ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Curiosidades com fritas
O ilustrador que entretém comensais apressados
Carol Pires | Edição 66, Março 2012
O clipe de Ai Se Eu Te Pego, hit de verão do cantor sertanejo Michel Teló, foi visualizado 1,9 milhão de vezes no YouTube. Tropa de Elite 2, o filme brasileiro com maior bilheteria de todos os tempos, levou 11 milhões de espectadores aos cinemas. O romancista Paulo Coelho, escritor nacional de maior sucesso no exterior, vendeu mais de 300 milhões de exemplares em todo o mundo. Mas nem sempre a grandiloquência das estatísticas é sinônimo de reconhecimento e sucesso. O ilustrador paulista Hiro Kawahara conta na casa dos bilhões o número de cópias de suas obras que circularam pelo país. Pena que nem todos ligam o criador à criatura: Kawahara é roteirista e ilustrador das toalhas de papel que forram as bandejas do McDonald’s.
O cálculo é dele próprio. São quase duas décadas fazendo cerca de dez edições diferentes de toalhas por ano. Cada uma é impressa com uma tiragem de 12 a 14 milhões de exemplares, distribuídos entre os 616 restaurantes da franquia no Brasil. “Meus desenhos já foram impressos em 3,5 bilhões de cópias”, estima Kawahara, 47 anos, natural de Mogi das Cruzes (SP), um homem cheinho, como se espera que seja um cliente assíduo do McDonald’s.
O ilustrador dá forma a uma dieta gordurosa de conhecimentos de utilidade discutível com que se alimentam os frequentadores da lanchonete entre uma mordida e outra de hambúrguer. Graças a ele, é possível descobrir durante uma refeição que as cebolas eram dadas como presente de casamento na Idade Média, que existe uma lei nos Estados Unidos que proíbe os macacos de andarem de ônibus ou que o nome Brenda vem da expressão céltica que significa “aparência horrível”.
Kawahara era estudante de biologia quando, em 1986, foi convidado por uma amiga a fazer um teste para ser contratado como ilustrador de uma editora. “Só desenhava em canto de caderno”, contou. A prova era fazer o desenho de dois repolhos em aquarela. Com seu desenho pronto, na sala de espera da agência, viu um livro com o desenho bem melhor que o seu. Em desespero, trancou-se no banheiro e usou água da privada para retocar e melhorar seu trabalho. Foi contratado. “Nunca tive outra profissão”, gaba-se.
Virou ilustrador das folhinhas do McDonald’s por acaso. Foi almoçar na lanchonete e esqueceu-se do jornal que sempre levava consigo. Entediado, começou a rabiscar planetas na folha que cobria a bandeja. Como então trabalhava para a agência de publicidade que tinha o McDonald’s como cliente, levou aos chefes a ideia de aproveitar de forma criativa o espaço das lâminas, como os executivos chamam a folha que cobre as bandejas. Dezenove anos depois, o McDonald’s é seu principal ganha-pão. Só no Brasil as toalhas da rede têm propriedades para nutrir o conhecimento dos aficionados pela lanchonete.
Nos últimos anos, a rede anda mais rigorosa no controle dos assuntos abordados nas lâminas. Os desenhos de Kawahara tinham elementos que não se veem mais, como os que mostravam, por exemplo, os princípios da quiromancia. Há mais peças institucionais e desenhos politicamente corretos sobre cidadania e meio ambiente.
Chegou a fazer ilustrações que informavam a quantidade de exercícios necessária para queimar as calorias de cada sanduíche. Um desiludido lhe enviou uma queixa: “Sinto-me culpado de estar comendo. O desenho mostra como você tem que ralar para perder aquilo tudo.” Um Big Mac tem 504 calorias, sem contar a batata frita e o refrigerante que o acompanham costumeiramente. É preciso caminhar uma hora e meia para queimar a energia consumida só com o sanduíche, que contém um quarto das calorias recomendadas a um adulto para um dia inteiro.
Embora poucos identifiquem Hiro Kawahara como autor dos desenhos, ele é objeto de culto na internet. Cinco comunidades no Orkut são dedicadas a seu trabalho. Tem quase 5 mil seguidores no Twitter. Fãs colecionam as lâminas e se divertem procurando sua assinatura, que costuma ficar escondida. Uma única vez se autorretratou, em meio à toalha que celebrava a soma de 7 bilhões de habitantes do planeta. “Eu já não tinha criatividade para preencher uma tirinha com 250 personagens.”
Kawahara se acostumou às críticas e cobranças nas redes sociais – a começar pelo batalhão de Brendas amuadas que o procuraram ao saber da origem do nome. Certa vez, um leitor contestou, com propriedade, o cálculo de quantos caminhões-pipas seriam necessários para armazenar toda a água do mundo. O ilustrador conforma-se: “Como são 14 milhões de cópias, tem sempre aquele cara que não tem mais o que fazer na vida.”
Seu trabalho sofre, por exemplo, a vigilância firme de um leitor que conta a quantidade de negros entre os personagens de cada desenho e reclama que eles estão sub-representados, um mal facilmente constatável na publicidade brasileira. O desenho de um coreano usando chapéu triangular, ornamento típico da China, causou um entrevero diplomático. Depois que o erro foi assinalado pela embaixada da Coreia do Sul, as folhinhas foram retiradas de circulação e reimpressas sem o chapéu.
Kawahara tenta uma carreira artística desvinculada das pressões comerciais. Tem personagens próprios inéditos, como os da série Fadas Enfartadas, das quais não se conhecem os hábitos alimentares. Seus traços lembram os mangás, histórias em quadrinhos japonesas que despertam paixões entre adolescentes. Não é à toa que Kawahara é cultuado por sites como o Jovem Nerd, cujo nome não deixa dúvida sobre seu público-alvo.
Ser conhecido apenas pela arte de praça de alimentação não é motivo de frustração. Kawahara consola-se com uma frase do ídolo Rui de Oliveira, um dos ilustradores mais premiados do país, que fez uma elogiada adaptação de A Tempestade, de Shakespeare, para os quadrinhos. “Lembro-me das embalagens de pão Seven Boys, dos personagens da Bardahl e de uma gama de desenhos que não sai da minha cabeça depois de quarenta anos.” Rui de Oliveira diz que “o ilustrador produz memórias felizes para os futuros adultos”.