Mosquinha tombada de costas, típico representante da ordem dos dípteros, possui um lambedor, com o qual se regala de matéria orgânica em decomposição FOTO: ROBERTO LINSKER
Por uma mosca morta meu coração balança
Os personagens das fotos morreram ao cabo do ciclo natural de suas vidas. Esses fulaninhos que nos rodeiam e vivem à mercê de um pisão intencional ou de uma refeição de inseticida também morrem, como a gente, de morte morrida, se algo não der muito errado antes
Reinaldo Moraes | Edição 65, Fevereiro 2012
Ao contrário de muitos insetos, que passam parte do ano em estado larvar, poetas vicejam o ano inteiro, faça chuva ou sol, frio ou calor. Isso acontece, em parte, creio eu, pelo fato de não haver limites ao universo de assuntos que podem interessar a um poeta. E também porque poetas podem ser todo tipo de gente, e não só os que escrevem poemas, como sabemos. Fotógrafos, por exemplo, costumam dar grandes poetas. E não são poucos os poetas-fotógrafos que vão buscar seus temas na natureza. E onde fica a natureza, precisamente? Na Amazônia? No Saara? Na minha rua, à sombra de uma velha tipuana em frente à padaria?
Na verdade, se for ver, natureza tem a dar com pau por toda parte, dos píncaros nevados do Himalaia à microscópica flora do meu (e do seu) intestino, passando pelas lindas praias de Itacaré, sul da Bahia, onde, um certo dia, o fotógrafo e editor Roberto Linsker, sem muito o que fazer, resolveu descer de máquina em punho ao rés do chão para encontrar surpreendentes vestígios da natureza que, de repente, apesar de sempre terem estado ali, tocaram a fundo sua veia poética pela via das retinas, pois sabe-se que é grande o número de poetas, em todos os tempos, que se deixaram impressionar pelas informações trazidas pelo olhar, ora pois.
No caso do Linsker, o assunto poético detectado pelo olhar, no chão da varanda da pousada em que se encontrava lá no pequeno paraíso baiano, eram insetos. Mosca, cigarra, grilo. Percevejo, vespa, marimbondo. E o industrioso rola-bosta. Todos desiguais em suas sub-raças insetíferas – havia dípteros, hemípteros, himenópteros, coleópteros, entre outras ordens –, mas todos partilhando uma mesma essencial condição: a morte. Sim, estavam mortos todos eles. O mais importante, contudo, é que os bicharocos tinham findo seus dias na Terra (na superfície, debaixo e acima dela) de forma natural, previsível e não violenta. Apenas tinham tomado a liberdade e morrido, ao cabo de todo um ciclo de vida dividido em várias fases, da larva à pupa (nem todos têm a sorte de viver como pupa), e daí ao inseto adulto. Agora estavam lá, eles e sua morte, ao alcance da lente em close da máquina poetizante do Linsker, patinhas pro ar, na pose clássica em que os vemos em algumas fotos, jazendo leves sobre o branco gelado do piso, um branco neutro, quase inconsubstancial, apropriado décor para um post-mortem de morte morrida, sem a marca da tragédia.
Isolados do mundo em volta pelo enquadramento do fotógrafo, assumem ares metafísicos nas fotos. Não são apenas despojos de insetos mortos. São, nas fotos, a própria ideia da morte. Nota-se, debaixo deles, sua sombra invertida projetada no branco-nada do piso, feito um fantasma fiel montando guarda aos pés do bicho morto.
A sensação de ver essas fotos pela primeira vez oscilou, para mim, do cômico ao dramático, logo desembocando numa quase compulsória reflexão filosófica sobre a morte. Creio que outros olhares terão sentido a mesma compulsão reflexiva, tanto mais profunda quanto mais instruído em filosofias for o espectador. Minha perplexidade filosófica particular, no caso, não passou dum “Porra, quando eu morrer, estarei exatamente como esses carinhas agora: matéria sem vida, mas ainda com forma fotografável, pelo menos por um tempo. Em bom português: morto. Tão morto quanto qualquer um desses pequenos senhores e senhoras”.
De fato, não dá pra pensar cinco segundos na morte sem virar logo um Platão enrolado no lençol à beira do mar Egeu, contemplando o horizonte muito além da finitude da carne, a se indagar: “Onde vou jantar hoje?” Entretanto, o que mais tinha tocado a sensibilidade poética do Roberto Linsker, assim como a minha, bem mais prosaica, ao ver as fotos que ele fez, foi mesmo a sensação de morte natural que elas exalam, título, aliás, de uma belíssima crônica do Vinicius de Moraes (“Morte natural”), onde ele diz: “Só raramente nos lembramos que bichos pequenos também morrem de morte natural.” Mais adiante, o próprio Vinicius explica que, “para todo mundo, a mosca é um inseto que não morre – é morto”.
Verdade absoluta. Eu mesmo confesso, perante o tribunal ético da mãe natureza, ter dado cabo de um número talvez incalculável de insetos na vida, dos que se vê por aí todo dia, na urbe ou no mato, sendo que, no mato, veem-se muito mais e variados insetos. É isso aí: já mandei muitos desses fulaninhos, pernilongos, formigas, besouros, mariposas e até líricas borboletas pras eternas cucuias, prodigalizando-lhes pisões e chineladas que os fizeram explodir em gosmas de variada e nojenta coloração, ou lançando-lhes no meio da cara um inebriante jato de inseticida: fss-fss, como fez aquele cop nova-iorquino lançando gás de pimenta nas fuças de um manifestante do Ocupe Wall Street. Isso, quando não lhes ofereci veneno pelos cantos feito uma bruxa sorrateira, técnica usada sobretudo contra baratas. Enfim, confissão de culpa feita, que me atire a primeira pedra quem nunca trucidou um reles mosquitinho de banana.
Dando sequência às minhas tímidas elucubrações filosóficas, depois de re-apreciar as fotos do Linsker e de ler a crônica do Vinicius (foi o fotógrafo-poeta, aliás, quem me deu a ler a crônica do poeta-músico), passei a ponderar, com funda e cava gravidade nelsonrodriguiana, que os quaquilhões de insetos que nascem e morrem todos os dias partilham conosco a mesma programação existencial básica: nascer, crescer, amadurecer e, se não tiver nenhuma pedra assassina no meio do caminho, morrer de morte morrida, numa cama de preferência. Ou seja, a partir desse insight kafkiano, passei a me sentir bró total da insetolândia, coisa que só os verdadeiros poetas são capazes de te fazer sentir, sejam escritores ou fotógrafos.
Ato contínuo, e fazendo eco a uma passagem do texto do Vinicius, também eu passei a me perguntar com moderada ansiedade: pra onde é que vão os cadáveres espontâneos do tal quaquilhão de insetos de curtíssima existência que esticam suas finas e espinhentas canelas todos os dias no planeta? Uma possível resposta, ainda que parcial, desponta de várias das imagens captadas por Linsker, em que vemos formigas trabalhando o corpo de diversas espécies de insetos mortos. Himenópteras que se alimentam de organismos decompostos (pode ser um caramujo ou a bisavó de alguém), formigas, formigonas e formiguinhas seccionam nacos do inseto morto e levam pra casa. O que sobra da carcaça, o vento leva, de tão leve.
No formigueiro, os pedaços do inseto são armazenados entre folhas para agilizar o crescimento de fungos sobre a carniça. É desses fungos que elas se alimentam, junto, talvez, com a própria matéria orgânica, espécie de requinte comparável aos amantes das trufas piemontesas a sazonar finas viandas levemente putrefatas. E as folhas? Será que as formigas não apreciam também uma saladinha? É possível, e até provável, não sei. Todo mundo já viu formigas transportando folhas de baixo pra cima, mas nunca comendo as folhas. O que posso afirmar com alto grau de certeza é que 90% das formigas, ou algo em torno disso, são marrons e pequenas. E também que as formigas vermelhas são as mais agressivas. Outra coisa que distingue os bichos da ordem das himenópteras, a que pertencem as formigas, é a famosa cinturinha fina. Vespas também têm a cinturinha. Betty Boop também tinha. Mas não era um inseto. Era só um cartum dos anos 30.
Sei isso tudo sobre as formigas, não por ter acordado entomólogo uma bela quinta-feira às 9h35, mas por fonte universitária abalizada (a entomóloga Cristina de Oliveira Araujo, do Laboratório de Ecologia de Insetos da UFRJ). De minha própria erudição sobre matéria insetífera, ouso apenas declarar em juízo que aranha tem oito patas e inseto não é, mosquito e besouro, seis, como todos os insetos, e eu, quatro, quando resolvo me meter em assunto de ciência. Da maioria dos outros plácidos cadáveres nas fotos do Roberto Linsker, minha quadrúpede ignorância mal poderia arriscar palpite sobre sua identidade, não fosse a entomóloga e seu olhar treinado para observar patas, antenas, cinturinha e o aparelho bucal dos bichos. (Muitas espécies de moscas possuem um “lambedor”, embora haja insetos que picam, chupam e até mesmo os que mordem e mastigam.)
Aquela mosquinha tombada de costas, por exemplo, típica representante da ordem dos dípteros, possui o tal lambedor, com o qual se regala de matéria orgânica em decomposição. Difícil dizer se a espécie dela é das que performatizam dancinhas de acasalamento, com o “mosco” arrastando asa pra sua lady mosca, a ver se a impressiona. Em algumas espécies, é só chegar, dar um crau na pitchula, na boa, às vezes em pleno voo, e tchau, bela.
De novo me identifiquei, enquanto humano assumido, com as moscas. Vejo os dois comportamentos se reproduzirem direto na minha espécie. Quantas cópulas, com ou sem acasalamento, já não rolaram entre humanos a partir de uma dança? O macho tira a fêmea pra dançar e vem junto todo um magnífico equipamento reprodutivo, pelo qual o próprio aparelho reprodutivo do macho poderá ou não se interessar, seja em caráter duradouro ou fugaz. Com mosca, é sempre fugaz. Elas não formam parzinhos, como quero-queros, araras, cisnes, pinguins, ariranhas, lobos cinzentos, corujas e certas marmotas pachorrentas. E muitos humanos também. Evoluíram bastante nesse sentido, as moscas.
Já a expressão “cantar fulana”, no sentido de dar ou passar uma cantada na tal fulana, só pode ter vindo do comportamento sexual da cigarra, do clã das hemípteras. O cigarro desata uma serenata infernal no ouvido da cigarra até ela resolver dar pra ele. Reza a sabedoria cabocla que, se a fêmea não acede aos rogos canoros do macho, o coitado continua cantando até estourar. Interessante, lindo e trágico-patético, isso. Pena que não seja verdade. O negócio é que a cigarra, depois de passar anos debaixo da terra como ninfa, sugando seiva de árvore pra viver, um dia sobe pelo tronco e faz a muda pra fase adulta. Na muda, ela rompe a casquinha que a recobre, gerando a lenda de que estoura de tanto literalmente cantar sua imperturbável musa. Entre humanos é que se encontra tal fenômeno, já que muito macho acaba estourando os miolos por causa de uma musa imperturbável. Musa imperturbável é foda, cara.
Também o grilo, da ordem dos ensíferos, estridula seu canto com intenções eróticas, esfregando uma asa na outra. É vegan, o grilo, praticamente só come folhas. Mas odeia ser chamado de bicho-grilo. O que é deveras interessante aqui é o fato de esses caras todos, de qualquer espécie, terem sexo. O macho faz o que pode para enfiar alguma coisa supostamente prazerosa dentro de algum orifício da parceirinha, a qual, dias depois, bota uma porrada de ovos de uma vez em algum lugar, de preferência úmido e fedido, perpetuando destarte sua espécie. Ele e ela acham ótimo esse conúbio. Não é de estranhar que muitos machos dancem, cantem, pulem, mudem de cor, se exibam como podem quando estão com tesão pela parceira mais à mão, a exemplíssimo do que acontece com uns caras do clã dos Homo sapiens sapiens que eu conheço.
Tem inseto que chupa seiva de árvores e plantas. Outros, de provável origem transilvânica ainda não inteiramente comprovada, são mais chegados num sangue, como sabemos. O percevejo é um desses pequenos Dráculas. Hemíptero, parente da cigarra, tem espécies que se contentam com seiva, incenso e mantras indianos tirados no sitar. E tem as espécies mais chegadas num sangão brabo. Pelo sim, pelo não, antes dois percevejos voando que um repartindo a sua cama com você.
Ainda no campo das preferências gastronômicas, impossível não citar o refinado cidadão coleóptero da família dos escarabeídeos que une os ritos e preferências alimentares à prática de uma variante curiosa do golfe, mais conhecido nos meios populares como rola-bosta. É um autêntico besouro, o rola-bosta. O cara se alimenta do primeiro montículo de bosta que lhe aparecer pela frente, bosta fresquinha e apetitosa, bien sûr. Bosta de gado, por exemplo, é a supimpa iguaria de todos os dias. O besouro coprófago se apoia no par de pernas dianteiro, mais troncudo. As pernas traseiras, mais compridas e fininhas, com cerdas nas pontas, servem para confeccionar e prender a bolinha de bosta a ser rolada até um buraco na terra, onde o besouro escatofágico emboca seu tesouro. Isso feito, deposita lá dentro seus ovos e veda o buraco. Os filhotes vão nascer e se desenvolver ali, regalando-se de bosta até empupar e ganhar a luz do dia, já adultos, na estação úmida do ano. Grande rola-bosta! Primo pobre do elegante e literário escaravelho. E, nisso, de rolar bosta, bastante aparentado com os humanos, que só fazem rolar essa bosta de vida até um escuro e definitivo buraco no fim da linha.
O marimbondo, ao contrário, com seu notório gosto afrancesado, só vai de pólen ou néctar de flores. Da ordem das himenópteras, como as abelhas, alguns marimbondos são dotados de ferrão. Muita gente já levou alguma vez na vida ferroada de abelha ou marimbondo. Eu já levei mais de 100 na cabeça, pescoço e ombros, de uma só vez, ao enfiar a cabeça numa caixa de marimbondos amarelos, tentando escalar uma cachoeira no meio do mato. Fui atendido por um segundanista de medicina, amigo da minha namorada. O cara me levou pro hospital em seu carro, tendo à mão um prego previamente desinfetado e uma carcaça de Bic, instrumentos que pretendia usar para me fazer uma traqueostomia no caminho, caso minha glote inchasse a ponto de cortar minha respiração, como resposta alérgica ao veneno das picadas. Foi o médico do pronto-socorro que estimou o número de picadas que eu tomei. Pior dor da minha vida. Queria morrer, nada menos, o que, aliás, eu gritava a plenos pulmões pra quem quisesse e pra quem não quisesse ouvir. Fiquei 24 horas sem poder abrir os olhos, de tão inchados. E ainda estropiei a espinha, com o tombo que levei do alto da cachoeira.
Dizem que se você não mexer com os marimbondos, eles também te deixarão em paz. Ele só ataca quando se sente agredido. Mas é difícil avaliar a psicologia de um marimbondo. E se o cara for paranoico e achar que uma simples piscada d’olhos sua é sinal de hostilidade contra ele? Bom, digamos que acertar aquela cabeçada no vespeiro ao lado de uma linda cachoeira, território deles, não foi muito civilizado da minha parte, mesmo que sem querer. Digamos, então, que, pra mim, com a devida vênia ao ecologicamente correto, marimbondo bom é marimbondo morto, parafraseando grandes humanistas, como Paulo Maluf e o já falecido coronel Erasmo Dias. E vou além: melhor mesmo é fotografia de marimbondo morto. E que se dane a metafísica.