ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Metamorfoses
Dependendo de quem vê, somos todos parentes
João Moreira Salles | Edição 68, Maio 2012
Um senhor de cavanhaque e rabo de cavalo com jeitão simpático de hippie velho, desses que Joan Baez namorava lá por 1964, tomou o microfone no auditório principal do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada, o Impa, no Rio, e agradeceu em inglês ao eminente professor que acabara de louvá-lo diante da plateia: “Não vou poder fazer jus a essa apresentação”, sorriu meio sem jeito. “Estou com 75 anos e não foi bem pelo meu trabalho atual que ganhei a medalha…” O americano David Mumford recebeu a sua Medalha Fields, o Nobel da matemática, em 1974, por trabalhos de geometria algébrica.
Foi com alívio que os poucos não matemáticos presentes viram surgir o primeiro slide da palestra, intitulada “Deformações geodésicas no espaço modular”, o que, convenhamos, não esclarece muita coisa. Era um desenho do alemão Albrecht Dürer, uma cabeça masculina sobre a qual o artista traçara uma grade quadriculada. Sua intenção era investigar como a deformação de um rosto produz indivíduos dessemelhantes. Numa sequência de desenhos, ele alterara a proporção das paralelas, ora as afastando, ora as aproximando, obtendo a cada passo um novo rosto – simétrico, dissimétrico, alongado, redondo.
O tratado de Dürer, De Symmetria, foi publicado em 1528. Mumford comentou: “Ele teve a ideia de usar construções geométricas para expressar as diferenças de forma. O que eu faço começou ali, na Renascença.” Mumford cria ferramentas matemáticas para compreender como uma coisa se transforma em outra. As aplicações vão da cinematografia computacional (a matemática é culpada pela existência do planeta Pandora e seus alienígenas filiados ao PV) à produção e leitura de imagens para a medicina.
Na tela surgiu o desenho de um crânio humano e, logo depois, o de um cão, ambos tirados de Sobre o Crescimento e a Forma, do biólogo escocês D’Arcy Thompson, um livro de 1917 cujas 793 páginas são um prodigioso exercício de imaginação e, para muitos, o mais belo exemplo de prosa científica da língua inglesa.
Thompson propôs que a forma das coisas vivas é determinada pelas forças físicas. O grande e o pequeno ocupam reinos diferentes, por neles incidirem forças diversas. Criaturas pequenas têm mais área do que volume porque não lidam com a gravidade, mas com as forças da superfície, como a viscosidade da água. Já o elefante é essencialmente volumoso para poder suportar a força gravitacional que incide sobre o seu imenso corpo. À genética, cabe fornecer a matéria-prima sobre a qual agirão as leis do mundo natural. Compreendidas as forças, as formas se intuem.
Classificar a partir do que separa e distingue permite enxergar a inesgotável diversidade do mundo. Mas existe um outro modo de ver as coisas. Por exemplo:
A deusa aspergiu-a com o sumo da folha mais venenosa – imediatamente a cabeça reduziu-se ao tamanho de uma semente e caíram-lhe os cabelos. Os olhos, as orelhas, as narinas tomaram a dimensão do que deixa de ser. O corpo encolheu-se em pequena esfera. Doravante, ela é só barriga, a cabeça, um ponto. Retém apenas os dedos ágeis, agora patas, que se colam aos flancos. E assim, para sempre, ela pende do fio que tece desde a barriga. E fia e fia, eternamente, o toque tão preciso e firme e leve como quando era humano.
Foi assim que Minerva transformou a tecelã Aracne em aranha. A passagem, aqui traduzida em prosa, está nas Metamorfoses de Ovídio, a suma poética de um vate decidido a demonstrar que, neste mundo, somos todos parentes de tudo – pedras viram homens, homens viram plantas, deuses viram acidentes geográficos, tudo vira tudo.
Mumford não citou Ovídio, mas poderia. Apontando para os dois crânios, ele mostrou como Thompson, aplicando uma função matemática, deformara o homem até chegar ao cão. De outra perspectiva, repetia-se o trajeto dos desenhos de Dürer. Se a figura humana ganhava individualidade a partir de sutis variações de forma, o inverso também era verdade: puxa daqui, estica de lá, e todo ser se transmutaria em qualquer outro. A parentela universal, como queria Ovídio.
Na tela apareceu a ressonância magnética de dois cérebros, um deles normal. No outro, de um paciente com Alzheimer, viam-se áreas brancas, indicando que ali a matéria se retraíra num movimento de flor que murchasse. Que caminho toma a forma saudável em seu percurso rumo à deformação senil?
Uma vez mais, a oficina poética de um velho autor romano do século I iluminava o engenho conceitual da matemática do século XXI. O rei Licáon, um violento, é submetido à vingança de Zeus, que o transforma em lobo:
Seu gosto natural pela violência volta-se para os animais, de cujo sangue se compraz. A veste se converte em pelo, o braço em perna. Faz-se lobo e conserva algo da antiga forma: o mesmo rosto violento, o mesmo olhar brilhante e uma fúria idêntica.
Italo Calvino observou que as metamorfoses de Ovídio despendem o mínimo de energia, percorrendo sempre a via mais curta. Todos os seres guardam algum sinal de seu estado anterior, um modo de reter, tanto quanto possível, a matéria do ser original.
Era a resposta em relação aos dois cérebros na tela: o caminho que leva à doença será o mais econômico. A partir de modelos desenvolvidos pelo grupo de Mumford, neurologistas determinam qual ponto do cérebro percorreu a maior distância entre a saúde e a doença. Esse ponto – o centro morfológico do mal, por assim dizer – terá arrastado consigo aqueles que lhe faziam fronteira, e estes os vizinhos, e assim por diante, em círculos contíguos que se propagam através das rotas menos resistentes. Registra-se assim a própria dinâmica da doença, o cinema de sua ação sobre a matéria.
E, tal como na aranha sobrevive a tecelã e no lobo a fúria do velho rei, nos sólidos descritos por Mumford “todo ponto que viajou através da transformação guarda um sinal de onde partiu. São como pessoas migrando pelo mundo. Não importa aonde vão parar, elas sempre preservam a língua materna”. Na doença, guardam-se indícios do que já foi saúde.
Naquela tarde de março, os jovens que tomavam as cadeiras, os degraus e os corredores do auditório talvez não soubessem que entre eles e a poesia não havia muita distância.