ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
A remissão do fantasma
Princeton celebra John Nash
Bernardo Esteves | Edição 110, Novembro 2015
Numa tarde de outubro, um professor conversava com três alunas em seu escritório no nono piso do Fine Hall, a torre de treze andares que abriga o Departamento de Matemática da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, talvez o mais prestigioso do mundo. Na porta não havia qualquer sinal de que, seis meses atrás, o titular daquele gabinete era o americano John Nash, figura lendária da matemática, morto em maio aos 86 anos.
Além do próprio Nash, os corredores do Fine Hall viram passar Albert Einstein, John von Neumann, Robert Oppenheimer e outros vultos da história da ciência. Continuam frequentados por gigantes contemporâneos da matemática, vários dos quais tinham vindo participar de um evento em homenagem a Nash, promovido pela universidade naquele sábado de outono.
A primeira conferência do dia, a cargo do professor de Harvard Eric Maskin, versou sobre suas contribuições à teoria dos jogos, que fizeram dele uma estrela de primeira grandeza e lhe valeram o Nobel de Economia em 1994. Num artigo de uma página publicado em 1950, Nash introduziu o conceito que desenvolveu durante o doutorado e que “mudou a economia dramaticamente”, segundo Maskin. O matemático de Princeton analisou como diferentes agentes envolvidos numa interação levam em conta as estratégias uns dos outros antes de decidirem que ação tomar – e mostrou como prever o ponto de equilíbrio que resulta desse jogo de escolhas mútuas. O “equilíbrio de Nash” ajudou a predizer o comportamento de agentes econômicos e ganhou aplicações em várias esferas e na vida cotidiana. “Se você veio até aqui dirigindo pela faixa da direita, é porque antecipou que os outros motoristas fariam o mesmo”, exemplificou o palestrante.
Nash deu também contribuições fundamentais para áreas como a geometria algébrica ou a teoria não linear. Os conferencistas escalados para homenageá-lo não pouparam hipérboles ao apresentar sua obra, num enlevo atípico para matemáticos. A audiência ouviu que o americano criou “ferramentas poderosíssimas”, “equações incríveis”, “métodos revolucionários”. “Ele desenvolveu uma nova perspectiva que permitiu tornar simples coisas extremamente complicadas”, disse o matemático Mikhail Gromov à piauí ao final de uma palestra impenetrável para o leigo.
Muitos dos que circularam pelo Fine Hall nos anos 70 e 80, porém, guardaram de Nash a imagem de um homem maltrapilho e com ar de poucos amigos que falava sozinho e fumava compulsivamente. Apelidado de “Fantasma”, assombrava as bibliotecas, cafeterias e corredores do campus. Os alunos do Fine Hall com frequência encontravam nos quadros-negros mensagens enigmáticas deixadas por Nash com fórmulas crípticas e menções a Mao Tsé-tung, Jimmy Carter ou Nikita Kruschev.
O matemático tinha sido diagnosticado com esquizofrenia paranoide. Dizia receber mensagens de seres alienígenas, entregou-se à numerologia e a interpretações de textos bíblicos. “Algo estava visivelmente errado com a mente brilhante”, disse à plateia de Princeton a jornalista Sylvia Nasar, aludindo à biografia escrita por ela em 1998 e depois adaptada para o cinema num filme estrelado por Russell Crowe. A conferência de Nasar, a mais aguardada do dia, lotou os 314 lugares do auditório. A biógrafa relatou ao público a improvável melhora – ela prefere falar em “remissão” – de Nash após três décadas de sofrimento (um estudo citado pela autora, talvez o mais abrangente já feito a esse respeito, mostrou que apenas 8% dos pacientes esquizofrênicos se recuperaram).
Nasar costuma apresentar seu livro como uma história em três atos: genialidade, loucura e redespertar. Para ela própria, a narrativa teve um quarto ato, quando enfim se aproximou de Nash. A autora contou à piauí que escreveu Uma Mente Brilhante sem a cooperação do biografado, que preferiu assumir uma posição de “neutralidade suíça”. “Quando uma biografia não autorizada é lançada, geralmente o personagem processa o autor, mas em vez disso ele quis virar meu amigo”, afirmou.
Nash voltou a trabalhar em problemas matemáticos, a falar em público e frequentar conferências – uma das últimas de que participou foi um workshop sobre teoria dos jogos promovido em 2014 pela USP. “John e Alicia decidiram dançar numa festa do evento e um clarão se abriu em torno deles para que pudessem ter a pista só para si”, contou Eric Maskin, que também participou do encontro.
A homenagem a John Nash foi encerrada com uma celebração na capela de Princeton, uma construção dos anos 20 em estilo neogótico a algumas centenas de metros do Fine Hall. Depoimentos emocionados de amigos e colegas foram pontuados por música de órgão e por um coral que deram à cerimônia um ar de luto solene.
O testemunho mais tocante foi o de Louis Nirenberg, professor da Universidade de Nova York, o último amigo a ver Nash com vida. Em maio, os dois foram a Oslo receber o Prêmio Abel, que homenageia grandes contribuições à matemática. Acompanhados das mulheres, pegaram o mesmo voo de volta até Newark. “Tivemos uma conversa muito amistosa no desembarque enquanto esperávamos minha filha”, contou Nirenberg. “Eles estavam num ótimo estado de espírito, até que decidiram tomar um táxi, e a tragédia horrível aconteceu.”
O carro em que estavam perdeu o controle e atingiu uma mureta e outro veículo. Nash e a mulher, provavelmente sem cinto de segurança, foram lançados para fora do táxi. A voz do matemático embargou ao evocar o acidente. “Devo dizer que, em meus pensamentos…”, afirmou, sem concluir a frase. “Não sei mais o que dizer.”
Quando morreu, Nash já era uma celebridade, provavelmente o matemático mais conhecido do mundo, em grande medida por causa da adaptação cinematográfica de sua biografia, que ganhou quatro Oscars. Ele próprio não se iludia em relação à fama, a julgar por um relato de Maskin. Certa vez, um colega lhe perguntou como ele se sentia ao ver um anfiteatro abarrotado de gente. Nash respondeu: “Eles não vieram por mim, vieram ver o Russell Crowe.”