ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
Arruda em baixa voltagem
O ex-governador é agora professor universitário
Carol Pires | Edição 110, Novembro 2015
Numa noite quente do inverno seco de Brasília, em setembro, mais de cinquenta alunos do 5º semestre de engenharia civil do Centro Universitário Euro-Americano, a Unieuro, esperavam ansiosos, em classe, o anúncio das notas de uma prova que haviam feito na semana anterior. Ao entrar em sala, pontualmente às sete da noite, o professor calvo e narigudo foi recebido pelos estudantes com um silêncio respeitoso. Uma acolhida incomum a quem nos anos anteriores se habituara a ter a presença anunciada em alto-falantes por um profissional com voz e entonação de locutor de rodeios: “Vamos receber agora o governador Jo-sééé Ro-beeer-to Arruuuudaaaaa!”
Pouco menos de um ano depois de sua candidatura a governador do Distrito Federal ter sido barrada pela Lei da Ficha Limpa – um período em que diz ter ficado “lambendo as feridas” –, Arruda decidiu recomeçar a vida profissional como professor universitário, no início deste semestre. Naquela noite, vestindo como de costume camisa de botão, calça jeans e sapato social de aparência confortável, o ex-governador começou a chamada pelos alunos mais bem-sucedidos no exame: “Renan? Quem é Renan? Nelson. João Paulo Araújo. Heber.”
Uma vez por semana, às quintas-feiras, ele comparece ao campus da Unieuro em Águas Claras, cidade vizinha a Brasília, no Distrito Federal. Um gramado bem cuidado, onde figuram cópias pouco fidedignas de estátuas greco-romanas, circunda os prédios baixos da instituição.
Ali Arruda leciona sistemas elétricos, sua especialidade acadêmica. Formado em engenharia elétrica na mineira Itajubá, onde nasceu e trabalhou como professor de cursinho, o ex-mandatário fez duas pós-graduações – uma na Fundação Getulio Vargas e outra no Instituto Nacional de Seguridade e Higiene do Trabalho, em Barcelona.
Antes de entregar as provas corrigidas, o professor passou ao quadro. A primeira pergunta havia sido sobre as vantagens do horário de verão. “O que foi que 100% da turma respondeu?”, ele perguntou. “Que o horário de verão permitia uma diminuição do consumo de energia no horário de pico”, o próprio Arruda respondeu.
“Será que nós faríamos toda a população brasileira passar por esse desconforto apenas para diminuir o pico?”, continuou, assumindo um tom de homem público. A resposta correta, ele explicou, seria dizer que o horário de verão, por economizar energia no período mais sobrecarregado de consumo, alivia o sistema de transmissão e aumenta a confiabilidade do sistema elétrico.
Arruda falava com conhecimento de causa. Ele se mudou pela primeira vez para o Distrito Federal em 1975, aos 21 anos, para trabalhar justamente na Companhia Energética de Brasília, a CEB, onde começou como estagiário, foi efetivado por concurso e acumulou promoções, até se tornar diretor. Faria seu nome nos anos 90, como secretário de Obras de Joaquim Roriz, quatro vezes governador.
Eleito senador em 1994, chegou a líder do governo Fernando Henrique Cardoso no Senado, mas em 2001 viu-se obrigado a renunciar, acusado de fraudar o painel de votação da Casa. Buscava ter acesso à lista de escrutínios – secretos – na cassação de outro político de Brasília, Luiz Estevão, envolvido nos desvios do Tribunal do Trabalho de São Paulo em esquema com o juiz Nicolau dos Santos. À época rivais, Arruda e Luiz Estevão se alinharam na última eleição.
“Não roubei, não matei, não desviei dinheiro público, mas cometi um grande erro, talvez o maior da minha vida”, disse Arruda em plenário no dia em que renunciou. Suas últimas palavras foram: “Não é o fim. É um novo começo. Até um dia.”
Defenestrado do poder, fez terapia, meditação, acupuntura, e voltou a trabalhar na CEB. Em 2002, começou a ir de casa em casa nos bairros da periferia. Repetia que seu pecado não tinha a ver com roubo de dinheiro público, aceitava tomar café, às vezes tirava um cochilo no sofá das pessoas, pedia para tomar uma ducha. Voltou triunfante. Foi, proporcionalmente, o deputado mais votado do país. Na eleição seguinte, elegeu-se governador.
À frente do Distrito Federal, encheu a cidade de obras, projetando a imagem de um engenheiro suado depois de uma jornada de trabalho. Chegou a ter 74% de aprovação antes que a Operação Caixa de Pandora, da Polícia Federal, revelasse um esquema de cobrança de propinas de empresários, usadas para pagar contas de campanha e comprar apoio de deputados – caso que ficou conhecido como Mensalão do DEM, partido pelo qual ele havia sido eleito.
Arruda apareceu num vídeo feito com câmera escondida recebendo 50 mil reais em dinheiro do suposto operador do esquema – dinheiro que ele disse ser para comprar panetones para pessoas carentes. Acusado de tentar subornar uma testemunha, foi preso. Ao sair, 62 dias depois, tinha tido o mandato de governador cassado pela Justiça Eleitoral.
Voltou a submergir. Mudou-se para São Paulo com a mulher, Flávia Peres, contratada como garota do tempo pela Band. Quando visitava Brasília, ia de carro, para evitar ser reconhecido nos aeroportos.
Sua reaparição, com direito a locutor de rodeio anunciando sua presença num estádio lotado em Taguatinga, foi em junho do ano passado, na convenção do Partido da República, que o lançou candidato ao governo do DF. Enquanto não foi impugnado, Arruda liderou todas as pesquisas de intenção de voto.
Em aula, o hoje professor corta o assunto quando os alunos querem discutir política. Nem sempre consegue. Na saída, foi interrompido duas vezes por estudantes, que pediam para tirar selfies.
De pé no estacionamento, antes de ir para casa, ele contou que já havia trabalhado, em São Paulo, como consultor da Unieuro. “Eu podia estar num emprego melhor, mais interessante, na empresa de um amigo. Mas aí iam dizer que o verdadeiro dono era eu, e o cara, meu laranja. Ou que minha presença estava atrapalhando a empresa a conseguir contratos no governo porque eu sou desse ou daquele partido. Não tem como fugir.”
Negou, uma e outra vez, a intenção de voltar à vida pública. “Para minha saúde mental, é melhor aceitar que essa fase passou, e me reinventar.” Mas pareceu reanimado ao falar do atual momento político. Abandonou o semblante melancólico e enumerou, energético, sugestões para o governo sair da crise. “Quando eu tomo banho, fico imaginando o que faria se estivesse no Congresso.”