ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Lenços ao vento
Uma festa ecumênica para celebrar a cultura cigana
Dafne Sampaio | Edição 64, Janeiro 2012
Havia mais vento que gente no Polo Cultural da Zona Leste de São Paulo às oito e meia da noite daquela sexta-feira. A fogueira ainda não tinha sido acesa, as barracas dos oráculos estavam vazias e não parecia que centenas de pessoas chegariam nas próximas horas. Não obstante, cerca de vinte expositores já estavam a postos para vender bijuterias, quadros e almofadas com motivos ciganos, bonecas, roupas, espadas, punhais e uma bebida à base de vinho chamada Sangue de Dragão.
À frente de tudo, estava Rodrigo Valenzuela, 33 anos, um homem moreno de olhos castanhos e costeletas. Cabia a ele a responsabilidade de zelar para que nada saísse errado na “Abertura dos Portais” da 3ª Festa Cigana Família Valenzuela, uma celebração da cultura cigana em São Paulo. Ele se desdobrou na figura de anfitrião, mestre de cerimônias, produtor, marido, pai e dançarino. Quando escureceu, o trabalho estava apenas começando. Pelo menos a chuva foi embora, ficou apenas o vento.
Valenzuela fabrica perfumes e se orgulha da ascendência cigana. “Eu e minha esposa Jovanka sempre soubemos que tínhamos raízes ciganas, mas foi após nosso casamento, cinco anos atrás, que partimos para o resgate da nossa cultura”, explicou. “Minha família veio da Espanha. Cresci falando castelhano, mas quando fui ficando mais velho descobri que algumas palavras eram diferentes. Me diziam que era língua da família. Só depois descobri que era romani”, disse, referindo-se ao dialeto falado pelos ciganos, conjunto de povos nômades oriundos do norte da Índia e dispersos pelo mundo.
No cartaz de uma das barracas de comida, lia-se “culinária cigana”. Mas os aromas dali exalados não evocavam propriamente iguarias típicas. “Resolvi não arriscar”, justificou-se o titular da tenda, de apelido Ildão. “A comida cigana não tem muita saída em festas com muitos gadjé”, disse, empregando o termo que designa os não ciganos. Portanto, nada de bacron parnon (carneiro) ou sarmá (trouxinha de repolho). O que o público queria eram os pastéis, tempuras e yakisobas.
A primeira atividade da noite começou por volta das nove, quando já havia quase 300 pessoas presentes. Para abrir os trabalhos, um bispo da Igreja Católica Apostólica da Redenção celebrou uma missa ecumênica. Embora o catolicismo seja predominante, não há uma religião comum aos 800 mil ciganos que, estima-se, vivem no Brasil. “Somos uma etnia, estamos livres para todas as religiões”, explicou Valenzuela.
A missa já havia terminado quando, às dez e meia, começou o cortejo de santa Sara Kali, padroeira dos ciganos. No ritual, só mulheres de cabeças cobertas são permitidas e apenas virgens podem levar as imagens. Na festa paulistana, coube a duas meninas conduzir a imagem da santa e de sua equivalente católica, Nossa Senhora Aparecida, até um pequeno altar cercado por frutas e pães no meio da quadra. Como o vento não desse trégua, não foram poucas as vezes em que anunciaram ao microfone que haviam encontrado um lenço perdido – ao fim da noite, ninguém ficou sem o seu.
Com as santas devidamente entronizadas, chegou a hora de acender a fogueira que iluminaria o resto das atividades. Lutando contra o vento, só com muito custo a primeira-dama da festa, Jovanka Valenzuela, executou a tarefa. Mais ingrata foi a missão confiada ao senhor ao lado dela, eleito guardião da fogueira. Até o fim da noite, ele não pôde sequer sonhar em deixar o fogo apagar.
À margem do cortejo, uma jovem acompanhava de longe a movimentação. Era Silvana, uma matchuaya, pertencente ao mais ortodoxo dos grupos de ciganos. Em tempos mais rígidos, ela não estaria ali. “Eu nem poderia falar com um homem sem baixar os olhos, mas cinco anos atrás me separei, não aguentava mais traição”, confidenciou. “Os homens matchuaya não fazem nada, são como os leões, só gritam e batem nas mulheres. Virei vagabunda por causa da separação, mas recentemente acabei voltando para que não acontecesse o mesmo com minha filha. Queria casá-la”, disse, enquanto os microfones oportunamente anunciavam a celebração iminente de um matrimônio.
Alheia a Silvana, a noiva Giovana desceu de uma escada na lateral do palco e agarrou o braço do pai. Estava toda vestida de vermelho – o que para algumas famílias significaria que não era mais virgem. O noivo, Arthur, a esperava no palco, junto com os padrinhos, madrinhas e o bispo. O andamento da cerimônia foi acelerado para que o casal pudesse dizer “sim” precisamente às 11 horas da noite e 11 minutos do dia 11 do mês 11 de 2011. Em seguida, os noivos foram levados para perto da fogueira, onde receberam da cigana Lumiar uma bênção mais carnal: com um punhal, ela fez um corte no pulso esquerdo de ambos e os uniu com uma fita vermelha.
Embora a noite estivesse avançada, não havia no Polo Cultural nada que se assemelhasse aos portais que batizavam a festa. Eram uma metáfora, Rodrigo Valenzuela tratou de explicar. “São portais para o nosso resgate cultural”, disse. “Queríamos que essa festa fosse um resumo de tudo o que temos de melhor.” A identidade dos ciganos é uma questão problemática, mas Valenzuela é bastante inclusivo na sua definição. “Palavra qualquer papagaio aprende. Cigano é muito mais que isso, é atitude, por isso reconheço a ‘ciganidade’ de cada um e chamo de primos esses ciganos de coração.” Tal generosidade é vista com reticência por alguns. “Hoje em dia, o nosso maior problema é interno, um quer ser mais cigano que o outro. Malditos sejam esses, porque vão morrer sozinhos.”
A festa já entrava pela madrugada quando Rodrigo e Jovanka Valenzuela pegaram o microfone para agradecer a presença de ciganos e gadjé de todos os cantos. De repente, o anfitrião assumiu um tom mais confessional. “Sou um brasileiro que começou a resgatar a sua própria tradição. Já fui da umbanda, hoje sou de Deus. Somos de tudo e não somos de nada. Vivemos no meio da roda, somos ciganos. Um salve para minha mãe Oxum! Ora iê iê ô Oxum!”, exaltou-se. Jovanka sorriu, pegou o microfone e arrematou com pragmatismo: “Agora vai começar a festa!”