ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL
A rota do unicórnio
O Dia das Bruxas no Vale do Silício
Daniela Pinheiro | Edição 111, Dezembro 2015
Na véspera, prevendo o movimento fora do comum, o departamento de polícia havia espalhado cartazes avisando que o trânsito seria interditado. Também alertava a vizinhança que seria proibido estacionar num dos lados da rua, sob o risco de ter o carro guinchado. Coisa assim, em Palo Alto – a meca do Vale do Silício e terra dos bilionários da tecnologia, onde a vida social costuma ter clima de biblioteca –, é tão rara quanto uma startup dar certo.
Naquele dia, às cinco da tarde o burburinho já havia se instalado na pequena área residencial com menos de 1 quilômetro quadrado onde moram os bambambãs da Apple, do Google, do eBay, do YouTube, do Yahoo! e de outra dezena de empresas de tecnologia. É também onde acontece a mais disputada caça de doces do Dia das Bruxas.
A tradição começou nos anos 90, com Steve Jobs. Pai de dois filhos pequenos, ele se vestia de Frankenstein, postava-se à porta de casa e distribuía guloseimas para as crianças. Mas os maiores interessados eram os adultos: ver o mito de perto, mesmo que por instantes, era como ir a Roma e tocar a mão do papa. Com o passar do tempo a celebração foi se aprimorando. Houve um Halloween em que Jobs ergueu, no meio do jardim, um caldeirão gigante que soltava fumaça. No ano seguinte, transformou sua mansão numa casa mal-assombrada, com atores vestidos de zumbis e feiticeiras.
Quando Larry Page, um dos fundadores do Google, se mudou para o outro lado da rua, a romaria tomou corpo. Sem alarde, como reza a etiqueta do Vale do Silício, os anfitriões disputavam quem faria o espetáculo mais pirotécnico. Page chegou a montar um circo com contorcionistas e a reproduzir a floresta de Chapeuzinho Vermelho. Jobs atraía mais curiosos, mas a festa de Page era melhor. As crianças torciam o nariz porque o dono da Apple – obcecado por alimentação saudável – incluía barrinhas de cereais e de proteína entre as guloseimas.
Às seis e meia da tarde, já com o céu escuro e a temperatura em queda, pelo menos oitenta pessoas – entre adultos e crianças – enfrentavam a fila em frente à casa de Marissa Mayer, a CEO do Yahoo!, uma das mulheres mais poderosas do planeta e organizadora da festa mais concorrida da noite.
Um grupo de dez amigos de nacionalidades variadas havia combinado completar o percurso conhecido como a “rota do unicórnio”: o trajeto entre as casas de Mayer, Jobs e Page, que culmina na residência de Mark Zuckerberg, o dono do Facebook, distante das demais cerca de 3 quilômetros. No Vale do Silício, a imagem do mitológico unicórnio é empregada para ilustrar o universo financeiro-tecnológico que faz empresas de internet valerem 1 bilhão de dólares da noite para o dia.
Desde que passaram a abrir os jardins de suas casas para estranhos na noite do 31 de outubro, os magnatas impuseram uma condição: os desconhecidos ficariam restritos à área externa. As janelas costumam ter as cortinas fechadas, e o acesso ao interior é guardado por um batalhão de seguranças e empregados. Independente do cacife ou da fama do proprietário, a cena se repete: os filhos fazem fila para os doces, e os pais esticam os pescoços e miram suas câmeras para a intimidade dos nerds mais ricos do mundo.
Com a morte de Jobs, em 2011, a festa de Marissa Mayer passou a ocupar lugar de destaque na maratona de eventos. Em 2014 ela promoveu duas festas simultâneas. Uma pública, no jardim frontal de casa, e uma particular a poucos metros dali, numa tradicional funerária arrematada por ela por 11 milhões de dólares, dois anos atrás. No ano passado ela montou na casa de velórios um cenário com mais de 600 lanternas em forma de abóbora, barraquinhas e estátuas de monstros.
Foi quando os vizinhos chiaram. Um deles escreveu uma carta anônima à anfitriã, publicada na internet, pedindo que ela respeitasse o local onde vários deles haviam velado entes queridos. Neste ano a executiva preferiu acatar o apelo da vizinhança: a antiga funerária esteve silenciosa como um sepulcro.
“Todo ano é assim, fica difícil competir”, disse a moradora do nº 826, bem em frente à residência de Mayer. Ela e o marido davam um modesto chocolatinho a cada uma das crianças que saíam da casa vizinha abarrotadas de guloseimas. “Não me importo com a grandiosidade da festa, mas interditar a rua, impedindo nossos familiares de parar o carro, é demais.”
A casa dos Jobs tem uma cerca baixa de madeira, um muro discreto e pórtico verde, que dá acesso a uma aleia de macieiras, numa alusão ao nome da empresa. A viúva, Laurene, manteve a tradição iniciada pelo marido. O tema da festa deste ano era Palhaços do Horror: pelo menos vinte atores, aterrorizantes até para os adultos, uivavam e se contorciam ao entregar sacos de caramelos.
Do outro lado da rua, a festa de Larry Page parecia um conto de fadas, se comparada à da vizinha da frente. Uma casa de madeira escura foi erguida para simular uma construção assombrada, mas algumas crianças a usavam para brincar de esconde-esconde. Cinco zumbis ofereciam balinhas avulsas. Um dos amigos do grupo que fazia a rota do unicórnio tinha acabado de chegar da casa do dono do Facebook, Mark Zuckerberg. “Lá está fraco”, comentou. Segundo disse, havia apenas uma mesa no jardim, e uns poucos funcionários distribuindo doces.
Às nove da noite, depois de alguns minutos na fila de Jobs, um dos integrantes do grupo fez que ia desistir. À sua frente, um menino fantasiado com as roupas típicas do fundador da Apple – camisa preta de gola rolê, calça jeans e óculos redondos – esperava pacientemente por seus doces. Quando o menino também deu sinais de cansaço, ameaçando descartar os óculos, o pai sugeriu que ele tentasse cortar a fila. Para disfarçar o malfeito, o adulto entreteve os demais lamentando a ausência do i-Podinho e do i-Padzinho, a dupla de irmãos asiáticos que costumavam bater ponto ali nos Halloweens anteriores, fantasiados de engenhocas da Apple. Ainda estava falando quando o filho, com ar decepcionado, voltou com as mãos cheias de docinhos orgânicos.