desde que passe repelente de insetos, é claro”, ela diz.
Uma das primeiras campanhas em que Arundhati se engajou tinha como objetivo impedir a construção da barragem de Narmada. Soou contraproducente, pois saneamento básico é uma das maiores carências da Índia. O Ganges, no qual boa parte do país ainda se banha e lança os seus mortos, é também a cloaca onde se despejam animais em decomposição e lixo industrial. Mas a represa “é uma falsa solução”, diz Arundhati. “Vai deslocar meio milhão de pessoas e não suprirá nem irrigação nem água potável.” Os protestos lhe renderam um processo do Estado. No tribunal, já que estava ali com a mão na massa, aproveitou para denunciar a corrupção nas concorrências públicas para a construção da obra. Como se recusou a pedir desculpas, foi condenada a um dia de prisão e multa de 2 500 rúpias (menos de 100 reais).
Quanto à escrita, não é que Arundhati tenha trancado o laptop num sarcófago – apenas a ficção. Num tom elegíaco e veemente, ela lembra as palavras de Adorno sobre fazer poesia depois de Auschwitz: “Será outra vez possível apreciar o lento e perplexo pestanejar ao sol de um lagarto recém-nascido ou responder ao ronronar de um gato sem pensar nas Torres Gêmeas ou no Afeganistão?” Para ela, os atentados de 11 de Setembro se equiparam moralmente à guerra ao terror. Seus livros de ensaios panfletários proliferam: contra a globalização, contra o que chama de “neoimperialismo americano”, contra a “nuclearização indiana” (em 2006 a administração Bush assinou um controverso acordo nuclear com a Índia).
Volta e meia a autora é criticada pelos seus pares mais proeminentes. Salman Rushdie ridicularizou a ligação que ela vê entre o terrorismo e a discriminação contra os muçulmanos (a Índia tem a segunda maior população islâmica do mundo). Depois de Arundhati lamentar o estatuto icônico do Taj Mahal, Rushdie espumou: “Essa é apenas a mais recente de uma série de diatribes dela contra a Índia e as coisas indianas.”
O visitante insiste nas críticas que a militante atrai. Ela esboça um sorriso seráfico: “Ah, santo de casa não faz milagre… Nada justifica o terrorismo, que é uma ideologia sem coração. Veja o Talibã: espancam, estupram, apedrejam e infantilizam a mulher. Mas os Estados Unidos, quando acharam conveniente, deram-lhe apoio e armas.” Lembrando Orwell, ela diz: “O discurso dos governantes americanos é puro Big Brother: ‘Somos pacíficos. Porcos são cavalos. Meninas são meninos. Guerra é paz.’” Ninguém escapa: “Bush era de uma estupidez obscena. Quanto a Obama, de boas intenções o inferno está cheio.” Acha que há uma adoração das “torres gêmeas da modernidade: o mercado e a democracia. O produto dessa política é a massificação e o fascismo. A democracia é uma fraude”.
Arundhati Roy é uma mulher atraente, apesar do cabelo preso e da testa abaulada. Sua voz é doce, mas não melíflua. A suavidade da dicção acompanha uma retórica inexorável. As mãos gesticulam como as de um maestro italiano. Tem os olhos grandes de uma coruja que já viu tudo.
De súbito, vem a informação que é um arco-íris no fim do túnel: “Mas eu estou escrevendo um outro romance… Sem pressa. Afinal, levei cinco anos para terminar O Deus das Pequenas Coisas.” É o caso de arriscar uma última pressão: “Pode pelo menos levantar uma pontinha do véu sobre o tema?” Seus olhos emitem uma centelha marota: “Ah, em público uma indiana da gema jamais levanta a ponta do sári…”