ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Um, dois, três, Ni-te-rói!
Um time feminino de rúgbi se esfalfa para recuperar o caneco
Renato Terra | Edição 61, Outubro 2011
O técnico Rafael de Luna olhou para Bianca Oliver, tirou um pé do chão e lançou a bola sem força em sua direção, para que ela treinasse um passe. Inadvertidamente, a garota deixou-a cair no gramado. “Pô, não valeu. Meu cabelo entrou na frente”, justificou-se. Bianca é jogadora do time feminino do Niterói Rugby, reunido naquela tarde para treinar no campus da Universidade Federal Fluminense. Ela é morena e tem cabelos compridos, que haviam escapado para fora do elástico.
O treinador, um homem de porte atlético de 32 anos, é cristalino em relação à disciplina capilar: cabelo solto não pode. “Geralmente optamos por um rabo de cavalo, porque nas situações de contato você pode cair em cima do cabelo”, justificou a esguia e delicada Renata Abreu, que joga na posição de pilar. Não convém, de fato, deixar que as madeixas atrapalhem a boa execução de um tackle– o movimento de agarrar a adversária e levá-la ao chão.
No rúgbi, derrubar a adversária é uma estratégia legítima para conter seu avanço. Cada time tenta levar a bola – que é oval – até a extremidade do terreno adversário e encostá-la no chão. Isso configura um try, o gol. Alguns recursos, porém, não são lícitos. Socos e chutes não são tolerados. Puxar o cabelo, tampouco – que dirá unhar as adversárias.
Não que elas estivessem paramentadas para tanto. “As unhas das atletas não podem ser compridas”, assevera Renata. As juízas mais rigorosas pedem para olhar as mãos das moças antes de iniciar a partida. E não há tolerância para quem não cumprir a determinação. “Já vi jogadora roendo a unha para entrar em campo”, recorda-se a atleta.
De camiseta, short, meião e tênis, as atletas do Niterói Rugby se aqueceram e logo passaram para os exercícios de equilíbrio e força. Com rigor e impaciente, Rafael corrigia cada detalhe: “Levanta o ombro! Mantém a base firme! Abaixa o quadril!” O treino dura duas horas e se repete às terças, quintas e, às vezes, aos sábados. Ao final, as jogadoras se enfrentam em grupos de três num animado rachão, no qual simulam situações de ataque e defesa.
Não são poucos os óbices enfrentados pelas atletas. Centenas de bichinhos voadores passeiam em volta das lâmpadas e podem, inadvertidamente, ser engolidos. A todo instante, aviões sobrevoam o gramado em manobra para pousar no Aeroporto Santos Dumont, do outro lado da Baía da Guanabara. Não bastasse o barulho das turbinas, uma bateria de Carnaval formada por alunos da universidade ensaiava ao lado naquela tarde.
As dez moças mobilizadas para o treino não bastavam para montar dois times. Em sua variante clássica, o rúgbi é praticado com duas equipes de quinze jogadores. As brasileiras, contudo, jogam o seven, modalidade que, é razoável supor, se joga com sete atletas de cada lado. A opção se explica por um motivo prosaico. “Primeiro porque era mais fácil arrumar sete meninas do que quinze”, disse Rafael de Luna. “Depois porque tem menos contato.” Os times femininos brasileiros são todos especializados em seven – a modalidade que fará sua estreia nas Olimpíadas do Rio, em 2016. Resignado, o técnico lamenta a dificuldade de contar com o time completo. “Há sempre uma que tem prova, ou ficou presa no trabalho, ou está machucada. Quando o campeonato se aproxima, elas aparecem mais”, explicou.
O rúgbi tem parentesco com o futebol americano, que dele deriva. Em comum com o primo do Novo Mundo, o esporte assume ares de uma batalha campal aos olhos de quem desconhece suas regras. A atleta que tenta cumprir seu objetivo enfrenta em seu caminho uma turba de vorazes adversárias sedentas por derrubá-la. Como no futebol americano, a bola é passada com as mãos. Mas, ao contrário deste, há uma restrição: os passes só podem ser feitos para o lado ou para trás. Jogar a bola para frente, só com os pés.
Renata Abreu iniciou sua carreira no rúgbi com o incentivo do namorado, também praticante. Com queda para o jogo, quatro anos depois havia sido convocada para a Seleção Brasileira. Por isso, tem direito a frequentar uma academia, onde costuma arregimentar novas atletas para sua equipe. Não é missão das mais fáceis: a maioria das atletas paga para jogar. É a contribuição mensal de 50 reais de cada uma que permite custear bolas, uniformes, cones e material de treinamento.
Atletas dos times mais bem colocados em torneios oficiais podem pleitear uma (magra) bolsa-atleta de 935 reais mensais. Jogadoras da Seleção podem ganhar até 1 850 reais por mês – isso se o escrete nacional figurar entre os três primeiros de um torneio internacional. Orgulhosamente, o Brasil é heptacampeão sul-americano.
O escrete feminino do Niterói Rugby surgiu em 1997, por iniciativa de Rafael de Luna – um pesquisador e curador de cinema doido pelo esporte. Quando começou a recrutar moças, logo tinha o bastante para montar um time – algumas atraídas por uma genuína curiosidade pelo jogo, outras mais motivadas pelos olhos azuis do treinador. Mas o técnico tinha ambições estritamente esportivas e não se deixou desviar de seu propósito.
Não demorou até que o time se tornasse uma força do rúgbi feminino nacional: a equipe foi campeã brasileira na temporada de 2008/2009, abocanhou o terceiro lugar no ano seguinte e, no último torneio, ficou em quinto. “Tivemos uma renovação grande”, justificou Rafael de Luna, questionado sobre a queda de rendimento. “Algumas meninas foram fazer intercâmbio e outras não conseguiram mais conciliar o esporte com o trabalho.” Após uma pausa, acabou por admitir a real razão: “A verdade é que os outros times melhoraram.”
Mas não há motivo para preocupação: a recuperação do Niterói Rugby está em curso. Em agosto, o time sagrou-se campeão da terceira etapa do Campeonato Estadual. O maior compromisso é em dezembro, quando se disputa o Brasileirão. As atletas fluminenses desafiarão as meninas do São Paulo Athletic Club, detentoras do título.
Poupada do treino devido a uma lesão, Renata Abreu se recuperará a tempo. Mas sua disposição não foi afetada. Prova disso é que participou do efusivo ritual para unir o grupo, repetido ao fim das atividades e no início de cada partida. Após formar um círculo e juntar as mãos, as atletas soltam a energia contida num grito agudo e cadenciado: “Um, dois, três, Ni–te–rói!”