ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
O classificador indicativo
Filme francês é muito difícil de explicar
Clara Becker | Edição 52, Janeiro 2011
Eram 5 da tarde de segunda-feira e Diego Assumpção, de 28 anos, assistia ao seu terceiro filme consecutivo. Havia começado com Garotos Perdidos 3, que, na sua avaliação, resultara definitivamente inferior ao Garotos original, o clássico dos anos 80 que dera início à série sobre vampiros. Mudando então de país, gênero e década, mergulhou de corpo e alma em Pecado de Amor, musical argentino da década de 60. Agora via A Sétima Alma, um exemplar de terror.
Bochechas róseas e pele carente de sol, Assumpção assiste a no mínimo seis horas de filme por dia. Ele é funcionário do Ministério da Justiça em Brasília, lotado no Dejus – Departamento de Justiça (sic), Classificação, Títulos e Qualificação –, onde ganha pouco mais de 2 500 reais.
“Desde que comecei nisso, sou obrigado a ver duas vezes um filme que eu não veria de jeito nenhum”, disse. Era uma referência queixosa à namorada, que, intuindo a perda de prerrogativas, liberou-o para o posto com a condição de ele continuar a ir ao cinema para ver o que ela bem determinasse. Este é o segundo cargo público de Assumpção, que fez concurso para analista técnico administrativo do MJ. O primeiro, no qual permaneceu por um mês, não dava olho gordo em ninguém. Ele era técnico do serviço de prestação de contas do Departamento Penitenciário.
Em fevereiro de 2010, Assumpção transferiu-se para o Dejus, onde ele e mais quatorze técnicos se revezam para classificar absolutamente tudo o que é exibido no país – desde novelas do horário nobre a filmes selecionados para festivais exclusivíssimos, como, digamos hipoteticamente, O Cinema Feminino da Chechênia Oriental, em cuja plateia contar-se-iam três leitores do blog de cinema da piauí. Para atender à Constituição e ao Estatuto da Criança e do Adolescente, filmes, espetáculos, programas de TV, jogos eletrônicos e games “de interpretação” (RPG) só podem chegar ao público depois de receberem uma “classificação indicativa” que alerte os pais ciosos sobre as inconveniências a que seus filhos estarão expostos.
Aviso aos cinéfilos compulsivos: o serviço no Dejus também não é lá essas coisas. Em 2010, de janeiro até o início de dezembro, foram classificados mais de 10 600 itens – média de 757 por classificador. Segundo pesquisa informal entre a equipe, só 20% prestam.
Assumpção chega a espumar quando se lembra da infâmia intitulada Supremacia Vermelha, documentário que um mau-caráter do departamento o forçou a assistir. A obra mostra a superioridade do Internacional em relação ao Grêmio. Ser exposto aos melhores momentos do time rival foi traumático. “A década de 70 foi especialmente difícil”, suspira Assumpção, gremista roxo. O profissionalismo o impediu de classificar o filme como impróprio para menores de 18 anos. A desgraça é livre.
No terceiro andar do Anexo II do Ministério da Justiça, enfurnado num cubículo com persianas fechadas, ar-condicionado ligado, um computador, uma tevê LCD de 32 polegadas e três controles remotos na mão, Assumpção aperta a tecla play. A Sétima Alma é outro exemplo dos suplícios a que se sujeita um funcionário do Dejus.
Decorridos 2 minutos e 10 segundos, ele aperta a pausa e anota: Presença de armas com violência. Presença de sangue. Homem acha faca debaixo de um móvel. A faca estava coberta de sangue.
Mais 4 minutos e 30 segundos, nova interrupção: Presença de sangue. Exposição de cadáver. Assassinato. Suicídio. Violência envolvendo crianças: Homem olha sua mulher na cama. Ela está morta e com grande quantidade de sangue ao redor. O homem acredita que ele é o responsável. Em desespero, o homem tenta se esfaquear. Sua filha o observa enquanto ele encrava uma faca no seu peito. Em momento seguinte, o homem se levanta e tenta atacar sua filha, mas é morto a tiros por um policial que acabou de entrar na casa. (Cruzes.)
Seriam mais 25 pausas até o The End, com ênfase na cena em que o diretor, sem esconder suas restrições à estética da sutileza, fez o sangue jorrar em câmera lenta. Para liquidar o assunto, restava-lhe apenas redigir uma sinopse: Um assassino em série retorna à sua cidade natal para matar sete garotos que nasceram no mesmo dia em que supostamente foi morto. O assassino é um espírito maligno que se apodera do corpo de um dos sete garotos. Ficou satisfeito.
“Filme de terror é fácil de resumir, as tramas não são elaboradas.” O duro é filme francês: “Geralmente é mais artístico, fica difícil de explicar o que você acabou de ver”, comenta, fazendo supor que talvez o Brasil tenha perdido uma promissora carreira de crítico cinematográfico. Honesto, ele se mune de café para encarar franceses, asiáticos e iranianos. Jamais avança o filme nem cochila. “Isso não é entretenimento, eu respondo a um processo.”
A Sétima Alma foi indicado para maiores de 16 anos. À diferença dos Estados Unidos, o Brasil é menos tolerante com violência do que com sexo e nudez. O que determina a classificação é a recorrência e a intensidade de cenas que apresentam violência, sexo, nudez e drogas. Nenhum problema se um filme livre mostra consumo moderado de drogas lícitas: vinho no jantar pode, champanhe no ano-novo pode, cigarro na happy hour pode. Fumar maconha para fins medicinais em países onde esse uso é permitido só pode em filmes para maiores de 12 anos. Já o consumo para fins de barato faz a recomendação pular para 14 anos. Havendo crianças ou adolescentes na cena, sobe mais um degrau: 16 anos. Consumo explícito e reiterado de drogas não é recomendado aos menores de 18.
Engana-se quem culpa a classificação indicativa pela escassez, nas novelas, de manifestações mais calorosas do amor entre iguais. Pelos critérios em vigor, nada diferencia um beijo gay de um beijo hétero e ambos são livres. Para ser imprópria a menores de idade, a obra precisa apresentar “situações sexuais complexas”, explica Assumpção: “Uma cena com um casal tendo relações sexuais não é recomendada a menores de 16 anos, mas, se aparece outra mulher na cama, aí é para maiores de 18.”
O olho dele está viciado em reparar nas tendências indicativas. Na fila do ingresso, por exemplo, Assumpção fica observando se os pais respeitam a classificação. Uma vez, na saída, uns amigos perguntaram sua opinião sobre o filme. Ele respondeu no ato: “Doze anos.”