O veterano locutor e presidente quase vitalício da Federação Paulista de Boxe não arreda pé da bancada colada ao ringue. Seu xodó é a Forja de Campeões das noites de terça-feira FOTO: EGBERTO NOGUEIRA
Sangue de amador
Newton Campos nunca lutou, “só em sonho”. Mas passou dois terços dos 85 anos de vida respirando o ar saturado dos ringues de boxe
Fábio Fujita | Edição 53, Fevereiro 2011
O ringue montado no centro da quadra poliesportiva remete ao que poderia ser uma arena para briga de galo, saída de um romance de Gabriel García Márquez. Não que o local seja sebento ou túrbido. Ao contrário. Ele faz parte do aprazível Complexo Desportivo Baby Barioni localizado no bairro da Água Branca, em São Paulo, que inclui três piscinas, vários ginásios com instalações decentes, além de salas de atividades físicas e alojamentos para atletas.
A estranheza, no caso, é com o que se passa ali a cada noite de terça-feira: uma viagem fora do tempo e do espaço, cujo ponto de partida e de chegada é o ringue montado semanalmente para a ocasião.
A lona do ringue, puída, ainda traz os logotipos da Everlast, fornecedora de material de boxe que há mais de dois anos se desvinculou do torneio. A arquibancada de 4 mil lugares parece demasiado grande; o som ambiente é ruim, ecoa por todos os cantos, dificultando a compreensão do que é anunciado pelo locutor. É fácil, no entanto, localizar o dono da voz: de microfone em punho, Newton Campos está sentado numa bancada colada ao ringue, seu lugar cativo desde que aquele ringue existe. Os cabelos brancos, fartos, e a musculatura já flácida do rosto atestam sua idade. Todo o resto naquele senhor de 85 anos vibra, se tensiona, permanece alerta o tempo todo. Desde quando anuncia “Vamos começar o espetáculo, senhoras e senhores”, com entonação de quem está apresentando algo eletrizante, até o pano cair.
O espetáculo em questão é a Forja de Campeões, o mais antigo torneio de boxe amador do Brasil, que há mais de meio século alimenta sonhos e movimenta um segmento da noite paulistana. Começou em 1942, com o nome de Campeonato Popular de Boxe Amador da Gazeta Esportiva, promovido pelo finado jornal no qual Newton escreveu sobre o esporte por 38 anos. Mudou a nomenclatura em 1960, quando Éder Jofre conquistou o primeiro título de pugilismo para o Brasil na categoria peso-galo. Foi o próprio Newton quem sugeriu a troca. “É uma satisfação que trago comigo”, festeja ainda hoje o autor. “O Éder foi uma cria do torneio, estreou aqui em 1953. Então, pensei, como aqui se forjam campeões, por que não rebatizarmos o torneio de Forja de Campeões?”
Numa noite de terça-feira da temporada passada (a deste ano começou em 18 de janeiro), Newton Campos estava como sempre no seu posto de mestre de cerimônias. Vestia uma atípica camisa azul berrante com estampas brancas, quando normalmente circula numa conservadora camisa branca, um tamanho acima do figurino. A rodada daquela noite teria catorze combates, cada um com três assaltos de dois minutos. Por serem os competidores estreantes que sobem a um ringue oficial pela primeira vez, o número de assaltos não é maior. Aquele ringue é a porta de entrada para quem tenta iniciar a carreira de pugilista amador e, quem sabe no futuro, tornar-se um profissional. Dali decolaram para a história do boxe brasileiro, além de Éder Jofre, o sergipano José Adilson “Maguila” Rodrigues dos Santos, Servílio de Oliveira, Chiquinho de Jesus e Miguel de Oliveira. Familiares e amigos dos lutadores torcem e sofrem de pé, no entorno do ringue, gritando incentivos que parecem não chegar aos punhos em luta: “Vai, bate nele!”, “Sai das cordas, sai das cordas!” Dois grandões derrotam dois baixinhos. Dois baixinhos surram dois grandões.
A maioria dos combates é sofrível. Alguns mais parecem briga de rua, menos pelo perfil agressivo dos atletas do que pela falta de técnica. Não há intervalo entre uma luta e outra. Só há tempo para Newton anunciar, e repetir, que o melhor lutador da noite será premiado com um par de luvas e um protetor bucal. Desta vez, o primeiro nocaute só sai ao final do sétimo combate. E na décima luta o pugilista de capacete azul derruba o adversário três vezes no primeiro round. Na terceira queda o juiz chega a abrir contagem, mas Newton, ao microfone, intervém. Explica ao público que três quedas de um lutador no mesmo assalto já configuram derrota. Constrangido, o juiz disfarça o erro e gesticula o fim do combate.
Sim, porque além de organizador da Forja, presidente da Federação Paulista de Boxe, jornalista e locutor, Newton Campos também é jurado diplomado no esporte. Formado no curso de árbitro da Federação Paulista, iniciou essa faceta de sua entrega ao boxe atuando em combates amadores. Ao montar a Fesubox, o braço sul-americano do Conselho Mundial, junto com a Unión Paraguaya de Box, no início dos anos 70,ascendeu paulatinamente ao quadro de jurados de combates internacionais. “Tive o prazer de participar de 23 lutas por títulos mundiais e nunca fui chamado à atenção por ter errado um round sequer”, orgulha-se.
Uma de suas lembranças mais caras data de 1984, Hotel Caesars Palace, Las Vegas. Junto de um mexicano e um filipino, Newton Campos foi um dos jurados do combate entre o panamenho Roberto “Mano de Piedra” Durán, quatro vezes campeão mundial, e o norte-americano Thomas Hearns, octacampeão do mundo. Num assento privilegiado, muito próximo do ringue – e do brasileiro –, estava o Rocky do cinema, Sylvester Stallone. Subitamente, a arena escureceu para que um único feixe de luz percorresse o corredor por onde Mano de Piedra se direcionou ao ringue; pouco depois foi a vez do anfitrião, Hearns. A britânica radicada nos Estados Unidos Shirley Bassey embalou a arena com sua interpretação do hino americano. Um espetáculo suntuoso. “E um brasileirinho lá, no meio de tudo”, rememorou Newton, saboreando a autorreferência.
Ironicamente, falta-lhe no currículo a marca mais umbilical com o esporte que seu maior cronista, o americano A. J. Liebling, chamava de “a doce ciência do boxe”: Newton Campos nunca lutou. Nunca subiu num ringue. “Só em sonho”, lamenta ele.
De resto, vive e respira a coisa. Nas terças-feiras, dia de Forja, chega ao Baby (que a tribo chama de “Babí”) às 14 horas para acompanhar a montagem do ringue e resolver eventuais problemas de organização. A pesagem dos lutadores é feita por ele ao longo da tarde. Oficialmente, ela começa às 16h30, mas Newton dá uma chance para quem quiser chegar mais cedo e fazer uma pesagem prévia. “Quem estiver acima do peso de sua categoria tem tempo de tirar”, admite. A série de lutas começa impreterivelmente às 18h30. Encerrados os combates, Newton volta para seu apartamento de dois quartos na alameda Barão de Limeira, no centro de São Paulo, e vai organizar os resultados da rodada. Faz questão de remeter as informações na mesma noite para o BoxRec, ou boxrec.com, o mais conceituado banco de dados do pugilismo mundial, atualizado diariamente. Até 2008, essa enciclopédia virtual, cujos dados remontam a 1867, tinha computados 1,3 milhão de assaltos de 17 mil pugilistas da ativa e de 345 mil aposentados.
Newton Campos vive com a esposa Ingrid, com quem é casado há 35 anos, e um dos dois filhos adultos, comandante da Gol. Há tempos deixou de fazer as outrora frequentes viagens de lazer à Argentina. Hoje em dia o programa favorito do casal é jantar no italiano La Farina, também no centro da cidade, “onde servem o melhor macarrão que tem”. No tempo que lhe sobra, acampa em frente à tevê para assistir ao maior número possível de modalidades e competições atléticas.
Formado em jornalismo pela Fundação Cásper Líbero, Newton era quase cinquentão quando foi despachado pela Gazeta Esportiva para fazer a cobertura daquela que entraria para a história como a “Luta do Século”. Ano: 1974. Local: Kinshasa, Zaire (atual República Democrática do Congo). Adversários: George Foreman, então campeão mundial dos pesos-pesados versus Muhammad Ali, o idolatrado e petulante Fred Astaire dos ringues.
Único brasileiro credenciado para o evento, Newton se beneficiou de uma passagem aérea que havia sobrado na Cásper Líbero, organizadora até hoje da Corrida de São Silvestre. Um corredor do Zaire havia desistido da prova no ano anterior e o bilhete foi repassado ao colunista de boxe. Levou a tiracolo uma máquina de escrever Hermes Baby portátil com quinze anos de uso, guardada até hoje, e viajou por 24 horas até conseguir chegar ao destino final. Faltavam poucas horas para o início da luta.
Ao chegar no estádio, acabou trocando um dedo de prosa com “aquele escritor, o Norman Mailer”, recordou. “Eu me apresentei como repórter do Brasil e ele desandou a falar em espanhol comigo. Foi uma beleza. Era um sujeito simpático pra burro. Contou que estava escrevendo um livro que seria a sua melhor obra. Morreu, coitado.” Antes, porém, Mailer publicou o clássico A Luta (Companhia das Letras), a sua magistral narrativa do significado daquele espetáculo na selva africana.
Newton, na ocasião, acabou sendo orientado a tomar assento com o staff do Conselho Mundial junto à mesa diretiva, numa área privilegiada colada ao ringue. “É onde ficavam o gongo e o responsável pelas papeletas”, esclarece ele. No oitavo round, com o adversário já extenuado de tanto bater, Muhammad Ali acertou-lhe a mandíbula e George Foreman, o colosso, foi à lona. Na cola dos jornalistas extasiados que invadiram o ringue estava Newton Campos. E duas horas depois já precisou embarcar de volta ao Brasil. Entre um cochilo e outro, datilografou a reportagem dentro do avião da Varig, a tempo de detalhar a vitória de Ali na edição de 1º de novembro de 1974. “Foram quatro páginas, dezoito laudas”, afirma, acrescentando que recebeu aumento de salário por conta da maratona.
Já que nunca foi pugilista, alguma vez quis ser empresário de pugilista? “Nunca”, responde, “sempre quis ser dirigente mesmo. E como dirigente passei por todos os cargos. Faz anos que ganho todas as eleições por aclamação.” Ocupa o posto desde 1970 e não dá sinais de considerar uma mudança de guarda.
O endereço da Federação Paulista de Boxe é o do edifício Brasilar, no Centro velho de São Paulo. Trata-se de um prédio com pintura descascada. O elevador funciona só às vezes. A entidade está instalada no 4º andar, num conjunto modesto de quatro cômodos. É o próprio Newton Campos quem atende as chamadas telefônicas, visto que a entidade dispõe de um único funcionário, encarregado de atualizar o site da Federação com os textos produzidos pelo presidente. Numa tarde recente, recebeu seis telefonemas em uma hora. Num deles, Newton recorreu a uma letra de Mário Lago ao falar com o interlocutor. “Tem um samba antigo que diz ‘Perdão foi feito pra gente pedir’. Você está pedindo perdão? Vou te perdoar. Mas você precisa parar de pegar pedreira. Vamos arrumar um adversário com quem tenha chance. Um abraço.” O dirigente esclareceu: “O rapaz estava perdendo e simulou um golpe baixo. Foi desclassificado e se insurgiu contra a decisão. Agora ligou para se desculpar comigo. Tudo bem. Não sou de guardar mágoa.”
Pelas paredes tingidas de azul-calcinha, se espalham cartazes das principais estrelas do esporte. Vão de Joe Louis, o preferido absoluto de Newton Campos, passando por brasileiros como Miguel de Oliveira e Éder Jofre. Vê-los assim, emoldurados, na acanhada sala do presidente da Federação, diz muito da situação do boxe hoje, no Brasil: fadado à nostalgia. Desde as aposentadorias dos últimos campeões nacionais, Popó e Sertão, ambas em 2006, o país não conseguiu produzir ídolos novos. Ainda que o boxe amador tenha um número razoável de praticantes, com a Forja servindo de celeiro de talentos (em São Paulo anualmente 1 400 lutadores estão na ativa), no âmbito profissional a modalidade sofre com o racha entre as principais cabeças dirigentes. A Federação presidida por Newton, por exemplo, convive com outra entidade concorrente – a Federação de Boxe do Estado de São Paulo – em decorrência do rompimento de Newton com Luiz Cláudio Boselli, ex-presidente (e atual vice) da Confederação Brasileira de Boxe, a CBBoxe.
A cisão se deu por dinheiro. Newton Campos pleiteava da Confederação uma fatia dos recursos provenientes da Lei Agnelo/Piva, segundo a qual 2% da arrecadação bruta de todas as loterias federais do país são endereçados ao Comitê Olímpico Brasileiro. Em 2009, o COB repassou à CBBoxe 1,4 milhão de reais. “Você não pode conceber que uma federação com 161 clubes filiados não receba um níquel dessa fortuna. Ninguém sabe para onde vai esse dinheiro”, afirmou.
As despesas da Federação Paulista são custeadas por meio das taxas de inscrição dos atletas nos torneios e do aporte do International Boxing Group, o IBG, empresa especializada em promover lutas, comandada por Eduardo Mello. É ele, hoje, o empresário brasileiro com atuação mais consistente no boxe profissional. São cerca de quarenta atletas que treinam sob seu comando, dos quais uns oito tem potencial para pensar em títulos mundiais. “Só faço boxe profissional porque, assim, você tem a esperança de fazer esse esporte crescer. E traz muito mais público do que o boxe amador”, explicou Mello.
Ser parceiro da Federação Paulista é a forma encontrada pelo empresário para observar (e, eventualmente, cooptar) amadores promissores que lutam no Baby Barioni. Mello também usa a estrutura do ginásio para promover combates de atletas que ele empresaria. Foi o caso de Josenilson dos Santos, o Jô, que em agosto passado subiu ao ringue numa luta contra o argentino Jeremias Castillo. Não era um combate de disputa de título, serviu apenas para “engordar o cartel”, jargão do meio que significa robustecer o currículo.
“A luta, organizada pela Federação Paulista, foi decidida por pontos, com vitória do brasileiro – ferozmente contestada pelo staff hermano. O próprio Mello, ao final, reconheceu que o argentino fora superior. Newton, por sua vez, contemporizou: ‘Não foi o melhor combate do Jô, mas não achei que ele perdeu, não.’”
Trabalhar o cartel dos lutadores é fundamental para que eles ascendam gradativamente nos rankings e possam, no futuro, enfrentar adversários de primeiro nível, e disputar títulos. Com a falta de visibilidade do boxe no Brasil, os adeptos da modalidade só conseguem vislumbrar alguma possibilidade de êxito nos ringues internacionais. “Se você não ganhar lá fora, não adianta nada ganhar aqui”, garante Mello. A dificuldade está, justamente, em lapidar o atleta certo, aquele que venha a se revelar um novo fenômeno das luvas. “Nossa empresa paga a fundo perdido [os salários aos atletas]”, explica Mello. Não por compaixão. “O boxe é como loteria esportiva: você joga toda semana. Se ganhar, você ganha tudo, mais o que investiu. Um campeão recupera tudo.” Cita como exemplo o filipino Manny Pacquiao, o primeiro a se tornar campeão do mundo em oito categorias, que hoje defende seus cinturões por bolsas de 50 milhões de dólares.
O garimpo por um tesouro escondido nos músculos de lutadores invariavelmente pobres e de baixíssima instrução é outro ponto que alimenta os rachas e as controvérsias no mundo do boxe. Tome-se como exemplo o baiano de Cruz das Almas Valdemir Pereira, o Sertão, último campeão mundial do país. Pobre e analfabeto, conquistou o cinturão dos penas pela Federação Internacional de Boxe ao derrotar por pontos o tailandês Fahprakorb Rakkiatgym. Mas Sertão perdeu o cinturão logo em sua primeira defesa do título, na luta seguinte, e encerrou precocemente a carreira. Newton acha que o baiano poderia ter ido muito mais longe. “Não custava nada ao Servílio ter colocado o Sertão numa escola, ter dado escolaridade”, explicou. Referia-se àquele que gerenciava a carreira de Sertão: Servílio de Oliveira, o primeiro pugilista brasileiro a conquistar uma medalha olímpica, em 1968.
Newton Campos vende tempos mais saudosistas do boxe. Foi o único dirigente que se prestou a ir ao aeroporto desejar boa sorte a Sertão no embarque para a luta com o tailandês. Sabe como ninguém o quanto a maioria dos jovens que sobem num ringue brasileiro dá literalmente a cara a tapa em busca de dias melhores. Ainda na época de amadorismo de Acelino Freitas, o Popó, Newton chegou a visitar a casa do atleta em Salvador. Era um cortiço, onde Popó e o irmão dormiam numa esteira no chão. Separando esse ambiente do quarto da mãe e do pai, só havia uma cortina. “Popó sempre falava em comprar uma casa para a mãe, e conseguiu. Foi a melhor coisa que ele fez”, elogiou. Dirigente e lutador chegaram a se estranhar ao longo da trajetória do baiano, mas, como conselheiro e pupilo, sempre se entendiam no final. “As críticas que recebi foram construtivas, ainda mais vindas do seu Newton, que é uma pessoa que entende de boxe”, diz Popó. Quando está em São Paulo, o ex-campeão mundial nunca deixa de ir ao Baby Barioni “para prestigiar os caras e dar um abraço e um beijo no velho”.
Muitos são os jogos de interesse – ou de sobrevivência – que caracterizam a engrenagem do pugilismo no Brasil. Empresários que enriquecem à custa de bíceps alheios é o fator mais óbvio. Também falta regulamentação na relação promotor–atleta. Nos Estados Unidos, por exemplo, o empresário não pode abocanhar mais do que um terço da bolsa total de um lutador. “Aqui tem promotor que tira 80, 90% da bolsa”, garantiu um bom conhecedor do ramo, que prefere não ser identificado. “Você pega um boxeador que está com a luz cortada, sem crédito no mercadinho, e oferece qualquer caraminguá para ele perder lá fora. Ele vai.”
Tem mais. Ultimamente, o espaço e o interesse que um dia pertenceram ao boxe parecem estar migrando para outra modalidade de luta: o vale-tudo. É uma febre planetária, e a reputação crescente de brasileiros capacitados na combinação de socos e pontapés tem feito com que muitos compatriotas se aventurem por esse caminho. Newton Campos tenta parecer indiferente a essa concorrência. “Eles têm a filosofia deles, nós temos a nossa. Não sou contra ninguém. Mas o vale-tudo não tirou o interesse pelo boxe, não tirou nada do boxe”, assegurou.
A realidade é outra. O que se verifica com frequência é o uso do boxe por parte de alguns atletas como etapa para a posterior incursão nesse vigoroso mundo também conhecido como MMA (sigla em inglês de Artes Marciais Mistas) ou UFC (Ultimate Fighting Championship). O empresário Eduardo Mello reconhece que sua empresa já forneceu sparrings para atletas como Vitor Belfort e os gêmeos conhecidos como Minotauro e Minotouro, que buscavam aperfeiçoamento nas técnicas de mão.
A perda de terreno do boxe para o vale-tudo pode ser explicada pela forma como a segunda modalidade mexe com o fetiche do público (e mesmo do lutador), ao transformar os atletas em avatares de gladiadores contemporâneos. O próprio formato do ringue, fechado, encerra a ideia de uma rinha muito mais cruel. O público quer sangue. É por essa natureza darwiniana que a comparação do vale-tudo com o boxe soa ofensiva para Newton. “Foge de parâmetros humanitários. Não tem arte, tem violência, só”, considerou.
Outro aspecto para se entender o boom do MMA, cujo marketing o define como “o esporte que mais cresce no mundo”, é a forma de remuneração dos atletas. Diferentemente do que ocorre no boxe, um lutador de vale-tudo recebe bons cachês desde quando começa a trabalhar o cartel. Minotouro, que atuou no boxe amador, chegando a conquistar uma medalha de bronze nos Jogos Pan-Americanos de 2007, diz que talvez até preferisse o boxe ao MMA. Mas teve de reconsiderar. “Numa luta de boxe profissional, o cara recebe uns 100 reais por round. Ou seja, uma média de 500 reais por luta. Se você tiver um título brasileiro, talvez consiga uns 1 mil reais por embate. Agora, se você pegar um cara que tem cinco lutas de MMA, ele já tira 2 mil, até 3 mil reais”, explica.
Minotouro cita ainda o caso de seu instrutor de boxe, Erivan Conceição, campeão brasileiro dos médios, que ficou dois anos sem poder lutar para defender o título, pela simples inexistência de desafiantes. Enquanto isso, no MMA, um lutador só fica sem subir ao ringue por mais de um mês por opção própria. Minotouro acredita que teria de viver nos Estados Unidos se quisesse alcançar, no boxe profissional, uma condição semelhante à que ostenta no MMA, onde é ranqueado entre os cinco melhores de sua categoria. Para ele, boxe profissional “só na outra encarnação”.
Sintomático da audiência do vale-tudo é a modalidade constar da grade de programação da tevê aberta – a RedeTV! criou uma faixa especial para as noites de sábado – enquanto o boxe está preterido. Trata-se de um impasse sem solução: sem tevê, inviabiliza-se a formação de ídolos; sem ídolos para mostrar, as emissoras naturalmente não se interessam em transmitir boxe. Parece cada vez mais improvável a repetição do que fez a TV Bandeirantes entre os anos 80 e 90, quando transmitia os melhores combates da geração mítica formada, entre outros, por Mike Tyson, Evander Holyfield, George Foreman. Entre aquelas estrelas da categoria mais nobre do esporte, a de pesos-pesados, havia a presença singular de um brasileiro: a do sergipano Adilson Rodrigues, o Maguila.
A emissora de São Paulo teve a sensibilidade de intuir que o carisma de Maguila, a despeito de seu talento discutível, poderia ajudar a alavancar ainda mais a audiência. E montou um consórcio, o Luqui-Bandeirantes dos empresários Francisco Leal, o Quico, e Luciano do Valle – não só para a transmissão das lutas do boxeador brasileiro, mas também para cuidar de sua carreira. Quico, no entanto, refuta a ideia de que Maguila tenha sido mero resultado de uma estratégia televisiva. “Abrimos espaço para muita gente: o Maguila, o Chiquinho de Jesus, o Tomás da Cruz. O Maguila foi o mais competente daquela geração, e a carreira dele decolou.” Já Newton Campos, que atuou por catorze anos como comentarista de boxe da emissora, dá a entender o contrário. Ao narrar a negociação que intermediou entre Quico e Don King para um eventual confronto entre Maguila e Mike Tyson, ironizou: “Era capaz de o Maguila cair no vestiário!”
Newton garante que sempre soube da importância de haver um brasileiro entre os bambas, e que foi por influência dele, como vice-presidente do Conselho Mundial, que Maguila chegou à segunda posição no ranking da entidade. A partir daí, a trajetória do ex-pedreiro é conhecida: reveses para Holyfield e Foreman o tiraram da elite do esporte. Segundo Newton, o boxeador o culpava pela gradativa perda de posições no ranking do Conselho. “Mas se você perde, você desce; se ganha, sobe. É uma lógica que o Maguila não entendia.” O ex-atleta, de fato, não demonstra gratidão alguma por Newton. “Ele não me ajudou em porra nenhuma! Se eu não nocauteasse os caras, ninguém me botava no ranking. Então quem me ajudou, em primeiro lugar, foi Deus. Depois, eu mesmo”, avaliou Maguila.
Argumentos para tentar convencer as emissoras a lhe dar uma oportunidade para colocar sua Forja na telinha não faltam ao veterano dirigente. Ele se diz convencido da existência de uma demanda reprimida de público, herança dos tempos da Bandeirantes. Também culpa a falta de iniciativa, ou competência, dos departamentos comerciais das tevês, que, segundo ele, não sabem vender o peixe. “Como é possível querer comparar a plateia do boxe com a plateia do surfe? Surfe tem plateia? Boxe tem”, queixa-se. Além disso, ele aposta que o boxe é um dos únicos esportes capaz de fisgar um nicho de audiência instantânea. “Se você chega em casa, liga a tevê e vê que está passando uma luta, você instintivamente torce por um. É da gente. Um cara dá uma pancada e o outro acusa, você torce para o outro revidar”, explicou, postulando se tratar de um esporte que, de certo modo, é uma metáfora da vida. “Estamos sempre lutando por alguma coisa.”
Nos Estados Unidos, mercado que mais valoriza o pugilismo, os bons combates também não são mostrados na tevê aberta. Menos em função do desinteresse das emissoras ou do público, mas por uma estratégia de marketing. Como a demanda é alta, as emissoras guardam as melhores lutas – aquelas que trazem disputa de título – para os assinantes de pay-per-view. O gosto por boxe está no DNA dos Estados Unidos e gerou um hábito semelhante ao que se tem aqui com o futebol: quem não pode comprar o serviço para ver a luta na tevê de casa vai para um sport bar e acompanha de lá os golpes de seus ídolos favoritos. É garantido que verá, além da disputa, um espetáculo de showbiz com direito a celebridades na plateia e pugilistas apresentados como as estrelas que de fato são.
“Se você transmite lutas que não são do nível adequado para a televisão, com um tipo de produção acanhada ou rudimentar, acaba desglamorizando a modalidade”, assegura Quico, que, por meio de sua empresa de marketing esportivo, a SportPromotion, negocia a volta do boxe à tevê aberta. A ideia é transmitir bons combates internacionais de modo a criar novos ídolos. E consequentemente, mais audiência. Para desalento do presidente da Federação Paulista, contudo, a Forja de Campeões não faz parte desse roteiro. “Sei que o Newton faz com todo o empenho, é um batalhador desse negócio há décadas. Mas abrir a câmera e só mostrar aquilo… Não é um produto que tenha mercado para ser exibido”, diagnosticou o empresário.
Enquanto isso, Newton segue fazendo o que está a seu alcance – e o que gosta. Ao final de mais uma terça-feira de boxe amador no “Babí”, ele posava para fotos ao lado do estreante Guilherme Young, categoria superpesado. Por ter desferido o melhor nocaute da noite, Young recebeu o grande prêmio – um par de luvas e um protetor bucal.
Para a escritora norte-americana Joyce Carol Oates, autora de um belo e raro olhar feminino sobre o universo do pugilismo, o boxe talvez sequer deveria ser chamado de esporte. “Esportes são o beisebol, o futebol ou o basquete, pois envolvem um jogo. Você joga futebol, você não joga boxe”, pondera ela. Para Oates, o boxe espelha coisas profundas da condição humana: “Homens lutando contra homens para determinar o seu valor (isto é, sua masculinidade) exclui por completo as mulheres, da mesma forma que a experiência da maternidade exclui os homens.” A romancista não crê na atrofia da modalidade. “Jamais abandonaremos o gosto pelo boxe. É algo semelhante, talvez, a experimentar sangue. Ou amor misturado ao ódio, que sempre é mais forte do que apenas amor. Ou apenas ódio”, conclui.
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