Véra Slonim foi, até a morte de Nabokov, sua primeira leitora - além de datilógrafa, motorista, arquivista, tradutora e a gente literária FOTO: CARL MYDANS_THE LIFE PICTURE COLLECTION_GETTY IMAGES
Cartas a Véra
A longa relação de cumplicidade entre Nabokov e sua mulher
Jorio Dauster | Edição 113, Fevereiro 2016
Imagine um conto romântico com um pano de fundo histórico. O protagonista é um jovem e atlético aristocrata que a revolução bolchevique varreu de São Petersburgo para Berlim. Aos 24 anos, vivendo na penúria, ele já se destaca como poeta, apreciado pelas centenas de milhares de conterrâneos exilados na capital alemã que leem os jornais publicados em sua língua. Dentre seus admiradores há uma moça judia de 21 anos, também nascida em São Petersburgo, que conhece de cor seus poemas e sabe, pela leitura dos versos de cunho autobiográfico, que ele acabou de terminar um grande amor. Em 1923, usando uma máscara de arlequim, ela o procura num baile de caridade da colônia russa e, quando mais tarde caminham pelas ruas, recita seus poemas com voz sedutora, sem tirar a máscara. Dois anos depois estão casados.
Este conto, Vladimir Nabokov não precisou escrever porque o viveu: ele e Véra Slonim formaram um dos casais mais longevos do mundo literário. Até a morte do escritor, em 1977, Véra passou dificuldades ao lado dele, mas também se notabilizou como sua primeira leitora, além de datilógrafa, motorista, ajudante de professor, arquivista, tradutora, agente literária e até mesmo guarda-costas (sabia atirar e levava uma pequena pistola na bolsa durante o exílio nos Estados Unidos). E não só lhe deu um filho como salvou o manuscrito de Lolita que o autor decidira queimar.
A relação simbiótica entre um dos maiores gênios da literatura e sua companheira se reflete nas centenas de cartas que Nabokov escreveu a Véra, e que acabam de ser publicadas pela editora Knopf. No entanto, a correspondência mostra apenas um lado da equação, uma vez que a destinatária destruiu todas as cartas que escreveu a ele. Há também um desequilíbrio em termos de continuidade no tempo: mais de 80% da correspondência cobre o período que vai do namoro até a fuga do casal para os Estados Unidos em 1940, quando a guerra começava a sacudir a Europa. A partir da “fase americana”, durante a qual Nabokov escreveu as obras que o tornaram famoso, e já na volta à Europa, mínguam as mensagens epistolares, uma vez que os dois haviam se tornado inseparáveis.
Quem inicia a correspondência é Véra, quando Nabokov passava algumas semanas no sul da França, ainda se recuperando da perda do pai, que extremistas da direita haviam assassinado um ano antes em Berlim. As primeiras cartas dirigidas à moça esbelta, de traços finos e olhos doces, revelam uma paixão arrasadora, exibindo a força poética que Nabokov injeta em seus escritos sob a forma de imagens originais mesmo quando lança o olhar sobre objetos e eventos banais. Alguns meses depois do casamento, Véra passa sete semanas em sanatórios na Floresta Negra para cuidar da saúde, debilitada pela ansiedade e depressão. De constituição frágil na infância, ela perdera muito peso quando se viu obrigada a dar aulas de línguas a fim de suplementar os parcos rendimentos auferidos pelo marido, que se virava como instrutor de inglês, tênis e boxe, além de atuar como preceptor de dois jovens de famílias ricas.
Durante a longa separação, Nabokov lhe escreve diariamente, descrevendo as refeições na pensão em que mora, as atividades físicas que pratica (caminhadas, futebol, tênis e natação), assim como as incursões noturnas pelos círculos de exilados que o paparicavam. Comenta também os poemas e contos que está escrevendo e os livros que lê ou relê em poucas horas. Usando o nom de plume V. Sirin, lança seu primeiro romance (Machenka), que o torna ainda mais requisitado para fazer leituras de suas obras em várias cidades. Os valores recebidos pelas matérias publicadas ou palestras proferidas são minuciosamente registrados por aquele que, milionário dez anos antes, agora com frequência pede dinheiro emprestado até para comprar cigarros.
Nessa série de cartas, repletas de reclamações pelo silêncio epistolar da mulher, Nabokov a bombardeia com jogos de palavras, charadas e desenhos de labirintos enquanto lhe pede para recuperar a saúde antes de voltar a Berlim (que ele odeia). A cada vez ele se dirige a Véra por um diminutivo carinhoso derivado do nome de algum bicho; certa vez a chama de “gambazinha” e, sem dúvida fazendo-a corar, se despede dizendo que ela “nunca adivinhará (estou beijando você) o que exatamente estou beijando”.
De tempos em tempos, Nabokov vai a Praga visitar a mãe asmática, as duas irmãs e o irmão caçula, que lá sobreviviam com uma pensão oferecida pelo governo tcheco às viúvas de estadistas russos da era pré-revolucionária. (Outro irmão, um ano mais moço que Nabokov e com quem seu relacionamento sempre foi difícil, era homossexual e morreu décadas depois num campo de concentração nazista.) As cartas em geral relatavam a situação precária da família, os problemas financeiros, os contatos com literatos locais, as leituras em público e sua visão tristonha da cidade. Todavia, numa longa missiva de janeiro de 1924 o escritor se impõe e confessa que a arte era a única coisa que importava na vida – no seu caso a literatura, pela qual se deixaria torturar se com isso pudesse encontrar a palavra certa. Tanto era verdadeira sua profissão de fé pela arte e desprezo pelo mundo exterior que a então incipiente ascensão de Hitler ao poder não mereceu sequer uma linha na correspondência.
A década de 30 foi um período de agitação na vida do casal, marcada pelo nascimento de Dmitri (1934), diversas viagens de Nabokov a Praga, Paris, Bruxelas e Londres, o lançamento de seis novos romances e diversos contos. A luta por recursos se tornou cada vez mais dura à medida que a diáspora russa na Europa se dissolvia – seus membros ou morriam ou se transferiam a outros continentes –, exigindo que Véra trabalhasse como secretária e estenógrafa em várias firmas. E então, no “céu sem uma nuvem” que o autor proclamava ser seu casamento, surge em fevereiro de 1937, durante uma de suas excursões literárias a Paris, a bela russa Irina Guadanini, que gostava de versejar mas ganhava a vida tosando cachorros. Os pais eram intelectuais que admiravam o talento de Nabokov, mas a mãe (também chamada Vera) foi quem de fato estimulou o romance entre os dois.
Alertada em Berlim por uma carta anônima, Véra confronta o marido e recebe as mais melífluas negativas. Enquanto mantém o tórrido caso, Nabokov padece de uma crise de psoríase e faz planos para que o casal abandone a Alemanha o mais cedo possível: a marcha avassaladora do nazismo o ameaçava como filho de um estadista liberal e, à mulher, como judia. Mas Véra, sem dúvida reagindo aos rumores sobre o adultério, procura evitar a ida para a França e muda constantemente de planos, a ponto de enfurecê-lo de modo jamais visto no curso da longa correspondência. Enfim, em maio de 1937, Véra segue com Dmitri para Praga, onde Nabokov se une aos dois e vê a mãe pela última vez. Em julho, o casal e o filho seguem para o sul da França; lá, Nabokov confessa o affair com Irina e, em meio às previsíveis tempestades domésticas, Véra o obriga a escolher entre as duas. O escritor não titubeia.
Nos dois anos seguintes, o casal mora em Paris. Nabokov busca desesperadamente algum emprego e, em meio a um torvelinho burocrático de passaportes e vistos, faz inúmeras leituras e traduções para ganhar alguns francos. Em abril de 1939, numa das cartas que envia de Londres, onde lutava por um posto na Universidade de Leeds, vê-se que a ferida de Véra ainda não cicatrizara quando ele a previne de que a atriz com quem se encontrará é velha e gorda. Enquanto isso, sabendo que precisava se reinventar, Nabokov escreve seu primeiro romance em inglês (A Verdadeira Vida de Sebastian Knight), um feito trilíngue sem comparação na história da literatura (antes ele já havia produzido, em francês, Mademoiselle O, uma deliciosa recordação de sua preceptora franco-suíça).[1]
O casal e Dmitri por fim embarcam para Nova York em fins de maio de 1940, a apenas duas semanas da queda de Paris, e três semanas antes que o prédio onde viviam fosse destruído por um bombardeio alemão. As cartas agora escasseiam, seja pelo amadurecimento da relação, seja pela proximidade de ambos. Entre as mais interessantes estão aquelas que Nabokov escreve quando, nos primeiros anos nos Estados Unidos, é convidado a fazer palestras em diversas universidades, brindando Véra com espirituosos relatos que receberam o devido tratamento literário em Pnin. Mas não falta a nota plangente sobre o exílio linguístico, quando, em 1942, de Saint Paul, ele conta que andou por mais de uma hora e que, “no caminho, um relâmpago de inspiração perpassou meu corpo – um desejo apaixonado de escrever, e escrever em russo. E, contudo, não posso. Acho que ninguém que nunca teve este sentimento será de fato capaz de compreender como isso é torturante, como isso é trágico. Nesse sentido, a língua inglesa se torna uma ilusão e um substituto inferior”. Isto dito por quem, nesse idioma vicário, produziu Lolita, Pnin, Fogo Pálido e Ada, ou Ardor, além de dezenas de contos e, em colaboração com o filho, as traduções do que escrevera em russo.
Para quem tem intimidade com a figura de Nabokov, as cartas não trazem nenhuma revelação, e sim algumas confirmações: o amor por Véra e a cumplicidade entre os dois (até mesmo porque, de outro modo, ele não escreveria todos os dias em que esteve ausente); a qualidade da escrita (fulgurante na paixão, preciosa e precisa na descrição de lugares e pessoas ao longo dos anos); a vitalidade física (além de exímio tenista, até uma idade avançada se aventurava em excursões para coletar borboletas); a inesgotável alegria de viver (ele nunca registrou uma queixa pelas perdas materiais sofridas quando rapaz); a generosidade com a família exilada (que visitava quando podia e com quem dividia seus ganhos irrisórios); e a inesgotável capacidade de trabalho (escreveu romances, contos, poemas, peças teatrais, crítica literária, um roteiro de cinema, uma autobiografia e um livro de entrevistas; fez numerosas traduções e, nas horas vagas, ainda armava problemas de xadrez – sem contar as palestras, leituras e aulas que deu durante dezessete anos nas universidades de Wellesley e Cornell). E ainda lhe sobrou tempo para ser um renomado lepidopterologista, tendo organizado coleções de borboletas no Museu de Zoologia Comparada da Universidade Harvard e descoberto uma espécie.
No entanto, por se tratar de uma correspondência unilateral, é impossível decifrar a personalidade de Véra, que destruiu todas as suas cartas. Seria esse o gesto de uma mulher modesta, decidida a manter sua privacidade? Muito improvável, porque sua capacidade intelectual e seu papel de faz-tudo eram reconhecidos nos meios acadêmicos e literários – alguns até diziam que ela contribuía na redação das obras. Ou será que suas respostas às copiosas cartas de Nabokov (a cada cinco cartas recebidas, ela enviava uma) revelavam a dificuldade de lidar com um homem tão ativo e efervescente? Ou seu receio de que o marido, mulherengo na juventude, aproveitasse as viagens para se entregar a aventuras amorosas?
Todos esses elementos provavelmente estavam presentes numa mulher de sentimentos tão apurados. Talvez a melhor explicação seja a de que Véra, sabendo ter fisgado no baile de máscaras um gênio excepcional que a respeitava por sua sensibilidade, haja resolvido se dedicar – abandonando seus próprios anseios literários – à plena realização daquele fenômeno da natureza. Para isso venceu ansiedades e desgostos; para isso se tornou o alter ego do marido; para isso saiu de cena, eliminando sua parte da correspondência, a fim de deixar o palco para Nabokov.
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[1] Mais tarde, o texto, vertido por ele para o inglês, foi incorporado à autobiografia Speack, Memory, que teve duas edições em português: Na Outra Margem da Memória e A Pessoa em Questão.