Em sete anos de estudo, Antônio Bonfim ainda não sabe distinguir a palavra “gurjão” de “filé”. “Não sou louco de sair do país sem saber ler”, diz FOTO: ROGÉRIO REIS_TYBA_2011
Baraquio Bama vale nota 10
O duro esforço do brasileiro para chegar às franjas do conhecimento
Paula Scarpin | Edição 56, Maio 2011
Já passava do meio-dia de segunda-feira e o restaurante Garota de Copacabana da avenida Atlântica, no Rio de Janeiro, continuava às traças devido à chuva. Os cozinheiros ainda comentavam o movimento do dia anterior, um domingão ensolarado de abril. O auxiliar de cozinha terminava de lavar a pilha de pratos do almoço dos funcionários quando a impressora cuspiu uma notinha no balcão. Era o primeiro pedido do dia.
O subchefe Antônio Bonfim Ferreira, um baixinho branquelo muito musculoso, destacou a papeleta curva da impressora. “Xis… xis é peixe. Nando, vê pra mim aqui se é gurjão ou filé.” O auxiliar Nando, sem muita paciência, leu: “Prato feito de filé de peixe.”
Cozinheiro há mais de quinze anos, Antônio Bonfim enfrenta diariamente um adversário desigual: a automatização das comandas, introduzida no Garota em 2007. Até então os garçons iam à cozinha e cantavam os pedidos em alto e bom som. Hoje, digitam o código do pedido numa registradora manual do próprio salão do restaurante e o nome do prato sai escrito na impressora cinza-clara instalada na cozinha.
Para saber do que se trata, é preciso lê-lo. Mas Bonfim é analfabeto e boa parte de seus colegas só descobriu que ele não sabia ler com a chegada da novidade. Agora, mais do que exposto, o cozinheiro se sente vulnerável.
Bonfim não se queixa de sua condição social. Acorda todos os dias às 06h50, toma um banho, engole um café preto e desce uma das ladeiras do Complexo do Alemão, Zona Norte do Rio, para pegar o ônibus 484, que o leva direto à Copacabana em uma hora e meia. Vai sentado. No Garota de Copacabana ele está contratado com carteira assinada, tem salário fixo de 700 reais, recebe outros 50 de auxílio-família e consegue tirar até 100 reais por semana em comissões. Quando trabalha acima da jornada de oito horas, recebe pagamento pelas horas extras. Apesar de seu salário estar mais próximo do de um pedreiro do que de um chef, Bonfim sabe que tem sorte. “Hoje em dia não contratam nem para lavar pratos se a pessoa não tiver o 2o grau completo. Por sorte eu nunca precisei ler para fazer o meu trabalho direito”, disse.
Como se sente pouco à vontade para ter conta em banco, ao final do mês ele recebe o salário em cheque avulso e precisa descontar o dinheiro todo de uma só vez. Tempos atrás, na véspera das férias, sacou o equivalente a dois salários. Quando o ônibus parou no ponto do Shopping Rio Sul, dois pivetes entraram gritando “Perdeu! Perdeu!”, e levaram tudo o que Antônio Bonfim tinha na carteira. Ao saber do ocorrido, os patrões reembolsaram 50% do valor roubado, para que ele pudesse pagar ao menos algumas contas. “Meus patrões até já me indicaram para um emprego em Angola. Disseram que era uma boa chance para eu progredir. Eu trabalharia para um brasileiro que queria abrir um restaurante por lá. Mas eu não sou louco de sair do país sem saber escrever”, contou.
Quem leu a comanda para Antônio Bonfim foi Olivânio Pereira Paiva, o Nando. Ele é contratado como auxiliar, subordinado a Antônio na hierarquia da cozinha, apesar de ganharem o mesmo salário. O fato de Nando ter concluído a 5a série, no entanto, o coloca em condição de avaliar o chefe. “Acho que ele tem que abrir mais a mente. Se depender dele para receber o pedido, não sai nada nesse restaurante”, disse.
Muito antes da maquininha, Antônio Bonfim já vem tentando “abrir a mente”. No seu primeiro ano de Rio, em 1988, tentou um ano de “Mobral”, como continua a se chamar o programa federal que sucedeu a campanha de alfabetização dos militares. Sem sucesso. Foi a sobrinha quem conseguiu treiná-lo para assinar documentos. “O problema é que cada vez saía de um jeito”, disse.
Em 2004, já com 33 anos de idade, casado e com duas filhas pequenas para sustentar, soube pela esposa Lucivânia da abertura de um curso de alfabetização na Associação de Moradores de seu bairro. Ela também é analfabeta, apenas não se aflige em aprender a ler. Bonfim frequenta o curso até hoje. Treinou com afinco a padronização de sua assinatura e conseguiu renovar todos os documentos. “Inclusive o título de eleitor. Votei na Dilma duas vezes, uma seguidinha da outra. E a urna é fácil, é que nem um telefone”, contou. “Eu achei ela bonita, simpática. Mesmo quando falaram que ela era sapatona, eu nem quis saber.”
Ainda assim, em sete anos de aulas noturnas, cinco vezes por semana, não consegue distinguir a palavra “gurjão” de “filé”. “Parece que a minha cabeça está fechada. Talvez seja porque eu caí muitas vezes do jegue quando era pequeno.”
Cearense de Guaraciaba, Antônio Bonfim é o quinto de oito irmãos. Seu pai era empregado de uma fazenda, plantava cana e macaxeira e criava gado. Os filhos foram colocados desde cedo no roçado e estudo era considerado coisa de mulher. Quando estava prestes a completar 18 anos, o pai o flagrou queixando-se com o irmão. Apanhou com vara de cana. “Foi aí que eu decidi que, assim que pudesse, sairia de lá”, contou.
A virada ocorreu por causa da irmã mais velha, que havia se casado e morava na favela da Rocinha, na Zona Sul carioca. Numa visita do cunhado ao Ceará, Antônio sondou a possibilidade de voltar com ele. “Olha, de fome você não vai morrer”, garantiu o cunhado. Assim que soube dos planos, o pai fez o que pôde para dissuadi-lo. “Ele me falava que no Rio de Janeiro as pessoas andavam debaixo da terra, que era tudo diferente. E que eu, burro daquele jeito, não ia servir nem para limpar banheiro.”
O primeiro emprego de Antônio no Rio foi justamente o de faxineiro, no Hospital Miguel Couto. “Não dei conta, chorava cada vez que via um defunto”, lembra.
O emprego seguinte foi na faxina de um restaurante na Tijuca. Em seguida, conseguiu uma vaga de auxiliar de cozinha em outro restaurante no Horto Florestal. “Meu trabalho era ajudar o chefe, mas ele era tão folgado que me mandava fazer tudo. Foi lá que eu aprendi o que eu sei”, conta. Percebendo a dinâmica, o dono do restaurante demitiu o chefe e deixou a cozinha nas mãos de Bonfim. “Ele sabia que eu ainda morava de favor na casa da minha irmã, e disse que eu poderia dormir no porão do restaurante, se quisesse.”
A guinada seguinte em sua vida ocorreu numa noite em que um conterrâneo bateu à porta da cozinha já fechada, em busca de emprego. “Eu te indico para trabalhar aqui se você me arrumar uma mulher”, brincou Bonfim. “Não seja por isso”, rebateu o recém-chegado. “Essa daqui da foto é a minha irmã Lucivânia, que veio comigo do Ceará. Estou mesmo procurando um marido para ela.” Antônio confiscou a foto 3×4 da morena de traços delicados e passou a chamar o colega de cunhado. Dois meses depois, o casal foi morar no bairro do Catete e o cunhado herdou o emprego e o porão.
Bonfim e Lucivânia tiveram duas filhas e o quarto e sala do Catete começou a ficar apertado para a família. Um tio dela, que tinha uma casinha de dois quartos no Complexo do Alemão, decidiu voltar para o Ceará e propôs alugar o imóvel para eles por um preço camarada. “Claro que, se eu pudesse, eu não morava lá. Minha mãe só veio me visitar uma vez e não gostou nada. Disse que não é lugar para mim.” Mas o cozinheiro garante que nunca teve problemas com o tráfico.
A casa da família fica em uma ladeira estreita, transversal à rua principal do bairro de Nova Brasília. São dois quartos – um do casal, o outro das duas filhas adolescentes –, sala, cozinha e banheiro distribuídos em uma área de aproximadamente 40 metros quadrados. A abundância de móveis e enfeites faz o espaço parecer ainda menor. A sala, por exemplo, tem dois sofás contornando um rack com dezenas de bibelôs pelas prateleiras – além de uma televisão de 32 polegadas cuja parcela de 300 reais ele paga mensalmente nas Casas Bahia. Nas paredes, borboletas de plástico e, no chão, adornos de jardim, como cogumelos e sapos de argila. Como é de praxe nas favelas, Antônio fez obras na laje, dividindo o espaço entre uma área aberta com churrasqueira e um puxadinho coberto que serve de oficina. De lá de cima é possível ver o muro do colégio, do outro lado da viela, onde está agora instalado o curso noturno de alfabetização que frequenta.
No Brasil de até meados do século XX, uma pessoa era considerada alfabetizada quando capaz de escrever o próprio nome, ler algumas palavras e frases curtas. Durante os anos 80 e 90, pesquisas de diferentes áreas questionaram a visão técnica e instrumental da alfabetização e introduziram o conceito de analfabetismo funcional. Segundo critério da Unesco, a alfabetização funcional é a possibilidade de se sentir inserido na sociedade através da compreensão de textos, indo além de uma rudimentar decodificação. Essa capacitação funcional é verificada através do domínio de habilidades em leitura, escrita, cálculos e ciências.
Nos países desenvolvidos, costuma-se tomar como indicador do nível de alfabetização o ensino fundamental, que varia entre oito e nove anos de escolaridade. Já nas estatísticas brasileiras, a base considerada para avaliação é de apenas três anos. E mesmo segundo parâmetros tão pífios, o Brasil de hoje ainda tem 20,3% de analfabetos funcionais, correspondendo a 29,5 milhões de pessoas.
Graças a duas organizações não governamentais de São Paulo, a Ação Educativa e o Instituto Paulo Montenegro, existe desde 2001 um indicador que mapeia o problema através de uma metodologia mais refinada. Batizado de Inaf (Índice Nacional de Analfabetismo Funcional), ele resulta de entrevistas e testes cognitivos com 2 mil pessoas entre 15 e 64 anos, de zonas urbanas e rurais. Com tabulações complexas divididas em quatro grupos, um dos dados do levantamento mais recente (de 2009) é particularmente acachapante: apenas 25% da população brasileira podem ser considerados plenamente alfabetizados.
– Vamos lá, pessoal. Vocês já sabem. Que palavra é esta aqui no quadro?
A chuva que caía no Complexo do Alemão espantou quase todos os dezenove alunos da turma das 20 horas. Os cinco gatos pingados que não faltaram à aula desviaram o olhar da professora, para evitar que o contato visual fosse confundido com participação.
– Vou ajudar, hein: L com A… G com Ó…
– GÓ… Bigode? – arriscou Antônio Bonfim, como se se tratasse de um exercício de adivinhação.
– Não, Antônio! L com a é “LÁ”, G com o Ó é “GO”, “LA-GO”.
Sempre que tenta ler uma palavra do quadro, Bonfim parece esquecer a sílaba anterior assim que parte para a próxima. Quando vê a palavra “boneca”, ele lê alto: “B com Ó, BÓ. N com É, NÉ. C com A, CÁ… é ‘casa’?”
Veterano, Bonfim é o aluno mais popular da sala. Nas muitas festas promovidas pela turma, ele costuma preparar quitutes do cardápio do restaurante, como pizza marguerita e bolinho de bacalhau. Em sete anos de teimosia para aprender a ler, já viu alguns colegas engrenarem nos estudos, muitos desistirem, e alguns poucos persistirem, como ele, no desafio de juntar as sílabas. “Uma colega que foi para outra escola e conseguiu ler tentou me convencer a mudar também. Mas eu estou bem aqui na Márcia”, contou.
Márcia Regina de Oliveira, uma morena esguia de 47 anos e cabelos alisados, tem na voz uma assertividade quase militar. Mora em Vaz Lobo, favela dominada pelo Terceiro Comando – dissidência do Comando Vermelho, que domina (ou dominava) o Complexo do Alemão. Formada em pedagogia pelo extinto Instituto Madeira de Lei, com especialização em administração escolar na Faculdade Pedro II, Márcia Regina trabalha das 8 às 14 horas na corretora imobiliária Villarejo no bairro do Méier. Não tem salário fixo, mas consegue tirar até 2 mil reais de comissão por mês. Do Méier pega um ônibus até o Complexo do Alemão, onde mantém duas turmas de alfabetização. Pelo prestígio do vínculo de quatro anos com o projeto Brasil Alfabetizado, do governo federal, Márcia tem um acordo com a escola estadual Theóphilo de Souza Pinto que lhe garante uma sala de aula e uma merenda às 19h30 para os alunos das duas turmas. Para serem autorizados a entrar na escola, seus alunos adultos precisam vestir o uniforme padrão das escolas estaduais fluminenses.
Em 2003, Márcia ainda era noiva de um morador do Complexo, que a ajudou a montar sua primeira turma de alfabetização de adultos. O pontapé inicial foi dado com a ajuda do presidente da Associação de Moradores do Alemão daquela época. O noivado não foi em frente, a parceria com a Associação fica na dependência de cada gestão, mas a corretora/professora sempre dá um jeito de fazer novas alianças para manter a turma. Já teve verba da igreja evangélica que frequenta, da CUT e de ONGs. Até o ano passado fazia parte do Brasil Alfabetizado por atender aos requisitos do programa para ser professora voluntária: tinha um emprego que a sustentasse e uma classe de alunos já montada por ela. Recebia, assim, a bolsa-auxílio de 250 reais por turma. Para 2011, entretanto, a verba ainda não saiu. Hoje, é o Sesi que lhe garante uma condição melhor de trabalho: carteira assinada como professora e 500 reais mensais por turma.
O grande nó na alfabetização de jovens e adultos está na multiplicidade de níveis numa mesma sala de aula. Mesmo num universo circunscrito geograficamente, em que as pessoas têm referências comuns, cada adulto que se julga analfabeto estabeleceu um tipo de relação com a palavra escrita e procura o curso com um objetivo diferente. Isso sem contar questões psicológicas, como traumas e diferenças de ritmo e temperamento.
Entre os alunos que se apegaram a Márcia misturam-se idosos que querem copiar receitas e ler a Bíblia, adolescentes que chegaram ao ensino médio sem saber ler uma frase inteira e empregadas domésticas estimuladas pelas patroas. A maioria tem mais idade do que a professora e a trata como se fosse da família: trazem doces, organizam festas e a hospedam nos dias de chuva forte ou confusão no morro.
A maneira que Márcia encontrou para contornar as diferenças abissais de nível de compreensão foi dividir o quadro em dois e dar, ao mesmo tempo, aulas diferentes. Os alunos que já conseguem ler e escrever algumas palavras são da turma A, os outros são da B. Numa noite recente de abril, a professora escreveu a palavra “Carnaval” nas duas metades do quadro. A turma A foi instruída a fazer uma pequena redação sobre o tema, enquanto a turma B trabalharia com as sílabas CA, NA e VA. Os alunos deveriam formar palavras que começassem com cada uma dessas sílabas. Com CA, disseram “cavalo”, “camisa”, “cabelo”. Com NA, “navio”, “nabo” – alguém disse “novela”, e Márcia corrigiu. Com VA, os alunos citaram “vaso”, “vaca”, “vazio”. Um aluno disse “você”.
Em seguida, enquanto os da turma B copiavam as palavras do quadro, os da turma A leram em voz alta o que tinham escrito. Uma aluna escreveu: “O carnaval e uma besta de bauro te desato o que acotesi muit morte.” Ela mesma faz a leitura do que escreveu: “O carnaval é uma besteira, tem barulho, tem desastres. O que acontece é muita morte.”
Márcia gosta de provocar os alunos com discussões de temas da atualidade. Na segunda-feira seguinte ao final de semana em que o presidente americano Barack Obama esteve no Brasil, um aluno trouxe a redação: “Baraquio Bama veio o Brasil nao gostei porque ele para muitas coisas no centro da cidade e porque não podia ter nenhum aviao no ceu.”
O caminho, decididamente, ainda é longo. Do primeiro censo brasileiro, realizado em 1872, até os anos 1940, o critério para avaliar a taxa de alfabetização limitava-se à declaração do indivíduo no ato da pesquisa, baseada na autoanálise. Um embrião de políticas públicas voltadas para a educação da população adulta só se materializou em 1947, com a criação da Campanha de Educação de Adolescentes e Adultos do governo Dutra e, onze anos mais tarde, com a Campanha Nacional de Erradicação do Analfabetismo – ambas adaptações toscas de métodos de ensino para crianças, sem qualquer atenção às diversidades regionais brasileiras.
O rasgo de audácia surgiu no início dos anos 60, quando o educador pernambucano Paulo Freire submeteu 300 trabalhadores nordestinos a uma nova experiência de aprendizado durante 45 dias. Seu método partia de palavras do vocabulário popular da região, que ele chamava de “palavras grávidas de mundo”.
A experiência com trabalhadores da construção civil em Angicos, no Rio Grande do Norte, chamou a atenção do então presidente da República João Goulart. Tomando como ponto de partida a palavra “tijolo” e suas três sílabas, Freire tinha organizado no quadro as outras possíveis combinações formadas pelas mesmas consoantes com as outras vogais:
TA – TE – TI – TO – TU
JA – JE – JI – JO – JU
LA – LE – LI – LO – LU
Sem maiores milagres, um aluno conseguiu formar outra palavra: “TU JA LE”, ou “tu já lês”.
A metodologia foi tão bem-sucedida que Jango se convenceu a implantá-la em todo o Brasil, dando início à formação de coordenadores em vários estados do país. Com o golpe militar de 64, porém, a decolagem foi abortada, Paulo Freire foi preso por 72 dias e seguiu para um exílio de dezesseis anos. Com o lançamento no Chile da obra Pedagogia do Oprimido, que lhe rendeu grande prestígio internacional, o educador acabou recebendo convite para lecionar na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, e posteriormente em Cambridge, na Inglaterra.
Enquanto Freire atuava como consultor de reformas educacionais nas colônias portuguesas na África, como Moçambique e Guiné-Bissau, o seu método de educação popular permaneceu restrito ao movimento subterrâneo da sociedade civil brasileira. E o governo militar implantava o seu próprio método, o Mobral, Movimento Brasileiro de Alfabetização, seguido pelos supletivos. Foi somente a partir de 1985 que o governo federal assumiu um papel menos centralizador dos programas de alfabetização e mais subsidiário de iniciativas dos estados, municípios e organizações sociais.
O ex-presidente Lula, assim como o auxiliar de Antônio Bonfim na cozinha do Garota de Copacabana, cursou até o 5º ano do ensino fundamental. Já por isso, a implantação do programa de financiamento Brasil Alfabetizado, oito anos atrás, dando total autonomia pedagógica aos educadores, foi saudado como uma nova arrancada. Mais uma vez, porém, a alfabetização da massa não aconteceu. Embora tenha cadastrado mais da metade dos analfabetos do país, o programa não teve impacto na erradicação das taxas de analfabetismo – que mantêm o ritmo anterior à existência do programa.
“O programa é muito irregular, depende em demasia da figura do professor, que pode ser qualquer um”, sustenta a pedagoga Eliane Ribeiro, da UniRio, que participou de uma auditoria do Brasil Alfabetizado dois anos atrás. Dá como exemplo uma das escolas que visitou, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Tinha tudo para dar errado. Ficava na beirada da linha do trem, e a aula era frequentemente interrompida por gritos de passantes: “Mobral!” A professora blindou os alunos adultos contra as provocações, e a alfabetização seguiu um curso promissor. Já numa aula em Alagoas, a pedagoga teve a impressão de que os alunos eram figurantes convocados às pressas para a turma não fazer feio na avaliação. “Nosso objetivo não era fiscalizar o professor, e sim verificar a eficácia do programa”, explicou. “Se eu tivesse que escolher um problema principal – metodologia à parte, porque isso varia demais –, eu diria que é a falta de continuidade do projeto.” Com duração de seis a oito meses, o Brasil Alfabetizado não possui vínculo com outros programas.
Algumas escolas particulares, sobretudo as religiosas, oferecem cursos de Educação de Jovens e Adultos (nova nomenclatura para os antigos supletivos). Na Zona Sul do Rio de Janeiro os colégios Santo Agostinho, no Leblon, o Santo Inácio, em Botafogo, e o São Vicente de Paulo, no Cosme Velho, oferecem cursos noturnos a preços módicos. A frequência noturna, nas salas de aula da Zona Sul carioca, é bastante semelhante à da turma da professora Márcia Regina no Complexo do Alemão: alguns idosos, jovens de favelas vizinhas que deixaram a escola e a maioria que trabalha no bairro como porteiro, babá, mecânico ou empregada doméstica.
Dos 170 alunos do São Vicente, por exemplo, 80% são bolsistas e os demais pagam uma mensalidade de 50 reais por mês. O currículo é dividido em quatro módulos e todo aluno novo é submetido a um teste de avaliação. Porém lhe é facultada a opção de permanecer em cada módulo o tempo que quiser, ou de transitar entre os módulos a qualquer momento, de acordo com seu desenvolvimento ou dificuldade.
Nos anos 30, pesquisas do psicólogo bielo-russo Lev Vygotsky com culturas tribais sem contato com a linguagem escrita verificaram que elas tinham em comum indivíduos com uma extraordinária memória visual e topográfica. Vygotsky sugeria que o desenvolvimento da escrita desencadeia a atrofia de modos de percepção que ele descreveu como “primitivos” e “orgânicos”. O tema foi retomado por estudiosos do Centro Internacional de Neurociências da Rede Sarah, com sede em Brasília. No início deste ano, a pesquisa do Sarah indicou que o cérebro rearranja suas funções com a aquisição da leitura. “A escrita é algo relativamente novo na história da humanidade para ter influenciado uma mudança genética”, explicou a coordenadora do trabalho Lúcia Braga ao jornal O Estado de S.Paulo. “A nossa suspeita é de que, em pessoas alfabetizadas, o reconhecimento de rostos seja parcialmente transferido para outra região cerebral.”
Antônio Bonfim não costuma levar em conta as múltiplas habilidades que tem em esferas diferentes de sua vida. No trabalho, além da cozinha, ele ainda quebra um galho resolvendo problemas mecânicos ou elétricos de todo tipo no restaurante. Na tarde daquela segunda-feira chuvosa, quando o movimento baixou ainda mais depois do almoço, o gerente lhe pediu que consertasse a tampa do freezer. O cozinheiro fez rapidamente o diagnóstico: os parafusos estavam enferrujados. Ele mesmo foi até a loja de ferragens, de uniforme e galochas brancas, para comprar parafusos novos e resolveu o problema. E assim já foi com a descarga, ligações elétricas e até uma sineta que tinha desencaixado.
Clébson Freire Rodrigues, gerente do restaurante, recentemente presenteou-o com uma esteira elétrica quebrada. “Eu sabia que ia dar um jeito, e faz tempo que as meninas reclamam que querem fazer uma ginástica”, contou Antônio. Assim que chegou em casa, abriu o aparelho e percebeu que uma pecinha havia queimado. Comprou uma sobressalente em Bonsucesso, e a esteira voltou a funcionar perfeitamente. Quando tem folga, às terças-feiras, ele passa quase o tempo todo na oficina que construiu na laje da casa, consertando eletrodomésticos da vizinhança.
Antônio Bonfim Ferreira não gosta muito de ver televisão, não vai à praia, não costuma frequentar a igreja – apesar de já ter viajado duas vezes com a família para Aparecida do Norte com um grupo de romeiros. Quase não sai de casa nas folgas e há tempos não promove um churrasco na laje de casa. “Eu falo para a Luci: se você não tem o que fazer, vai dormir. A pior coisa que tem é ficar procurando problema por aí.”
Na última quinta-feira de abril, a professora Márcia Regina de Oliveira organizou uma excursão das turmas de alfabetização até o outro lado da rua: ao recém-inaugurado Cine Carioca Nova Brasília, o primeiro cinema do Complexo do Alemão. Antônio Bonfim, como a grande maioria de seus colegas, nunca havia pisado num cinema. Chegou todo arrumado de camiseta polo vermelha, bermuda jeans e tênis, pagou 4 reais na meia-entrada – mas trouxe as balas de casa. O filme em cartaz era a animação Rio, dublada, e em 3D. Entre um bocejo e outro, Bonfim se divertiu em alguns momentos do filme, riu quando a ararinha Blu bateu no bico, se chamando de burro. “Como esse bichinho sofre!”, solidarizou-se com o protagonista. Ao final, confessou: “Não achei muito legal, não. É muito barulhento, e esses óculos são apertados. Mas talvez eu volte quando tiver um filme de luta.”