Depressivo, Spalding Gray dizia que vinha pensando muito na mãe, portadora de uma psicose que provocava sentimentos de remorso e autotortura, e que acabou por levá-la ao suicídio FOTO: KATHLEEN RUSSO
O retorno ao mar
Após uma lesão no cérebro, o ator e dramaturgo Spalding Gray teve a mente tomada por fantasias suicidas associadas a afogamento
Oliver Sacks | Edição 109, Outubro 2015
Em julho de 2003, meu colega neurologista Orrin Devinsky e eu fomos procurados pelo ator e escritor Spalding Gray, famoso pelos brilhantes monólogos autobiográficos – modalidade artística possivelmente inventada por ele. Spalding e a mulher, Kathie Russo, nos consultaram devido a uma situação complexa causada por um traumatismo craniano que ele havia sofrido dois anos antes.
Em junho de 2001, o casal passava férias na Irlanda para comemorar o sexagésimo aniversário de Spalding. Certa noite, quando trafegavam por uma estrada vicinal, o carro deles foi atingido defrente pela van de um veterinário. Kathie estava ao volante; Spalding viajava no banco de trás, junto com outro passageiro. Ele estava sem o cinto de segurança, e sua cabeça se chocou contra a nuca de Kathie. Os dois ficaram inconscientes. (Ela sofreu algumas queimaduras e hematomas, mas nenhum dano permanente.) Quando Spalding recobrou a consciência, estava estendido no chão ao lado do carro destruído, sentindo muita dor no quadril direito, que havia sido fraturado. Ele foi levado a um hospital da região, e dias mais tarde foi transferido para um hospital maior, onde implantaram pinos em seu quadril.
Embora o rosto de Spalding estivesse contundido e inchado, os médicos se concentraram no quadril. Mais de uma semana depois, quando o inchaço cedeu, Kathie notou um afundamento pouco acima do olho direito do marido. As radiografias revelaram uma fratura exposta da órbita e do crânio, e os médicos recomendaram uma cirurgia.
Spalding e Kathie retornaram a Nova York para a operação. Ainda que os cirurgiões não tivessem encontrado uma lesão extensa na área, os exames de ressonância mostraram que o lobo frontal direito estava pressionado por fragmentos de osso. Os fragmentos foram removidos, partes do crânio foram substituídas por placas de titânio e um tubo shunt foi usado para drenar o excesso de líquido acumulado no local.
Ele ainda sentia dor devido à fratura do quadril e não conseguia caminhar normalmente, mesmo com o pé sustentado por um aparelho especial (o acidente havia lesado seu nervo ciático). Mesmo assim, estranhamente, ao longo desse terrível período de cirurgias, imobilidade e dor, Spalding dava sinais de uma exuberância surpreendente – na verdade, Kathie o achava “incrivelmente bem” e alegre. No início de setembro de 2001, cinco semanas depois da cirurgia cerebral e ainda de muletas, Spalding apresentou-se para grandes plateias em Seattle. Estava em excelente forma.
Mas uma semana depois, subitamente, uma alteração radical se deu em seu estado de espírito, e Spalding caiu numa depressão profunda, até mesmo psicótica.
Dois anos depois do acidente, Spalding nos fez sua primeira visita. Entrou no consultório de modo lento e cauteloso, erguendo a cada passo o pé direito sustentado pelo aparelho. Sentou-se. Fiquei impressionado com a ausência de fala ou movimentos espontâneos, a imobilidade e a inexpressividade do rosto. Não puxou nenhuma conversa, e só respondia com frases breves, muitas vezes de uma palavra só. Minha ideia inicial, bem como a de Orrin, foi que não se tratava de uma simples depressão, nem de mera reação ao estresse e às cirurgias dos últimos 24 meses – a meu ver, parecia evidente que Spalding também tinha algum problema neurológico.
Quando pedi a ele que me contasse toda a história, ele começou – o que achei bastante estranho – relatando a súbita “compulsão” que havia sentido meses antes do acidente: quis vender sua casa em Sag Harbor, na região dos Hamptons, no estado de Nova York. Ele adorava aquela casa, onde vivia com a família havia cinco anos. Ele e Kathie concluíram que a família precisava de mais espaço e acabaram comprando uma casa na redondeza, com mais quartos e um terreno maior. Ainda assim, Spalding resistiu à ideia de vender a antiga casa, e quando partiram para as férias na Irlanda a família ainda não havia se mudado.
Foi só no hospital na Irlanda, depois da cirurgia no quadril, que ele fechou o negócio da venda da casa antiga. Mais tarde ele teria a impressão de que naquela época estava se sentindo “diferente”, de que “bruxas, fantasmas ou uma espécie de vodu” o haviam “obrigado” a efetuar a transação.
Apesar do acidente e das cirurgias, Spalding continuou bem-disposto por todo o verão de 2001. Tinha mil ideias – o acidente e mesmo as cirurgias renderiam ótimo material para seus monólogos, que ele viria a apresentar num espetáculo intitulado Life Interrupted. Fiquei impressionado, e talvez um pouco perturbado, com essa ideia de elaborar criativamente os acontecimentos horríveis daquele verão. Por outro lado, também pude compreender esse impulso, pois no passado eu mesmo não hesitei em incorporar algumas crises pessoais aos meus livros.
De fato, recorrer à própria vida (e às vezes às vidas alheias) é um recurso comum dos artistas – e Spalding era um artista muito especial. Embora atuasse na tevê e no cinema de vez em quando, sua verdadeira originalidade se manifestava no teatro, onde apresentava seus tão famosos monólogos. (Vários deles, como Swimming to Cambodia e Monster in a Box, foram filmados.) Os espetáculos eram simples e despojados: sozinho no palco, com apenas uma mesa, um copo d’água, um caderno e um microfone, estabelecia uma relação imediata com o público, contando em pormenores histórias quase sempre autobiográficas. Os lances cômicos e os percalços de sua vida – as situações muitas vezes absurdas em que se via metido – alcançavam extraordinária intensidade dramática e narrativa. Quando perguntei sobre seu trabalho, Spalding me disse que era um ator “de nascença” – que, num certo sentido, havia “representado” a vida inteira. Às vezes, inclusive, se indagava se não produzia crises só para ter o que contar – uma ambiguidade que o deixava preocupado. Teria vendido a casa só para ter “material” de trabalho?
Uma das características desses monólogos era que, pelo menos no palco, Spalding raramente se repetia: as histórias eram sempre apresentadas com diferenças sutis, além de variações de ênfase. Tinha um talento raro para inventar a verdade, ou o que lhe parecesse verdadeiro em cada situação.
A família se mudaria no dia 11 de setembro de 2001. Àquela altura, Spalding já estava devastado pelo arrependimento de ter vendido a casa antiga, uma decisão que julgava “catastrófica”. Naquela manhã, quando Kathie lhe falou do ataque contra o World Trade Center, ele mal registrou os acontecimentos.
Kathie contou que a partir de então o marido vivia mergulhado em ruminações em torno da venda da casa, marcadas pela depressão, a obsessão, a raiva e a culpa. Não havia jeito de fazê-lo pensar em outra coisa. Cenas e conversas sobre a casa sucediam-se ininterruptamente em sua cabeça. Todas as demais questões lhe pareciam periféricas e insignificantes. Antes leitor insaciável e escritor prolífico, agora era incapaz de ler ou escrever.
Spalding me contou que tivera depressões ocasionais por mais de vinte anos, e seus médicos chegaram a diagnosticá-lo com transtorno bipolar. Mas essas depressões, embora graves, sempre cediam à terapia verbal ou ao tratamento com lítio. Seu estado atual, segundo ele, era diferente. Tinha uma profundidade e uma persistência inéditas. Agora ele precisava de um esforço gigantesco para atividades como andar de bicicleta, coisa que até então sempre fazia com grande prazer. Tentava conversar com outras pessoas, em especial com os filhos, mas sempre achava difícil. O filho de 10 anos e a enteada de 16 sofriam bastante, sentindo que o pai estava “mudado”, “não era mais o mesmo”.
Em junho de 2002, Spalding procurou ajuda em Silver Hill, uma clínica psiquiátrica de Connecticut. Lá foi tratado com Depakote, droga às vezes usada no combate ao transtorno bipolar. A melhora não foi significativa, e ele se convenceu ainda mais de que tinha sido vítima de uma sina malévola e irresistível que o fez vender a casa.
Em setembro de 2002, Spalding pulou de seu veleiro ancorado, na intenção de se afogar (depois perdeu a coragem e se agarrou ao barco). Alguns dias mais tarde foi encontrado vagando pela ponte de Sag Harbor, os olhos fixos no mar. A polícia interveio e Kathie o levou para casa.
Pouco depois, foi internado na Clínica Psiquiátrica Payne Whitney, no Upper East Side de Nova York, onde passou quatro meses e foi submetido a mais de vinte tratamentos de choque, além de drogas de todo tipo. Não respondeu a nenhum deles – na verdade, parecia piorar a cada dia. Quando saiu da clínica, seus amigos tiveram a impressão de que havia ocorrido com ele algo pavoroso e talvez irreversível. Segundo Kathie, ele era “um homem em frangalhos”.
Em junho de 2003, na esperança de descobrir a natureza da deterioração que Spalding vinha sofrendo, o casal procurou o hospital Resnick, da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA), para que ele se submetesse a testes neuropsiquiátricos. Spalding foi mal em vários testes, que apontavam “déficits de execução e de atenção típicos de lesões do lobo frontal direito”. Os médicos do hospital disseram que a deterioração ainda podia se agravar, devido às cicatrizes cerebrais encontradas na área onde o lobo frontal sofreu o impacto da colisão e dos fragmentos de osso do crânio implodido. Disseram ser possível que ele nunca mais voltasse a produzir um trabalho original. Nas palavras de Kathie, a notícia o deixou “moralmente devastado”.
Em julho de 2003, quando Spalding apareceu pela primeira vez para conversar com Orrin e comigo, perguntei a ele se suas ruminações iam além da venda da casa. Iam: ele pensava muito na mãe, e nos primeiros 26 anos de sua vida. Foi quando ele tinha 26 anos que sua mãe, portadora de uma psicose intermitente desde que ele havia completado 10 anos de idade, caiu num estado permanente de remorso e autotortura, centrado na venda da casa da família. Incapaz de suportar o sofrimento, ela acabou por se suicidar.
Por um mistério insondável, comentou Spalding, ele tinha a impressão de estar revivendo a mesma situação que sua mãe. Sentia-se atraído pela ideia do suicídio, pensava nisso o tempo todo. Disse que se arrependia de não ter se matado no hospital da UCLA. Por que lá?, perguntei. Porque certo dia alguém esqueceu um enorme saco plástico no seu quarto – e o suicídio teria sido “fácil”. Mas desistiu ao pensar na mulher e nos filhos. Ainda assim, a ideia do suicídio não parava de surgir em sua mente, “como um sol negro”, todo santo dia. Contou que os dois últimos anos haviam sido “medonhos”, e acrescentou: “Desde aquele dia, nunca mais sorri.”
Agora, com o pé parcialmente paralisado e o aparelho de suporte que o incomodava quando precisava usá-lo por muito tempo, tampouco podia recorrer ao alívio de uma atividade física. “Fazer caminhadas, esquiar e dançar era muito importante para minha estabilidade mental”, ele disse. E também se sentia desfigurado pelos ferimentos e pela cirurgia no rosto.
As ruminações de Spalding sofreram uma interrupção breve e dramática uma semana antes de ele nos procurar, quando precisou se submeter a uma cirurgia porque uma das placas de titânio presas a seu crânio havia saído do lugar. O procedimento durou quatro horas, sob anestesia geral. Ao despertar da anestesia e ao longo das doze horas seguintes, Spalding foi o mesmo de antes do acidente, falante e cheio de ideias. Suas ruminações e seu desalento desapareceram – ou melhor, ele agora vislumbrava como lidar criativamente, num de seus monólogos, com os acontecimentos dos dois anos anteriores. No dia seguinte, porém, essa breve animação, ou libertação, já se fora.
Conversando sobre o caso de Spalding e observando sua imobilidade peculiar, além de sua falta de iniciativa, Orrin e eu nos perguntamos se algum componente orgânico – causado pela lesão a seus lobos frontais – teria desempenhado algum papel naquela estranha “normalização” posterior à anestesia. Parecia que seus lobos frontais lesionados não lhe permitiam mais uma posição intermediária: ou bem o paralisavam por força de uma férrea limitação neurológica, ou lhe propiciavam a libertação breve e inesperada do estado oposto. Será que alguma espécie de amortecedor – alguma função protetora e inibidora desempenhada pelo lobo frontal – teria sido prejudicado pelo acidente, possibilitando que sua consciência fosse invadida por uma torrente incontrolável de fantasias e pensamentos até então vedados ou reprimidos?
No cérebro, os lobos frontais se incluem entre as partes mais complexas e de evolução mais recente – e cresceram consideravelmente ao longo dos últimos 2 milhões de anos. Nosso poder de pensar de forma abrangente e reflexiva, de evocar e contemplar várias ideias e fatos ao mesmo tempo, de dar conta de um foco duradouro e conseguir mantê-lo, fazer planos e pô-los em ação – são todos da alçada dos lobos frontais.
Mas os lobos frontais também exercem uma influência inibidora ou moderadora daquilo que Pavlov descreveu como “a força cega do subcórtex” – os impulsos e paixões que, se livres de controle, poderiam tomar conta de nós. (Símios e macacos, bem como crianças – embora inteligentes e capazes de antevisão e planejamento –, têm os lobos frontais comparativamente menos desenvolvidos, e tendem a fazer a primeira coisa que lhes ocorre, em vez de parar para refletir. A mesma impulsividade pode ser notada em pacientes com lesões dos lobos frontais.) Normalmente, reina um equilíbrio admirável, uma interação sutil entre os lobos frontais e as áreas subcorticais do cérebro que atuam como mediadoras da percepção e dos sentimentos, o que permite a operação de uma consciência de amplo alcance, capaz de se divertir e criar. A perda desse equilíbrio devido a alguma lesão dos lobos frontais pode “liberar” comportamentos impulsivos, ideias obsessivas e sentimentos e compulsões irresistíveis. Os sintomas de Spalding seriam decorrentes da lesão do lobo frontal ou de uma depressão grave? Ou de uma associação deletéria entre esses dois fatores?
Uma lesão do lobo frontal pode provocar dificuldades relativas à atenção e à solução de problemas, além do empobrecimento da criatividade e da atividade intelectual. Embora Spalding julgasse não ter sofrido qualquer deterioração intelectual desde o acidente, Kathie não sabia dizer se aquela ruminação sem fim não poderia ser, em parte, um modo de “encobrir” ou “disfarçar” uma perda intelectual que ele não queria admitir. De qualquer modo, Spalding sentia não ter mais o mesmo nível de criatividade, o mesmo senso de humor e a mesma competência que marcavam suas apresentações anteriores ao acidente – e os outros concordavam com isso.
Revi Spalding em setembro de 2003, dois meses depois de nossa consulta inicial. Ele não saía mais de casa, bastante abatido, incapaz de trabalhar. Quando lhe perguntei se sentia alguma diferença, ele respondeu: “Diferença nenhuma.” Quando observei que tinha uma aparência mais animada e menos agitada, ele disse: “É o que todo mundo diz. Mas não é o que sinto.” E em seguida (como para me demover de qualquer impressão de que pudesse estar melhor) ele me contou que havia encenado um “ensaio” de suicídio no fim de semana anterior. Como deveria ir à Califórnia para uma reunião de trabalho, Kathie, temendo pela segurança do marido no campo, combinou que ele passaria o fim de semana no apartamento do casal em Manhattan. Ela viajou e ele ficou em Manhattan. Na manhã de sábado, porém, Spalding chegou a sair de casa para avaliar se a ponte do Brooklyn ou a balsa de Staten Island seriam adequadas a um suicídio dramático. Acabou por sentir “muito medo” e não conseguiu tomar uma atitude – sobretudo depois de lembrar da mulher e dos filhos.
Spalding havia recomeçado a pedalar um pouco, e muitas vezes passava em frente a sua antiga casa, embora mal suportasse vê-la pintada de outra cor e habitada por outras pessoas. Chegou a fazer uma proposta para recomprá-la, julgando que isso poderia lhe trazer algum alívio para o “feitiço” que o vitimara, mas os atuais proprietários não se interessaram pelo negócio.
Ainda assim, Kathie lembrou que, embora o marido se mostrasse profundamente deprimido e obcecado, ao longo dos dois anos anteriores ele havia se forçado a viajar, apresentando-se em outras cidades. Mas esses espetáculos, em que ele falava do acidente, estavam longe de se incluir entre os melhores de sua carreira. Certa vez, ele bateu à porta do camarim dos artistas antes da apresentação, e o diretor, que o conhecia bem, pensou que fosse um morador de rua – tamanho o descuido de sua aparência. Além disso, no palco, ele parecia desconcentrado e não conseguia atrair a atenção do público.
Ao final da consulta, Kathie acrescentou que o marido devia comparecer ao hospital no dia seguinte, para tentar livrar o nervo ciático da perna direita do tecido cicatricial que o envolvia. O cirurgião esperava que o procedimento pudesse regenerar o nervo, permitindo-lhe recuperar o movimento normal do pé. Ele seria submetido a uma anestesia geral. Lembrando como a anestesia o afetara meses antes, combinei visitá-lo no hospital logo depois da cirurgia.
Ao chegar, encontrei Spalding muito animado e sociável, com uma espontaneidade que eu nunca tinha visto nele – uma imagem bem diferente do homem quase mudo e impassível que na véspera havia comparecido ao consultório. Ele puxou conversa, me ofereceu uma xícara de chá, quis saber de onde eu tinha vindo e perguntou o que eu estava escrevendo. Disse que sua ruminação obsessiva havia cessado completamente nas duas ou três horas que se seguiram ao fim do efeito da anestesia, e ainda estava muito atenuada.
Tornei a visitá-lo no dia seguinte – 11 de setembro de 2003, dois anos depois que ele tinha caído em depressão “funesta”. Ele continuava animado e disposto a conversar. Orrin, numa visita à parte, também teve uma “conversa normal” com Spalding. Ficamos ambos muito admirados com aquela reversão quase instantânea.
Orrin e eu voltamos a especular sobre o que poderia ter provocado aquela “normalização” temporária. A impressão de Orrin era que, por quase 48 horas, a anestesia teria sufocado ou inibido a ruminação e os sentimentos negativos desencadeados pelo traumatismo do lobo frontal; a anestesia, na verdade, acabava funcionando como uma barreira de proteção normalmente a cargo dos lobos frontais, quando intactos.
Numa terceira visita, logo nas primeiras horas da manhã de 12 de setembro, tornei a encontrar um Spalding bem-disposto. Ele disse que sentia muito pouca dor pós-operatória, e desceu alegremente da cama para demonstrar como conseguia andar bem sem muletas ou uma tala (embora a recuperação neurológica não estivesse completa e, ao caminhar, ele ainda precisasse erguer muito o pé afetado). Quando me despedi, ele me perguntou para onde eu ia – o tipo de pergunta camarada que quase nunca fazia em seu estado anterior de introspecção. Respondi que ia nadar, e ele comentou que também adorava nadar, especialmente num lago próximo a sua casa, e que planejava dar umas braçadas depois de sair do hospital.
Fiquei feliz ao ver um caderno em sua mesa. (Ele me disse que havia escrito um diário durante o tempo que passou no hospital da Irlanda.) Observei que dois anos de suplício já estavam de bom tamanho. “Você já pagou o que devia aos poderes das trevas.” Spalding me deu um meio sorriso e respondeu: “Também acho.”
A essa altura, eu me sentia moderadamente otimista. Talvez Spalding enfim estivesse começando a se recuperar, tanto da depressão quanto do traumatismo no lobo frontal. Contei a ele que já tinha visto muitos pacientes com lesões mais graves e que, com o tempo e a capacidade que o cérebro tem de compensar as perdas, haviam recuperado a maior parte de suas faculdades intelectuais.
Eu planejava voltar ao hospital no dia seguinte, mas antes de sair recebi um recado telefônico de Kathie dizendo que Spalding havia abandonado o local antes de receber alta, sem levar dinheiro ou documentos.
Na manhã seguinte, recebi outra mensagem. Spalding tinha ido até a balsa de Staten Island e havia ligado para casa, deixando um recado: estava pensando em se matar. Kathie chamou a polícia, que finalmente o encontrou por volta das dez da noite – estava na balsa, viajando de um lado para o outro, sem parar. Ainda que não quisesse, foi internado num hospital de Staten Island, e em seguida transferido para a divisão de reabilitação cerebral do Instituto Kessler, em Nova Jersey, onde Orrin e eu fomos vê-lo alguns dias mais tarde.
Spalding estava bem falante, e me mostrou quinze páginas que acabara de escrever – a primeira coisa que produzia em vários meses. Mas ainda apresentava algumas obsessões estranhas e sombrias – uma delas tinha a ver com o que chamava “suicídio criativo”. Dera uma entrevista a uma repórter que vinha escrevendo um artigo sobre ele para uma revista, e lamentava não ter ido com ela até a balsa de Staten Island e demonstrado ali mesmo, no ato, como era um suicídio criativo. Fiz o possível para lhe dizer que, vivo, ele podia ser muito mais criativo do que morto.
Spalding voltou para casa, e quando tornei a vê-lo, no dia 28 de outubro, gostei de saber que tinha apresentado dois monólogos na quinzena anterior. Quando perguntei como conseguia trabalhar, ele enfatizou seu senso de compromisso: se havia concordado em fazer alguma coisa, tinha de fazê-la, independentemente de como se sentia. E talvez também esperasse que esses espetáculos pudessem reanimá-lo. Antigamente, Kathie me contou, ele ficava muito bem-disposto depois de cada apresentação e recebia amigos e admiradores no camarim. Agora, embora demonstrasse alguma animação durante o espetáculo, recaía na depressão assim que a peça acabava.
Depois de uma dessas apresentações, deixou um bilhete para Kathie dizendo que ia saltar de uma ponte em Long Island – e realmente saltou. Sentiu que não tinha condições de manter seu “compromisso”. E seu salto foi realizado em público – testemunhado por várias pessoas, uma das quais o ajudou a voltar à margem.
Com certa frequência, Spalding vinha escrevendo bilhetes de suicídio, que Kathie ou algum dos filhos sempre encontrava na mesa da cozinha. A família mergulhava num estado de ansiedade intensa até ele reaparecer.
Em novembro, Orrin e eu fomos assistir a um de seus monólogos. Ficamos impressionados com seu profissionalismo e virtuosismo, mas sentimos que continuava imerso em memórias e fantasias – já não conseguia dominá-las e reelaborá-las como antes.
Spalding e Kathie voltaram a me procurar no início de dezembro. Ao abrir a porta do consultório, vi que Spalding tinha os olhos fechados e parecia dormir – mas “acordou” no instante em que me dirigi a ele, e entrou no consultório. Não estava dormindo, esclareceu, mas “pensando”.
“Ainda tenho problemas enormes de ruminação”, ele disse. “E me sinto fadado a imitar minha mãe, por força de uma espécie de auto-hipnose. É o fim, meu estado é terminal. Seria melhor que eu morresse. O que mais tenho a dar?”
Uma semana antes, Spalding e Kathie haviam feito um passeio de barco, e ela se assustou com o modo como ele fitava fixamente a água – sabia que precisava vigiá-lo o tempo todo.
Quando contei a Spalding como as pessoas ficavam impressionadas com seus monólogos mais recentes, ele me disse: “Eu sei, mas é porque elas enxergam o meu velho eu, a maneira como eu era, mesmo que ela tenha desaparecido. É uma reação sentimental, nostálgica.”
Perguntei-lhe se transformar em monólogos suas experiências de vida, especialmente algumas das mais negativas, não lhe permitiria integrá-las e, assim, eliminar seu poder de destruição. Ele respondeu que não, agora não. Achava que seus monólogos atuais, longe de ajudá-lo como antes, só agravavam seus pensamentos melancólicos. “Antes”, acrescentou ele, “eu dominava o material – era capaz de ironia.”
Declarando-se um “suicida frustrado”, ele me perguntou: “O que você faria se sua única escolha fosse a internação como doente mental ou o suicídio?”
Contou que tinha a mente tomada por fantasias envolvendo sua mãe e a água, sempre a água. Todas as suas fantasias suicidas eram associadas ao afogamento.
Por que a água, por que o afogamento?, perguntei.
“O retorno ao mar, que é nossa mãe”, ele respondeu.
E isso me fez lembrar da peça de Ibsen A Dama do Mar. Fazia trinta anos que eu a tinha lido, mas então fui reler – e Spalding, também dramaturgo, havia de tê-la lido – e recapitulei como Élida, criada num farol, filha de mãe louca, desenvolvia uma espécie de insanidade devido à obsessão pelo mar e ao que ela considerava uma “atração assustadora” por um marinheiro que lhe parecia representar o mar. (“Toda a força do mar está nesse homem.”)
Mudar-se para outra casa, para Élida, como para Spalding, contribuía para levá-la a um estado semipsicótico, em que, reproduzindo o movimento do mar, imagens quase alucinatórias do passado e do que considerava seu “destino” emergiam de seu inconsciente, quase afogando sua capacidade de viver no presente. Wangel, o médico com quem Élida se casa, percebe a força do que ela vive: “Essa fome do que não tem limite, do infinito – do inatingível –, no fim das contas conduzirá sua mente às trevas absolutas.” E era esse o medo que eu sentia agora em relação a Spalding – de que ele estivesse sendo conduzido para a morte por poderes que nem ele, nem qualquer um de nós, tinha condições de enfrentar.
Spalding passara mais de trinta anos na “encosta escorregadia”, em suas próprias palavras, como se fosse um artista do arame, um equilibrista que jamais tinha caído. Mas duvidava ser capaz de continuar. E embora eu ainda procurasse manifestar esperança e otimismo, passei a compartilhar sua dúvida.
No dia 10 de janeiro de 2004, Spalding foi ao cinema com os filhos. O filme era Peixe Grande, de Tim Burton, em que um pai à beira da morte conta ao filho suas histórias fantásticas antes de regressar ao rio, onde morre – e talvez venha a reencarnar como sua verdadeira essência, um peixe, confirmando a veracidade de uma de suas histórias fabulosas.
Naquela noite, Spalding saiu de casa dizendo que ia encontrar um amigo. Não deixou nenhum bilhete de suicídio, como fez outras vezes. Quando começaram a procurá-lo, um homem disse que o tinha visto a bordo da balsa de Staten Island.
Dois meses mais tarde, o corpo de Spalding foi encontrado às margens do East River. Ele sempre quis que seu suicídio fosse imbuído de alto teor dramático, mas no final não disse nada a ninguém. Simplesmente desapareceu e retornou em silêncio para sua mãe, o mar.